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O ofício da pesquisa: aventuras de percurso

O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica

3. O ofício da pesquisa: aventuras de percurso

No âmbito do Racionalismo Aberto e Crítico, a pesquisa é um trabalho racional de criação, de descoberta, por aproximações suces- sivas… É uma construção processual do pesquisador, no esforço de desvendamento da realidade, a partir das provocações do mundo que, ao despertar seu apetite de conhecer sempre mais, o mobilizam a fazer descobertas… Afirma Bachelard:

…Vivemos num mundo em estado de sono[…]despertar o mundo, eis a coragem da existência. E esta coragem é o trabalho da pesquisa e da invenção… O essencial é que permaneçamos sempre em estado de apetite (Gaston Bachelard. In: Japiassu, Hilton 1991:77).

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Alba Maria Pinho de Carvalho

19Aqui, resgato a configuração de Guy Debord, na sua obra A Sociedade do Espetá-

culo, lançada na França, em 1967 e que se tornou livro de referência da ala mais

extremista de Maio de 1968, em Paris. Hoje, a obra é um «clássico» da «crítica do sistema do capital».

Na reflexão bachelardiana, os homens – na plena vigência da sua humanidade – são os únicos «despertadores do mundo» pela criação e invenção. A pesquisa, como «ciência em ato», no processo de pro- dução do conhecimento, é um «locus» de criação e invenção que am- plia suas potencialidades, alarga horizontes ao superar fronteiras rígidas, apartações arbitrárias, demarcações institucionalizadas, no pleno exercício da ecologia de saberes.

A rigor, pesquisar é aventurar-se nos caminhos íngremes e apai- xonantes do conhecimento do que está escondido e/ou disperso nas aparências, nas evidências, buscando delinear relações e determina- ções, reconstruir mediações que conferem sentido e significado aos fenômenos, fatos, representações circunscritos no real. É pôr em questão fatos, fenômenos, representações, classificações, versões… é desnaturalizar o que é dado como «natural», é desconstruir o que se apresenta como construído (Carvalho, 2004, 2005).

Em verdade, a pesquisa encarna a busca do pesquisador/pesqui- sadora de apropriação do concreto, no plano do pensamento, expli- cando-o ao pensá-lo, tornando-o, assim, um «concreto pensado», conforme a configuração de Marx, no seu método «do abstrato ao concreto» (Marx, 1978). Esta apropriação do objeto, como «concreto pensado», exige um esforço de reflexão, mobilizando razão, imagi- nação, sensibilidade.

Nesta perspectiva de construção processual, a pesquisa «é um ofício» que implica um «modus operandi» que se aprende, exercita- se no fazer, incorporando o «habitus científico»(Bourdieu, 1989)20 Cai por terra o mito do «dom da pesquisa», do «pesquisador como

O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica

20Nas explicitações metodológicas de Bourdieu, «habitus científico é uma regra feita homem ou, melhor, um ´modus operandi` científico que funciona em estado prá- tico, segundo as normas da ciência sem ter essas normas na sua origem: é esta es- pécie de sentido do jogo científico que faz com que se faça o que é preciso fazer no momento próprio, sem ter havido necessidade de tematizar o que havia que fazer, e menos ainda, a regra que permite gerar a conduta adequada” (Bourdieu, 1989:23).

um gênio excepcional»… De fato, a pesquisa é uma atividade racional que exige investimento e esforço, devendo «estar orientada para a ma- ximização do rendimento dos investimentos e para o melhor apro- veitamento possível dos recursos, a começar pelo tempo que se dispõe» (Bourdieu, 1989: 18).

Na vivência deste ofício, de natureza racional a demandar prática efetiva do pesquisar, é fundamental a reflexão permanente sobre o processo e o produto, no sentido de uma avaliação crítica que man- tém o(a) pesquisador/pesquisadora em estado de alerta e de vigilân- cia. Questionar e questionar-se sem cessar é «dever de ofício». Assim, configura-se a exigência da reflexão epistemológica como um «habi- tus» do campo científico.

O exercício da pesquisa, movida pela lógica da descoberta, implica uma dinâmica metodológica, no sentido da demarcação de caminhos na aventura do conhecer. A partir de cânones amplos do fazer científico que constituem, antes de tudo, trilhas abertas a orientar o processo de criação, delineiam-se exigências básicas a serem trabalhadas pelo(a) pesquisador/pesquisadora. O adentrar neste campo metodológico exige discutir estas exigências, materializadas em operações, mecanismos, estratégias, recursos e instrumentos. O fundamental é constituir uma discussão epistemológica da questão metodológica.

