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4.3 Estigma, o alicerce das barreiras: “você saber que está com aids, vai sabendo

4.3.1 A ideia de culpa e o estigma da aids

O acesso ao diagnóstico e tratamento do HIV/Aids, ao longo do tempo, tem sido influenciado de maneira decisiva por sentimentos de culpa, ausência de informações e impossibilidade de confrontar suas vivências pessoais e o que é dito sobre a Aids e o HIV, por vezes, prejudicando a eficácia do cuidado em saúde (PARKER; AGGLETON, 2001; GUERRA; SEIDL, 2009).

A culpa, face ao HIV, envolve aspectos relacionados a julgamentos morais construídos e partilhados culturalmente sob uma determinada consciência de justiça, estabelecendo tipos de conduta e atitudes prescritos pela sociedade como corretos (CARVALHO; GALVÃO, 2010).

Ao longo da história, podem-se enumerar diversas representações negativas relacionadas à aids: “doença de gay”, “peste gay”, de comportamento “promíscuo”, de “drogado”, de mulher “da vida”. No início dos anos de 1980, houve forte associação com um “comportamento imoral” e que se tornou símbolo da propagação da epidemia da aids, com fortes reverberações de culpabilização das pessoas (SEIDL, 2010).

A ideia de “peste” e “desleixo” foi relatada nesta pesquisa por algumas entrevistadas ao se referirem às companheiras de trabalho que vivem com o HIV em sua zona de prostituição: aqui têm muitas „amiguinhas‟ minha aqui (zona de prostituição) que estão contagiosa (vivem

com aids) e nem dizem nada, tão só botando os outros em perigo,..,eu conheço uma menina aqui que pegou (aids), eu não tenho muita proximidade com ela não, mas eu sei e vejo que ela num está mais nem aí para vida

dela, não sei o porquê ... eu fiquei triste, quando eu soube pensei logo que Deus me protegesse para mim nunca passar pelo o que ela está passando. O tratamento, ela nem está mais ligando para nada, ela também é dependente química, aí já se jogou mesmo, já se entregou, esperando só que Deus dê a hora dela, eu sei é que ela continua empestando os outros...está nem ligando de passar para os outros, está é querendo levar outros

junto com ela...eu tenho é medo (Ana Cláudia, 45 anos). Quando um homem diz que paga mais para não usar (preservativo), eu fico com medo sim, eu fico achando que é porque o homem já tem (Aids) e quer passar para nós, aí eu fico com medo, eu saio logo do quarto quando eu vejo que não tem camisinha, eu perco o dinheiro do programa, a gente pode pegar uma coisa mais grave, a gente não tem condição de se tratar, aí é melhor ficar sem fazer mesmo, esses homens de mente ruim, sem nada a perder porque já está com essa doença mesmo, eu não, Deus me livre... (Romélia, 46 anos).

As palavras assinaladas acima em negrito não existem no dicionário, são denominações criadas a partir dos contextos de estigma discutidos. Destacam-nas para mostrar que há certos códigos de linguagem desenvolvidos pelas próprias profissionais do sexo em campo, identificando as portadoras de HIV como pessoas diferentes e/ou piores do que outras. As concepções acima relatadas demonstraram forte repulsa com relação à aids. No caso dessas mulheres, não reverberou de forma positiva, Ana Claúdia somente tinha feito o teste uma vez por ter vivenciado uma situação em que se sentiu sob risco (o preservativo rompeu) e Romélia nunca tinha feito o teste.

Há gradiente que se desenvolve neste jogo de estigmas, o preconceito, sendo desdobrado, pode ser maior ou menor dependendo do contexto analisado. Percebeu-se que a carga de discriminação aumenta quando, somado ao exercício da prostituição, ocorre a infecção pelo HIV.

