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Estratégias de prevenção e cuidados de si nas diversas práticas da mulher da rua

4.1. A mulher de casa e a mulher da rua

4.1.3. Estratégias de prevenção e cuidados de si nas diversas práticas da mulher da rua

Quando se aprofundou nesta compreensão de contextos reais de proteção nesta diversidade de prostituições, observou-se que em relação ao uso do preservativo, por exemplo, o processo de negociação transcende à negociação inicial. Foi descrita por mais de uma mulher a situação em que o cliente aceita inicialmente o uso da camisinha para não perder o programa, mas dentro do quarto, ocorrem constantes tentativas de retirá-la sem que a mulher perceba.

Foi feita referência a esta situação como ocasionadora de tensionamentos constantes durante as relações sexuais no trabalho, consideradas violentas por também estarem atravessadas por desconfiança e medo de forma tão concreta. O uso do preservativo foi considerado como processual mediante a necessidade de negociação no trabalho, além de muito centrado na força individual da mulher em se prevenir, afinal, no quarto o domínio irá se estabelecer entre ela e o cliente, bem como não há regulação estatal ou social que esteja envolvida com o exercício desta prática. Dependendo do grau de autonomia, consciência e esclarecimento sobre esta questão, ela estará mais ou menos protegida: Eu uso camisinha sempre com os meus clientes. O que acontece é que não é só isso, já aconteceu até dele querer tirar sem eu ver, aí pronto eu fico louca, tensa, porque fazer sem preservativo, não... quando eu percebo que está tirando, termina o programa. Não tem mais programa, acabou o programa. Eu já fico atenta porque eu já sei, quando fala não gosto de camisinha, mas tem que usar, e já fico atenta naquilo ali, a minha preocupação já é naquilo ali, porque sei que tem muito homem sem vergonha, eu tenho medo dele está é querendo contagiar eu e nessa hora tem ninguém por nós não, só nós mesmos...na prostituição é assim minha filha, se você não for por você, tem ninguém mais não viu (Ana Claudia, 45 anos).

No cruzamento entre prostituição e aids, a marginalidade do cotidiano interfere de forma direta no modo de constituir proteção. Como não há estruturação social que regule o exercício desta ocupação, nem pelo aspecto moral, nem pelo aspecto legal, fica a critério do acúmulo subjetivo de cada mulher. Inclui-se neste acúmulo tanto condições materiais para manter sua sobrevivência quanto à capacidade imaterial acumulada de refletir e se posicionar diante da pressão social (por parte dos clientes), tanto pelo não uso da camisinha para “sentir mais prazer” quanto pela aquisição de dinheiro para dar conta de sua vida material cotidiana.

Neste sentido, muitas mulheres relataram suas estratégias de prevenção adotadas, e dentre elas, percebeu-se que quanto maior sua capacidade de se proteger com relação ao uso da camisinha, maior também a motivação em fazer o teste de HIV espontaneamente42: Quando fico com medo do cliente tirar a camisinha (muitas entrevistadas relatam a prática de que o cliente às vezes tenta tirar

a camisinha sem que elas percebam), então eu faço uma posição de dominação no sexo, uma posição que eu

fique por cima e/ou de frente para me proteger... Quando o cliente não quer usar, não tem programa, eu já negocio antes, ainda na mesa do bar, o programa inclusive é pago antes também. Já tive problema quando o cliente usou droga, aí acordou tudo bem direitinho no salão, pagou o programa sabendo que era com camisinha, quando chegou ao quarto, por causa da droga não quis usar, nesses casos, se ele já tiver me visto nua, não devolvo o dinheiro não, mas o fato é que não há programa sem camisinha (Lis, 22 anos). Tem gente

(refere-se a mulheres e clientes) que não se preocupa. Tem homem aqui que bota mais dinheiro para não usar

camisinha, eu não vou mesmo, uma pessoa dessa não se confia, tem homem aqui que sai do quarto com raiva porque eu vou logo colocando a camisinha, já caio de boca com ela, e mesmo que já tenha feito o acordo com ele lá fora de usar a camisinha, lá dentro ele acha que vai enrolar a gente. Se o cliente não quiser usar, eu saio do quarto, já foi combinado, ele já sabia, já pagou mesmo, tem menina que não tem força e faz, acostuma mal o cliente (Margarida, 23 anos).