Nesta perspectiva de refletir a dinâmica metodológica, nos marcos do Racionalismo Aberto e Crítico, cabe uma primeira demarcação: a operação decisiva é a construção do objeto, muitas vezes ignorada ou desconsiderada em outras tradições de pesquisa. Sustenta Bourdieu, ao ensinar o ofício da pesquisa, que «o que conta, na realidade é a construção do objeto […] sem dúvida a operação mais importante»…(1989:20)21.

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21Em uma de suas reflexões epistemológicas mais instigantes, ao discutir o que de- nomina de «dimensão empirista», Pierre Bourdieu estabelece uma distinção fun- damental na dinâmica do fazer científico: a distinção entre objeto real e objeto científico. E configura o «objeto real» como objeto pré-construído pela percepção e o «objeto científico» como uma construção do sujeito pesquisador a efetivar re- cortes, configurando um sistema de relações a investigar (Bourdieu, 1999).

Em verdade, é a tarefa fundante da investigação, ao longo da qual o pes- quisador, em um processo de aproximações sucessivas, vai transfor- mando uma temática, um fenômeno em objeto de estudo: é o objeto científico, resultante do trabalho reflexivo do sujeito pesquisador/pes- quisadora a interrogar o real que lhe interpela…

Assim, desconstrói-se o «fetiche da evidência», tão caro a deter- minadas vertentes epistêmicas. Como bem destaca Bourdieu, (1999) «a realidade não fala por si», oferecendo respostas quando sabemos colocar questões, ou seja, problematizar…

De fato, no objeto em construção, o(a) pesquisador/pesquisadora vai efetivando seu recorte peculiar de estudo, constituindo o ângulo novo, imprevisto que delineia e estrutura o eixo da investigação, o seu «fio condutor». Enfim, a construção do objeto faz a diferença, a cons- tituir a dimensão original da produção do sujeito pesquisador.

Esta construção do objeto é eminentemente processual e vai se aprimorando, numa «sintonia fina», ao longo de toda a pesquisa, a exigir uma vigilância atenta e permanente do(a) pesquisador/ pes- quisadora. Bourdieu, em uma lição de mestre, assim configura este esforço processual de construção:

A construção do objeto não é uma coisa que se produza de uma assentada, por uma espécie de ato teórico inaugural […] é um tra- balho de grande fôlego, que se realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos, por toda uma série de correções, de emendas, sugeridos por o que se chama o ofício, quer dizer, esse conjunto, de princípios práticos que orientam as opções ao mesmo tempo minúsculas e de- cisivas (1989:27)

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As observações, reflexões e análises, por meio das quais se efetiva esta decisiva operação de construção do objeto, exige um tipo de pen- samento que é inerente ao esforço sistemático do conhecer: é o «pen- samento relacional» de Bourdieu (1989); é a «perspectiva de

Totalidade», consubstanciada no método marxiano (1978). Com con- figurações conceituais distintas, estas formulações postulam a exigên- cia do «pensar relacionalmente», resgatando a tessitura das relações constitutivas do objeto, estabelecendo mediações, reconstituindo as vinculações geral/particular, no esforço permanente de contextualiza- ção e de especificação…É o assumir de uma postura ativa e sistemática do sujeito do conhecimento, em um efetivo trabalho de reflexão, no esforço de configurar um sistema de relações a investigar.

O exercício do pensar relacionalmente, no processo de delinea- mentos processuais do objeto, exige a tessitura teoria/empíria: movi- mentar teorias para pensar dimensões e questões da realidade, adentrando nos interstícios do objeto. Tal tessitura exige competência analítica, sensibilidade, domínio teórico-empírico, constituindo a «pedra-de-toque» nos percursos investigativos22.

No âmbito dessa tessitura teoria/empiria é preciso avançar no diálogo entre teorias, explorando potencialidades explicativas, a partir das interpelações do real, a colocar dilemas e questões. Nesse sentido, a complexidade da realidade contemporânea, em sua teia de relações, em permanente movimento, exige a articulação de enfoques, de apor- tes, no âmbito de teorias de diferentes disciplinas, na direção da «transdisciplinaridade», constituindo o desafio das teorizações nas «fronteiras disciplinares». É um processo de (re)construção teórica, a partir das demandas do objeto, na direção da produção do «pensa-

