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Os usos e conhecimentos sobre o preservativo e sua relação com o teste de H

4.1. A mulher de casa e a mulher da rua

4.2.4 Os usos e conhecimentos sobre o preservativo e sua relação com o teste de H

A ampla discussão sobre o uso da camisinha parece estar mais internalizada do que a própria necessidade de se fazer o teste de forma continuada. Algumas mulheres do estudo colocaram que o uso consistente do preservativo já é suficiente para sentir-se sob menos risco. Mesmo diante do cenário com múltiplos parceiros, reconhecendo a realidade em que o preservativo tem maior facilidade de rasgar por tantas relações sexuais no mesmo dia, muitas vezes sem lubrificação, ainda assim, elas não se sentem sob maior risco, e que por isto não fazem o teste com frequência, uma delas nunca fez (Romélia) e a outra fez de forma esporádica (Amanda): As pessoas falam que aids é muito perigoso, que a gente precisa tomar cuidado, que a gente precisa usar preservativo, aí nós temos que ter cuidado mesmo,o cuidado é transar com camisinha, eu só faço aqui (zona de prostituição) com camisinha ... é realmente a gente não tem doença não, a gente sempre usa camisinha ... eu nunca fiz o teste de aids não, eu uso camisinha, eu nunca fiz porque eu me esqueço, eu também num tenho vontade de fazer não, é porque eu não preciso mesmo, eu não tenho medo não, eu sou desleixada mesmo com esse negócio de médico (Romélia, 46 anos). Eu fiz meu último teste há uns três anos, não fiz mais porque a partir desse momento que você se conscientiza do uso da camisinha, você não corre mais risco, não só para aids, como para DST... (Amanda, 45 anos).

Continuando a análise de percepção de risco de Romélia, ao longo da conversa e das visitas no campo, ela relatou que já vivenciou situações em que o uso do preservativo falhou, e mesmo assim sua atitude não foi direcionada para realização do teste. Suas representações em torno da transmissão da doença pairavam sob dois aspectos que se configuravam como barreiras ao teste. O primeiro relacionava-se com a afirmação do uso consistente do preservativo como modo formal de sentir-se segura (sem ponderações sobre as várias possibilidades de rasgar). O segundo aspecto era que a sua necessidade de um dia fazer o teste estava centrada na busca por sintomas nos clientes, neste caso, estendendo-se também para Karla: Aqueles mais magros eu pergunto se já fez teste de aids (risos) ... é que eu fico assim na dúvida, porque tem uns caras que têm os sintomas de soropositivo, aí eu tomo cuidado maior para que a camisinha não estoure (Karla, 27 anos). Quando a camisinha rasgou, eu pensei: „e agora?‟, fiquei olhando para aquele homem e pensando: „será que esse homem botou aids em mim?‟, fiquei pensando num bocado de coisa mais, mas ele era forte, tinha cara de doente não, eu me lembrei de fazer o teste, mas aí eu chego em casa, uma coisa e outra, eu vou me esquecendo,...,que eu tenho medo de pegar aids eu tenho, por isso quando eu entrei nessa vida já foi confiando em usar a camisinha, mas eu tenho muito medo mesmo... (Romélia, 46 anos).

Desse modo, cabe avaliar como as informações são apreendidas pelas mulheres sobre o uso da camisinha e a epidemia da aids, de que modo essas mulheres aprendem a exercitar a prevenção em seus cotidianos. Paiva (2000) salienta que o modo como se vem ensinando o uso do preservativo acaba condicionando que se construa uma ideia de “imposição” da camisinha e a necessidade de racionalizar e medicalizar a relação sexual, principalmente se tomar como exemplo a frase amplamente utilizada ao longo de muitas campanhas de enfrentamento da aids: “Use camisinha sempre”. Campanhas estas que não necessariamente repercutiram em práticas sexuais mais seguras. Em relação às profissionais do sexo, por exemplo, não se discute em programas educativos os modos de uso do preservativo em consonância com seus riscos inerentes à ocupação (rasgar, o cliente retirar no ato sexual e outras violências).

A ideia da camisinha como propulsora de proteção estava bem disseminada dentre as mulheres do estudo, mesmo que pouco problematizada nas diversidades de risco no seu uso, já a questão do teste não teve a mesma intensidade. Seguem abaixo os relatos de quatro mulheres que nunca fizeram o teste, mas afirmavam uso consistente do preservativo no trabalho: Eu sei que a aids, se a pessoa pegar não tem cura, sei que a pessoa tem que usar camisinha, jamais deixar de usar, mas sempre tem um deslize, a gente sabe, nunca fiz o teste porque sempre existe aquele medo, eu vivo com uma dúvida, mas também eu não acredito que eu tenha não, porque eu sou muito saudável, e eu uso sempre camisinha ... a dúvida é mesmo pelos „pulinhos‟ que eu dei (transou sem camisinha) (Selma, 35 anos). O que eu sei é que não pode transar sem camisinha, nem beijar na boca com dente furado, senão pega aids, mas eu nunca fiz esse teste aí, não sei onde é que faz, também nunca ninguém tinha falado para mim desse jeito está falando (Meire, 30 anos). Eu não tenho muito conhecimento dessa doença não, mas eu sei que com a vida que a gente leva tem que usar camisinha sempre, sempre, mas eu nunca fiz esse teste aí não porque eu nem sei onde faz, nem sei nada sobre ele (Ridna, 35 anos). Eu sei é que aids transmite pelo sexo, mas não sei nada do tratamento, só sei mesmo é que os cabelos caem, a pessoa emagrece, e que tem que usar camisinha toda vida, acabei ficando curiosa de fazer esse teste aí, mas eu acho que eu não tenho risco não porque sempre eu faço com camisinha (com o cliente) (Andréia, 18 anos).

