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Sexo, gênero, religiosidade e prostituição: sinergia de vulnerabilidades em relação

4.1. A mulher de casa e a mulher da rua

4.2.3 Interações entre o “senso comum”, o “conhecimento científico”, o

4.2.3.2 Sexo, gênero, religiosidade e prostituição: sinergia de vulnerabilidades em relação

O grau de conhecimentos nesta área é também influenciado pelas questões associadas ao modo como são construídas as relações de gênero, religiosidade e sexualidade no Brasil. A discussão do uso ou não do preservativo é um bom exemplo. Muitas mulheres e homens contraem o vírus HIV devido à falta de diálogo com os parceiros, expressas na dificuldade real de negociação do uso, centrada na história sexual e nas dificuldades de tratar o sexo como algo que pode ser dialogado. A experiência do discurso do sexo, conforme Foucault, 2008, tem demonstrado estímulo a descrever a sexualidade para melhor regrá-la e discipliná-la e não dialogar sobre suas possibilidades, principalmente em uma relação desigual que evolve gênero e classe como tem sido muitas vezes na realidade das mulheres prostitutas. Para que a mulher tenha maior poder de convencimento do uso do preservativo com o cliente ou parceiro, primeiramente, ela precisa estar convencida da necessidade (TRASFERETTI, 2005).

Algumas mulheres fizeram relação positiva do uso de camisinha por conta do maior grau de informação acerca do assunto: eu sei que transmite mais pelo sexo sem camisinha, que tem febre repentina, gripe, diarreia quando já está com a doença mesmo, quando está só com o vírus ninguém sente nada, disso eu sei, já ouvi falar muito sobre isto, tem nem perigo de eu fazer programa sem camisinha... Mas tem muita menina aqui que tem pouca instrução sobre isso e faz o que o cliente quer, porque acha que é o homem que decide, se ele quiser sem camisinha, ela faz... (Eveline, 35 anos).

Essas questões relacionadas à questão de gênero, sexo e sexualidades tem também estreita relação com a cultura religiosa brasileira. A religião pode exercer efeito sob a vida das pessoas pelo aspecto positivo, no sentido do cuidado, do abrigo, do conforto espiritual para situações tão complexas como a aids. Nesta direção, a Pastoral da Aids tem realizado trabalho intenso tanto em relação ao apoio emocional quanto assistencial de inúmeras pessoas

excluídas do seu ambiente familiar após o diagnóstico positivo. Nesse âmbito positivo da associação entre aids e religião, uma das mulheres entrevistadas abordou sobre a força paralela ao tratamento que a espiritualidade e a fé em geral, incluindo todas as religiões, podem exercer para que o diagnóstico seja metabolizado de forma positiva na vida da pessoa:

Eu acredito muito, muito, muito em Deus, mas eu acho assim, a fé junto com o tratamento, eu acho que você pode chegar numa igreja católica, cristã, ou qualquer uma outra religião, porque eu respeito todas, chegar e ficar lá, porque a bíblia diz Deus faz por ti, Deus faz, mas você tem que fazer por você, está lá na bíblia, é bíblico. Então quer dizer que se você tem o vírus da aids, se você chega numa igreja e um pastor, um padre, um pajé sei lá, qualquer outra dimensão aí, um guru diz para você largar tudo de tratamento que você vai ficar boa? E a tua parte? Deus vai fazer a parte dele e a tua parte? A tua parte é tomar os remédios, então eu acho assim uma eleva o outro, o médico e o padre, o pastor...enfim, claro que você crendo em Deus, você se assegurando na fé, com certeza você vai ficar bem mais fortalecida, a fé cura assim, a partir do momento que você se sente fortalecido, você vai ter vontade de lutar, vai ter vontade de tomar os remédios, a cura na fé é isso

(Amanda, 45 anos).

No sentido oposto, o enfrentamento57 religioso da aids também pode demandar julgamento moral e constituir um arcabouço favorável para a culpa, autopunição e preconceito. Há casos em que o enfrentamento religioso pode ser contraproducente ou fatal, como em religiões que facilitam a interpretação da doença como castigo pelo “pecado cometido” (PAIVA, 1998).