A representação da aids em estreita relação com a morte também tem sido corrente nos relatos analisados, e funciona como alicerce para os contextos de culpabilização das pessoas. Algumas mulheres discorreram sobre este contexto de uma forma fatalista, construída ainda no início da epidemia, e que, com a força do estigma social da aids persistente ao longo de todos estes anos, ainda reverbera com tanta veemência: Para ser sincera, a pessoa que tem aids para ficar curada? Curada fica amorzinho, mas dentro do cemitério, porque ela (aids) veio para matar todo mundo. Eu acho que para mim, Deus me livre (de ter sorologia positiva para HIV), minha nossa senhora pelas horas que são, prefiro uma boa morte, ou até mesmo uma má morte do que isso, acho que a partir do momento que eu fizesse o exame e eu soubesse que estava com aids, com certeza eu ia me decepcionar e jamais iria tá transmitindo para outra pessoa que não tem culpa... (Adélia, 34 anos). Se eu soubesse que eu era soropositiva (para o HIV), tudo mudaria na minha vida, tudo mesmo, acho que nem a capacidade de eu ter relação, eu nem teria mais coragem, eu acho que era melhor morrer antes, era melhor morrer logo, quando a pessoa sabe do resultado positivo, ela se acaba mais rápido, porque vai acabar com tudo, acaba com a sua vida, com o seu lazer, num instante você se acaba, rapidinho. A pessoa que tem aids está lascada, lógico que acabou a vida, já está morto, é questão de tempo,..., eu tenho muito medo da morte, eu tenho muito medo de perder minha vida (Ana Cláudia, 45 anos). Eu me sentiria uma morta viva, deve ser muito difícil superar um caso desse (Ana Karine, 27 anos).

Essas três mulheres fizeram o teste uma vez na vida, por motivos pontuais, mas que não se concretizaram em cuidados contínuos por este aspecto. Nesta perspectiva, a

situação de viver com aids, com a possibilidade imaginária de morte iminente reforça em demasia a própria representação da culpa e, consequentemente, afasta as mulheres da decisão de saber sua sorologia.

Uma das participantes do estudo, ao ser questionada sobre a necessidade de punição para alguém que viva com o HIV/Aids, fez a associação direta, afirmando que estar com aids já é a devida punição: Acho que nem precisa punir, a pessoa já tem aids, para quê maior punição? (Karla, 27 anos).

Sobre a “intenção” de transmitir o HIV, ideia que ostenta a configuração de culpabilização para quem já vive com a doença, foi descrita também uma situação em que a pessoa que se infecta foi enganada por não saber da sorologia com quem teve uma relação sexual, e parece que este é que tinha a responsabilidade única pela prevenção: Uma pessoa que pegou aids foi enganada, se ele pegou de alguém, essa pessoa enganou ele, transou sem camisinha e passou para pessoa (Marlene, 50 anos).

Assim, percebe-se que dentro do próprio cenário vivido existe heterogeneidade e diferentes nuances de discriminação entre as mulheres que trabalham com sexo com relação à questão do HIV. Na realidade estudada, ocorre dupla discriminação pela sobreposição entre viver com HIV e prostituir-se.

A discussão sobre este tema é ainda dificultada pela força social que ele exerce e que atravessa a organização das respostas programáticas (governamentais) em torno desta questão. A desconstrução da culpa no âmbito institucional vem sendo contida também pela consciência social negativa sobre aids dos próprios trabalhadores e governantes na área da saúde (PARKER; AGGLETON, 2001).

A partir das discussões procedidas durante a pesquisa, e também do acúmulo relativo ao trabalho cotidiano da autora como coordenadora da política de aids em Fortaleza, no Brasil, pôde-se perceber que a Aids, assim como outros problemas de saúde pública, como o aborto, por exemplo, são marcados por barreiras institucionais de ordem valorativa em âmbito moral. E estas impedem inclusive a ampliação efetiva do acesso ao diagnóstico, por exemplo, via implantação concreta, de forma ampla e acessível (acolhedora), da testagem para o HIV para populações mais vulneráveis nas diversas unidades de saúde do Sistema Único de Saúde.