As identificações dessas mulheres com a prostituição (com o risco) reverbera na manipulação e incorporação de estratégias43 de prevenção de acordo com o local e as pessoas

com as quais interagem (DE CERTEAU, 1996). A narrativa de Lis e Margarida sobre esses diferentes modos de atuar em determinadas situações consideradas de risco encenam subversão desse lugar da prostituição como “fatalmente o lugar da falta de proteção”. Outra mulher, Penélope, também descreveu o modo como dominava o programa em termos de tempo e segurança falando de suas práticas „táticas‟: A prática sexual para mim mais comum que eu faço é de quatro, os homens gostam, ficam loucos, gozam logo e pronto, acaba logo o programa, desço e pego outro (Penélope, 29 anos).

Esse processo de reorganização das estratégias e de reinvenção das situações foi proposto por De Certeau (1996), o autor disserta sobre a elaboração de diferentes possibilidades de socializar-se e interagir com estas questões. A partir desta capacidade de articular modos diferenciados de proteção que deveria ser trabalhado o incentivo ao teste.

Retoma-se a seguir uma parte do discurso de Ana Cláudia (entrevistada da pesquisa) que também relata sobre estas estratégias de prevenção, como terminar o programa, caso o cliente tente tirar a camisinha, e estar atenta ao cliente que não gosta de usar preservativo: Eu uso camisinha sempre com os meus clientes. O que acontece é que não é só isso, já aconteceu até dele querer tirar sem eu ver, aí pronto eu fico louca, tensa, porque fazer sem preservativo não dá

42 O que estamos considerando como espontaneamente é o fato de não estar atrelado ao pré-natal, mais a frente, no capítulo

sobre políticas públicas, será discutida esta relação de modo mais detalhado.

43“Estratégias”, de acordo De Certeau (1996), podem ser entendidas como maneiras de se subverter o espaço e a situação

... quando eu percebo que está tirando, termina o programa. Não tem mais programa, acabou o programa. Eu já fico atenta porque eu já sei, quando fala não gosto de camisinha, mas tem que usar, e já fico atenta naquilo ali, a minha preocupação já é naquilo ali, porque sei que tem muito homem sem vergonha, eu tenho medo dele está é querendo contagiar eu (Ana Claudia, 45 anos).

A questão da higiene também foi identificada como um modo de se proteger caso haja intercorrência inesperada durante o ato sexual, como o preservativo furar. A lavagem dos órgãos sexuais foi deliberada como estratégia de cuidado, sendo a realização do teste desmotivada pela não percepção de risco em virtude da aparência do cliente: Eu só fiz teste quando estava grávida da minha última menina, há três anos, depois desses anos eu não fiz mais, só uma camisinha rasgou, mas eu nem fiz o exame, fiz foi me aciar (lavar-se) bem rápido e pronto, confiar em Deus, pensando que podia está tudo bem também porque o cliente não tinha cara de doente não...(Eveline, 35 anos).

Para a maioria das prostitutas, enfrentar essas situações de vulnerabilidades em suas diversas práticas de prostituição requer negociação, vigilância e compreensão da própria condição de vulnerável. A partir desses relatos, constatou-se que algumas delas se sentiam expostas, devido à complexidade posta, mas que também estavam superando estas dificuldades pela adoção de estratégias que subvertem esta ordem. Compreende-se então que essas mulheres buscam formas de driblar essas situações sociais de invisibilidade na prostituição de forma relativizada. Pode ser que ela tenha clientes que sejam mais ou menos violentos, acostumados ou não ao uso do preservativo, por exemplo. Mas, em busca de prever essa possibilidade, esses sujeitos bricolam44 com o contexto de socialização, buscando estratégias de reinventar a experiência cotidiana, no exercício da prostituição (DE CERTEAU, 1996).

A capacidade de reinvenção das situações, através da criação de estratégias de prevenção que burlam contextos desfavoráveis e arriscados na prostituição constituiu neste estudo um potencial incentivo para realização do teste de HIV. As cinco mulheres citadas acima já fizeram alguma vez na vida para além da questão do pré natal. Na busca de maior proteção, em geral no exercício profissional, as mulheres desenvolveram capacidade reflexiva que pode impulsionar a vontade de saber sua sorologia e estabelecer plano pessoais de autocuidado.

44 O termo bricolar tem origem no vocabulário francês bricolage, que é definido como uma “colagem” de fragmento. Trata-se

do ato de remontar algo sem uma técnica ou norma predeterminada. De modo que a pessoa que bricola executa algo sem um projeto preconcebido, resignificando possibilidades e inventado caminhos por meio do improviso. O entendimento sobre bricolagem, para De Certeau (1996), constitui-se como ação de "colagem", invenção de formas, possibilidades e combinações de procedimentos que possibilitam múltiplas maneiras de vivenciar o cotidiano.