Houve relatos em que o conhecimento sobre aids esteve bastante associado ao referencial religioso e que isto dificultaria a realização do teste para o não enfrentamento da culpa diante de uma possível sorologia positiva: Tem muita menina aqui que pensa que se pegar Aids foi por castigo mesmo, porque infelizmente estava fazendo coisa errada, e Deus castigou, existe uma culpa do ela está fazendo, tem menina que tem vergonha de ser prostituta, com nojo dela mesma, se descobrir que tem HIV então, aí é que ela se culpa mesmo, acho que é por isso que tem muita menina que não vai fazer o teste

(Amanda, 45 anos).

Douglas (1992) compara as noções de risco, pecado e tabu ao analisar as questões relacionadas à aids. O discurso dos “perigos” relacionados aos “pecados” mobiliza as pessoas a partir de uma determinada moral religiosa58. A antropóloga explica que estar “em risco” é quase equivalente a estar “em pecado” ou “sob tabu”. Se estar “em risco” é pecar contra alguém (ou a si), ou estar vulnerável a eventos causados por outros, estar “em pecado” significa ser a causa do próprio dano (DOUGLAS, 1992).

57 Na definição de Pargament (1990), enfrentamento é o processo pelo qual as pessoas tentam entender e lidar com

importantes exigências pessoais ou situacionais em suas vidas.

58 Douglas (1992) utiliza o conceito de comunidade moral no sentido de mostrar que o risco, como uma maneira de pensar, é

Nessas condições “perceber-se” em risco é reconhecer-se em “pecado”, o que tem um peso moral muito forte, criando esferas de maior vulnerabilidade dependendo dos contextos vividos. No caso das mulheres profissionais do sexo, pode haver maior carga de “desvio moral” imputada pela cultura, estando na prostituição, e por isto, ter maior proximidade com um possível diagnóstico positivo para o HIV (MARTIN, 2003). Essa percepção foi encontrada junto a algumas mulheres do estudo, como uma concepção geral, aplicada para o grupo do seu entorno, e isto se configurou como barreira a realização do teste HIV: Muitas pessoas tem vergonha, tem medo, porque através desse teste (HIV) que a pessoa dá positivo, a pessoa fica com medo, fica com depressão, usa drogas, para elas a vida acabou, aí, como cada dia é cada dia, tem pessoa que não está nem aí, já tem pessoa que liga, por exemplo eu faço o teste quando eu acho que alguma coisa arriscada acontece (como estourar a camisinha), mas tem pessoa que fica muito doente com isso só de pensar, e acaba não fazendo o teste, principalmente porque pensa logo que fez „coisa errada‟, „coisa suja‟, principalmente para Deus...para mim coisa errada foi não se prevenir... (Wilma, 19 anos).

Constata-se neste estudo que embora haja produção científica intensa sobre Aids, as informações científicas mais atualizadas têm força diferenciada e menor do que o senso comum e a moral religiosa conseguem abarcar. Ainda se tem a ideia popular de que a aids é devastadora como na década de 1980. A noção antiga de grupos de risco para o HIV também ainda está muito presente nos cotidianos brasileiros. Neste estudo, encontraram-se algumas referências a estas questões: Não sei, mas acho que sim, uma pessoa que tem HIV tem culpa, acho que a pessoa está sendo castigada ... a pessoa não deveria trabalhar porque é risco para a vida dos outros, porque qualquer coisinha pode pegar na outra pessoa, menos esperar quem tem HIV, aí se contaminam, devem ficar em casa guardado ou só no hospital. A maioria dessas pessoas é tola, não usa camisinha, é abestada (nome dado às

pessoas tolas)! (Dária, 20 anos).