Percebeu-se que entre as mulheres que nunca tinham feito o teste, a ideia do teste foi afastada tanto pela exacerbação do uso do preservativo como a devida forma de se estar segura em relação à aids, quanto pela falta de informações de onde fazê-lo e do incipiente incentivo externo.

Nessa perspectiva, a relação entre a diversificação de práticas sexuais e o uso da camisinha no exercício da prostituição também foi descrito pelas mulheres, conformando um desenho de riscos inerentes ao trabalho com sexo. Mas, mesmo diante desta consciência do risco que determina o uso consistente do preservativo com os clientes, em ambas as situações

abaixo, Dária e Penélope somente fizeram o teste uma vez por causa do pré-natal e a outra de uma consulta de prevenção ginecológica, respectivamente: fazendo programa a gente está sujeita a um monte de coisa, mas tem gente que não se cuida, não usa preservativo, transa sem camisinha, transa com qualquer um, qualquer cachorro que passa, eu acho que também o HIV não pega só nas partes íntimas, pega também na pessoa fazendo oral sem camisinha, de qualquer jeito se você não se cuidar, você pega, tanto faz fazer na frente (vagina) ou atrás (ânus), fazendo sem camisinha, pega... (Dária, 20 anos). Quem tem mais risco de pegar é quem faz sem camisinha na frente e atrás, mas eu também corro risco de pegar aids porque eu sou garota de programa, a camisinha pode rasgar, os homens furam a camisinha sem a gente ver, eles às vezes não querem usar a da gente (camisinha), querem usar da deles (camisinha que eles trazem consigo), eu fico pensando se eles já não trazem é furada (Penélope, 29 anos).

Outro aspecto levantado por uma das mulheres entrevistadas foi a atribuição do risco em relação à idade do cliente, Rosalba fez referência aos homens mais novos como os de maior risco, afirmando que eles oferecem o dobro do valor do programa para não usar o preservativo, enquanto que muitos idosos/„velhos‟, por não terem mais ereção, não priorizam a penetração: eu prefiro os velhos, porque os novos eles transam, e os velhos eles não transam, só fazem chupar, eu acho que os homens mais novos é que tem mais risco, porque eu vejo eles saírem daqui com todo tipo de pessoa, porque, por exemplo, eu faço meus programas quando ele vem dizendo logo, eu dou tanto sem camisinha, sempre os homens mais novos, agora os velhos não, mais os novos... (Rosalba, 48 anos).Uma das

entrevistadas, fez referência às situações de uso da camisinha, discutindo a relação entre risco, razão e prazer. Relatou que, embora se considere „com pouca instrução sobre o assunto

(Aids)‟, reconheceu a influência social do prazer nessa decisão de se proteger ou não: A maioria do pessoal num tão nem aí se usa camisinha ou não, muitas pessoas o que importa é o prazer, tendo prazer é o que importa, aí depois está com a doença, não sabe porque...Cada um com suas coisas, é a vida, a gente não advinha se vai pegar uma doença amanhã ou não, se pegar, é porque tinha que acontecer, mas tinha como a pessoa evitar, mas não evitou porque muita gente só pensa no prazer, não na vida, não na saúde (Wilma, 19

anos).

Em outra direção, percebeu-se também no discurso de algumas mulheres que o prazer pode ser reorientado pela razão, tanto por parte das mulheres, como por parte dos clientes. Romélia, embora nunca tenha feito o teste, ressaltou que questão do hábito é que torna o uso do preservativo consistente e a sensação de segurança é que consolida o prazer: Se prevenir com camisinha não impede de fazer o programa normal, não tira a sensação, fica é mais tranquilo para os dois, mais a vontade, não tem problema fazer a putaria! A camisinha só tira o prazer se for aquele bicho ignorante que bote a camisinha de qualquer jeito, que não tem costume de usar, um homem ignorante já não vai dar certo, mas se prevenir com camisinha e fazer um carinho agradável, a camisinha não importa nada

(Romélia, 46 anos).

Considerando este cenário, entende-se que a compreensão somente centrada na necessidade de utilização frequente do preservativo muitas vezes aparece como barreira para

realização do teste, pois gera uma falsa ideia de proteção absoluta e camufla os riscos. Acredita-se que tal situação se constitui devido a uma intervenção dos programas de aids, muitas vezes pouco dialogado e mais imperativo no intento: “use camisinha”, de modo que essas mulheres consideram-se protegidas do HIV ao se apegarem muitas vezes de forma não efetiva ao uso constante do preservativo.

Mesmo com uso frequente, muitas vezes, as PS se encontram em situação de sexo não necessariamente seguro, quando a camisinha rasga ou o cliente retira durante a relação sexual. Deste modo, entende-se que a ampla disseminação da ideia “use camisinha” prosseguiu nas últimas décadas desacompanhada de informações mais detalhadas sobre saúde sexual e Aids, o que tem dificultado o acesso e a compreensão da importância da realização do teste por estas mulheres.

A discussão sobre risco, ao ser incorporada em programas educativos em saúde, nem sempre pondera a necessidade de interação com o modo como as pessoas interpretam o próprio risco (KENDALL, 1995).

4.3 Estigma, o alicerce das barreiras: “você saber que está com aids, vai sabendo que vai