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À guisa de introdução, o curso enveredou por um caminho de discussão que en- tende que definições e práticas relacionadas a drogas (lícitas e ilícitas) são produtos de processos históricos e culturais, que remetem a modos particulares de compreensão, ex- perimentação e engajamento no mundo, sujeitos a regularidades e padrões, mas também a variações e mudanças (LABATE et al., 2008). Exatamente por isso poucos fenômenos remetem a complexas significações e, ao mesmo tempo, têm sido expostos a tamanhas formas conceituais simplistas e manipuladas, como o uso de substâncias psicoativas (SPA)2.

Esse entendimento é importante para evitar uma discussão sobre drogas de ma- neira predeterminada e cartesiana (ou boas, ou más). A essência da discussão sobre consumo de drogas remete a questões complexas e contraditórias, como liberdade, so- frimento, prazer, transcendência, sociabilidade, violência, crime, comércio e guerra, isso para citar apenas alguns dos múltiplos entendimentos e impactos do tema (LABATE et al., 2008).

Desde as formações sociais primitivas e pré-capitalistas, a humanidade faz uso/ abuso de drogas para a nutrição, para combater as suas doenças, mas também para alcançar o transcendente, influenciar o humor, buscar a paz ou a excitação, enfim, para buscar outra noção de existência. Seibel (2010, p. 7) afirma que as substâncias psicoativas eram usadas também em cerimoniais religiosos e práticas terapêuticas:

A relação do homem com as substâncias psicoativas é bastante antiga ou, melhor dizendo, ancestral. Assim, mostra-se equivocada a ideia de que a presença das drogas é um evento novo no repertório humano. Na verdade, trata-se de uma presença contínua no tempo e que envolve não somente medicina e ciência, mas também magia, religião, cultura, festa e deleite.

Na Europa da Idade Média, a Igreja cristã definiu que o consumo de substâncias psicoativas era proibido, e quem ousasse desobedecer à lei corria o risco de ser queimado em fogueiras, uma vez que essa prática era considerada bruxaria ou pacto com o demô-

2 Substâncias psicoativas ou substâncias psicotrópicas são formas de designar produtos químicos capazes de provocar alterações no sistema nervoso central, afetando especialmente a percepção e o humor, podendo causar sensações de prazer, euforia e/ou alívio (SEIBEL, 2010).

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nio. Apesar disso, nas religiões de cunho cristão, o vinho constitui-se em um elemento de grande importância, uma vez que simboliza o sangue de Cristo.

Até meados do século XIX, o Brasil não havia sistematizado qualquer controle ofi- cial sobre as drogas, que eram admitidas e usadas em lugares em que apenas moços das classes média e alta frequentavam. Mas, no início da década de 1920, o governo brasileiro se propõe a trabalhar no controle sobre o uso de drogas como ópio e cocaína. Naquele momento, o uso constante, até então limitado à classe burguesa nos espaços privados, como os prostíbulos, passou a se espalhar nas ruas entre as classes subalternizadas na época: negros, imigrantes e pobres. Essa circulação passou a incomodar uma sociedade que começava a pressionar por respostas do Estado, que editou lei proibitiva na utilização de várias drogas, tornando passível de punição todo tipo de utilização que não seguisse indicação médica. Tem início a história das políticas públicas voltadas ao controle do uso de entorpecentes e não para a proteção/atendimento do indivíduo que usa essa droga (REVISTA DIÁLOGOS, 2009).

É durante esse período que se dá o início da estigmatização das drogas e dos usuários, de forma que o uso excessivo de substâncias psicoativas passa a ser visto como uma doença ou desordem social, e o Estado passa, então, a usar força repressora para controlar o uso de psicotrópicos. No Brasil, por causa da nossa formação histórica conser- vadora, sempre houve uma tendência a uma leitura da questão da dependência química atrelando-a à culpabilização do sujeito, havendo um histórico de intervenções associadas entre saúde e justiça, e consequentemente penalização e encarceramento.

Com o relevante crescimento da população, a cidade passou a se de- parar com alguns problemas, e dentre eles, a presença dos loucos e adictos pelas ruas, o destino deles era a prisão, ou a Santa Casa de Misericórdia, que era um local de amparo, de caridade, não um local de tratamento. Lá os [...] insanos ficavam amontoados em porões, sofren- do repressões físicas quando agitados, sem contar com assistência médica, expostos ao contágio por doenças infecciosas e subnutridos. Interessante observar que naquele momento, o recolhimento não pos- suía uma atitude de tratamento terapêutico, mas, sim, de salvaguardar a ordem pública3. (MACIEL, 2013, p 13).

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Mesmo com a mudança de modelo trazida pela Reforma Psiquiátrica, a lacuna na política pública de saúde ainda não foi preenchida, ficando muitas vezes a questão das drogas relegada às instituições da justiça, segurança pública, filantropia e/ou associações religiosas, que têm como alvo ora a higienização social, ora a abstinência, não contem- plando a perspectiva de redução de danos.

Uma consequência disso é uma percepção distorcida da realidade do uso/abuso que dissemina uma cultura que não separa o uso de drogas da criminalidade (como se a existência de uma fosse atrelada à do outro) e que combate substâncias (seres inani- mados), relegando a um plano menos importante o indivíduo, que deveria ser o foco das intervenções. Vale lembrar que a droga é apenas um dos fatores da tríade que leva à dependência. Os outros dois são o indivíduo e a sociedade.

Apesar de não haver um consenso na literatura sobre a classificação dos tipos de usuários de drogas, a Organização Mundial de Saúde e a Unesco recomendam uma clas- sificação generalista, que em linhas gerais não destoa da classificação trazida pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM): usuário leve ou ocasional, usuário moderado ou habitual e usuário pesado ou dependente. Essa classificação é baseada em padrões individuais de consumo.

A OMS define que o uso se torna nocivo quando há um padrão de uso que cause danos à saúde, podendo ser esse de natureza física, mental ou social. Já a dependência se instalaria quando houvesse uma relação disfuncional entre um indivíduo e seu modo de consumir uma determinada substância psicoativa. Essa relação tende a produzir de- terminados comportamentos, como: a) compulsão (desejo incontrolável de consumir uma substância, também conhecido por fissura), b) aumento da tolerância (doses crescentes da substância para alcançar efeitos antes obtidos com doses menores), c) abstinência (sintomas de desconforto quando o consumo da droga cessa ou é reduzido), d) alívio da abstinência pelo aumento do consumo (que, ao contrário do início do uso, terá como fina- lidade o alívio dos sintomas de abstinência, do desprazer; não a busca pelo prazer), e) re- levância do consumo (tornando-se uma prioridade para o indivíduo) (DIEHL; CORDEIRO; LARANJEIRA, 2011). Para além do indivíduo, há também especificidades nas substâncias consumidas.

Atualmente no Brasil, o perfil do dependente químico atendido nas instituições públicas é o indivíduo jovem, desempregado, com baixa escolaridade e baixo poder aqui- sitivo, proveniente de família em situação de vulnerabilidade social e com antecedentes de uso de droga e comportamento de risco. Ou seja, é o perfil das classes e grupos subalter- nizados, muitos dos quais já conhecidos por serem público-alvo da política de Assistência Social (BARBOZA, 2014).

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