Contextualizando um pouco o relato acima, encontraram-se diferenças significativas de conhecimento de acordo com a região da cidade. No caso acima, na área estudada que correspondia ao entorno da Avenida Osório de Paiva, as condições de vida e trabalho eram mais precárias, e as mulheres apresentavam menor grau de escolaridade e acesso à renda. Nessa direção, segundo Barbosa Júnior (2009), as dificuldades para que as mulheres de baixa renda compreendam o que significa a aids também podem estar relacionadas com a distância do discurso biomédico (tecnicista), com o desconhecimento do próprio corpo e das representações de saúde/doença prevalentes nas camadas populares com menor nível de escolaridade (crenças religiosas, místicas, conformistas).

Pelo exposto, considera-se que o conhecimento senso comum sobre a doença não se constitui de forma natural, ele é produzido socialmente. O surgimento da aids desencadeou, no plano individual e social, teorias que combinam valores, crenças, atitudes e ações. Tura

(1998) observa que o fenômeno da aids é particularmente complexo, pois envolve a sexualidade, o afeto, o desejo, a necessidade de afirmação, além de normas, valores e informação. Neste contexto, convergem de forma sinérgica às crenças religiosas, relações de gênero e, ainda, interesses políticos e econômicos, que interferem nos programas de prevenção e no avanço da ciência. Situação que conforme se mencionou na introdução deste trabalho pôde ser avaliada na campanha de prevenção do Ministério da Saúde do Brasil de 2013, focada para mulheres prostitutas que desencadeou uma série de interpelações religiosas em contraposição a uma proposta de política de prevenção.

Na perspectiva de promover maior efetividade e divulgação das informações em aids, Schall e Struchiner (1995) defendem que as alternativas de comunicação devem estar baseadas em orientações, cujo objetivo seja a valorização da vida e a construção de opções preventivas com liberdade, responsabilidade e solidariedade, com cuidado específico para separá-las das questões religiosas.

Para enfrentar a influência social da moral religiosa, as políticas de prevenção da aids devem superar o discurso disciplinador que estrutura o entendimento social e popular sobre aids59 (subjetividades marcadas pela culpa e pela impureza, sintetizadas nos seus desejos tomados como ameaçadores da ordem social). Para os autores, não significa romper de todo com ele, mas perceber que ele é histórico e espacialmente marcado (PELÚCIO; MISKOLCI, 2009)60.

Reforçando a ideia de contexto, é preciso considerar que apenas informações sobre formas de transmissão e situações de risco podem ser insuficientes para adoção de comportamentos protetores. Ou seja, a transformação do conhecimento na adoção de práticas protetoras é mediada por questões de gênero, classe social, etnia e outros componentes sociais que não se localizam apenas na esfera individual. Assim, o poder do conhecimento na troca

59 O discurso preventivo constitui parte fundamental do que Pelúcio e Miskolci (2009) chamaram de dispositivo da aids.

Segundo Foucault (2007), um dispositivo é um “conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, filantrópicas e morais” (Foucault, 2000, p.138), ou seja, trata-se de uma trama formada por vários discursos e práticas que se materializam em saberes e poderes. O dispositivo raramente proíbe ou nega, antes controla e produz verdades moldando subjetividades. No caso da aids, são subjetividades marcadas pela culpa e pela impureza, sintetizadas nos desejos tomados como ameaçadores da ordem social.

60 Um exemplo mais recente deste enfrentamento foi quando, em 2005, o governo brasileiro recusou-se a assinar acordo com

o governo Bush, deixando de receber fundos no valor de US$ 40 milhões, por não concordar com as diretrizes da United States Agency for International Development (USAID) – agência americana de financiamento para desenvolvimento internacional – de exigir de seus subsidiados a não promoção, ou legalização da prática da prostituição. Esta postura “antiabolicionista”60 reflete certa permeabilidade às pressões dos movimentos sociais, como o das prostitutas e o das

chamadas ONGs/Aids, um dos movimentos que mais se estruturaram nas últimas décadas no país (PELÚCIO; MISKOLCI, 2009).

do comportamento depende das alternativas e perspectivas existentes para o indivíduo em uma determinada realidade social (FERREIRA, 2003).