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22Nas minhas reflexões epistemológicas no âmbito da metodologia, sublinho a im- portância crucial desta tessitura teoria/empiria, no sentido de uma postura ativa do pesquisador/pesquisadora a tecer «fios da teoria» e «fios da realidade». Para melhor visualizar essa trama reflexiva, recorro a uma metáfora, eminentemente brasileira e nordestina: o trabalho da rendeira, artesã que tece rendas, de forma ar- tesanal, na sua almofada, a jogar os seus bilros, de um lado para o outro, com a pe- rícia do saber e a arte do ofício. É o movimento contínuo das mãos no jogo dos bilros. À semelhança da rendeira, o(a) pesquisador/pesquisadora joga «bilros», portando, em uma mão, os da teoria e, na outra, os da empiria. E na perícia do saber e na arte do ofício, entrecruza teoria e empiria, em um movimento incessante da razão, da imaginação e da sensibilidade.

mento complexo»23. Em verdade, trata-se de uma «tessitura teórico- conceitual» que impõe o exercício do «rigor criativo», superando qualquer resquício de «rigidez disciplinar», rompendo com dogma- tismos e formalismos que empobrecem o processo do pensar…

A partir das exigências do objeto, em estreita articulação com a lógica da construção teórico-conceitual, o(a) pesquisador/pesquisa- dora vai, então, delineando os percursos metodológicos, em uma perspectiva ampla e plural. Assim, necessário se faz a superação de dicotomias e sectarismos de qualquer espécie…

É o desafio da construção metodológica, a pressupor a estreita vinculação teoria/metodologia, como uma relação fundante. Sustenta Bourdieu, em suas reflexões sobre o “modus operandi” no exercício

do “ofício da pesquisa”:

… as opções técnicas mais ‘empíricas’ são inseparáveis das opções mais ‘teóricas’ de construção do objeto. É em função de uma certa construção do objeto que tal método de amostragem, tal técnica de recolha ou de análise dos dados, etc. se impõe… (1989:24)

Nesta ótica, o desenho metodológico é um esforço de construção, na busca de caminhos, capazes de atender às demandas do objeto, aproveitando potencialidades de diferentes alternativas metodológi- cas. A perspectiva é eminentemente plural, impondo a recusa de qual- quer «monoteísmo metodológico».

Com efeito, em cada contexto particular de pesquisa, faz-se ne- cessário tentar «mobilizar todas as técnicas que, dada a definição do objeto, possam parecer pertinentes e que, dadas as condições práticas

O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica

23Edgar Morin, nas suas teorizações do pensar complexo, já enuncia a exigência de estudos de caráter «inter-poli-transdisciplinar» diante da complexidade das socie- dades contemporâneas, a enfrentar dilemas e problemas, exigindo uma radicali- dade no repensar a reforma do pensamento. Ver Morin (2003), em sua instigante obra «A cabeça bem-feita. Repensar a reforma, reformar o pensamento».

de recolha dos dados, são praticamente utilizáveis» (Bourdieu, 1987:26). Nesta operação de construção metodológica, entra em cena, mais uma vez, o «rigor criativo», conjugando a «liberdade extrema» com uma «extrema vigilância» das condições de utilização de dife- rentes estratégias metodológicas.

Nos rumos desta construção aberta e plural, impõe-se a articu- lação de saberes de natureza distinta, rompendo com a hierarquização arbitrária, dentro dos padrões dominantes da Ciência Moderna que, por séculos, produziu a «não-existência de outros saberes», para além da ciência e da técnica24. É a articulação da ecologia de saberes, em um diálogo eminentemente horizontal, capaz de ampliar os horizon- tes do conhecimento.

Por fim, cabe destacar que o processo de pesquisa - como um campo de permanente tessitura - é permeado por dificuldades e ten- sões… Na intimidade do «laboratório», da «oficina» ou do «escritório de trabalho», o(a) pesquisador/pesquisadora, no seu processo de cria- ção, vivencia sempre dúvidas, inseguranças, hesitações, angústias. Na verdade, na aventura do conhecer, as dificuldades complexificam-se a exigir do(a) pesquisador/pesquisadora competência analítica, cria- tividade, esforço sistemático e disciplina, vigilância permanente… Em verdade, a cada experiência de pesquisa, em nossa trajetória na «aventura do desvendar», vivenciamos a grande lição de Bourdieu: «Nada é mais universal e universalizável do que as dificuldades» (1989:18).

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24Boaventura de Sousa Santos (2004, 2006, 2007a), em sua análise da indolência da razão, nos marcos da modernidade ocidental, demarca, como uma das encarnações desta razão indolente, o que chama de «razão metonímica» que se reivindica como uma única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir outras formas de racionalidade. Nesta perspectiva é que a racionalidade da ciência moderna efetivou a supressão de saberes, construindo a sua não-existência. Assim, propõe a «Sociologia das Ausências», a efetivar a «Ecologia de Saberes».

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