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PARTE I – Processos de mudança através de códigos de ética

Capítulo 2. Mudança cultural

2.2. Perspetivas de cultura

2.2.1. Cultura organizacional: variável e metáfora

Depois de sintetizadas as abordagens às perspetivas de cultura de a) Smircich, b) Schein, c) Hatch, d) Williams e e) Martin exploram-se de seguida os seus contributos enquanto autores de referência para a compreensão da cultura organizacional.

a) Linda Smircich (1983)

No início dos anos oitenta, quando a cultura começou a ser um tema importante para o meio académico, Smircich analisou os diferentes estudos da academia a partir do conceito de “cultura” (da antropologia) e do conceito de “organização” (da teoria organizacional).

Mudança cultural como alinhamento e transformação: o caso do Código de Ética EDP Nesta análise sugere um paralelismo entre os termos comparative management e

corporate culture: a cultura é uma variável externa que faz parte do ambiente e que é

vista como uma força motriz; a cultura é uma variável interna que resulta da ação e interação humana. Ambos encaram a organização como um organismo que existe num ambiente que condiciona e conduz o comportamento organizacional. Os estudos com base nestas temáticas debruçam-se sobre padrões de relacionamentos entre e dentro das fronteiras das organizações, tentando identificar meios de previsão para o seu controlo e melhores meios para a sua gestão.

Encarando a organização como um fenómeno social os temas organizational cognition,

organizational symbolism e unconscious processes and organization usam a cultura

como uma metáfora na conceptualização da organização. Os estudos baseados nestes temas debruçam-se também sobre a linguagem, símbolos, mitos, histórias e rituais, mas não os assumem como artefactos culturais. No entanto, ao contrário da perspetiva da cultura como uma variável, assumem-nos como processos que geram e moldam significados e que são fundamentais à própria existência da organização.

Na reflexão acerca da natureza da cultura Smircich conclui que os estudos que consideram a cultura organizacional como uma variável vêm a cultura como algo que as organizações “têm” e, assim, procuram perceber “o que é que as organizações fazem e como é que o podem fazer mais eficientemente” (Smircich, 1983, p. 353), assumindo uma perspetiva manegerialista. Os estudos que consideram a cultura organizacional como uma metáfora vêem-na como algo que as organizações “são” e, assim, redirecionam a sua atenção para compreender “como é que a organização emerge e o que é que significa gerir” (p. 353).

A perspetiva de cultura como uma variável foi dominante nos anos oitenta do século XX mas é ainda popular entre consultores e gestores. Nos anos noventa, a perspetiva de cultura como metáfora foi ganhando relevância entre o meio académico.

b) Edgar Schein (1983 a; 1983 b)

Para este autor, cultura organizacional corresponde “às assunções que um dado grupo inventou, descobriu ou desenvolveu ao aprender a lidar com seus problemas de

Mudança cultural como alinhamento e transformação: o caso do Código de Ética EDP adaptação externa ou integração interna, e que funcionaram suficientemente bem para serem consideradas válidas e, portanto, serem ensinadas aos novos membros como a forma correta de perceber, pensar e sentir em relação a esses problemas” (Schein, 1983 a, p. 1).

Assim, a cultura parece ser a solução para todos os problemas, quer sejam de adaptação externa quer sejam de integração interna (Schein, 1983 a; 1983 b). Mas a que tipo de problemas se refere Schein?

A cultura permite responder a problemas sobre adaptação externa pois potencia o desenvolvimento de consensos quanto à missão, aos objetivos e meios para os atingir, aos critérios de avaliação do grau de cumprimento dos objetivos e aos meios para corrigir desvios face aos objetivos.

A cultura permite também resolver problemas sobre a integração interna, tais como: potencia o desenvolvimento de uma linguagem comum que facilite a comunicação no grupo, bem como o desenvolvimento de consensos quanto aos limites desse grupo e sobre quem fica dentro e fora dele (que se podem refletir nomeadamente nos processos de seleção, recrutamento e formação); quanto à forma de atribuir poder e status; quanto às relações interpessoais; quanto aos critérios de atribuição de recompensas e sanções; quanto a formas de lidar com situações inesperadas, inexplicáveis ou potenciadoras de

stress.

Este autor desenvolveu o “Modelo dinâmico da cultura organizacional” para análise e intervenção na cultura organizacional baseado em artefactos, valores e assunções. Considera que uma vez desenvolvidas as assunções básicas da organização, a cultura organizacional existe em três níveis (Schein, 1983 a; 1983 b).

i) Num mais superficial, encontram-se os artefactos, ou seja, manifestações físicas, comportamentais e verbais como, por exemplo, a linguagem, o vestuário, o mobiliário, a decoração e a organização dos gabinetes. Os artefactos são a parte mais tangível da cultura organizacional, são os mais fáceis de ver, mas podem não ser facilmente decifráveis.

Mudança cultural como alinhamento e transformação: o caso do Código de Ética EDP ii) Num segundo nível, menos visível, encontram-se os valores entendidos como os princípios, objetivos e códigos de conduta da organização. No entanto os valores têm validade e são discutíveis.

iii) Num nível mais profundo e portanto mais difícil de apreender, medir e explicar encontram-se as assunções que correspondem às crenças dos membros da organização sobre a relação entre esta e o seu meio ambiente, a realidade e a verdade, a natureza humana, a atividade humana e as relações humanas. As assunções resultam, como referido, de soluções partilhadas para a resolução de problemas que, sendo consideradas válidas pela organização, passam a ser posições assumidas inconscientemente e são ensinadas, sem discussão, aos novos membros como sendo “as assunções corretas”. As assunções são, assim, a essência da cultura e nelas reside a chave para a perceber e mudar.

Em síntese, o modelo de Schein, apesar de se apelidar de “dinâmico”, foca-se no lado mais entitativo de organização, pressupondo que a cultura é composta por três elementos - artefactos, valores e assunções – e que a mudança cultural se baseia nas assunções, que são a essência da cultura.

c) Mary Jo Hatch (1993)

Partindo do anterior “Modelo dinâmico da cultura organizacional”, Hatch (1993) acrescenta-lhe um quarto elemento e introduz-lhe efetivamente a ideia de “dinamismo”. Por um lado, aos três elementos de cultura identificados por Schein, acrescenta-lhe os símbolos, mas distingue-os dos artefactos por “excesso de significado” (por exemplo, um ramo de flores é um artefacto com um significado adicional ao ramo per se). Por outro lado, o dinamismo é efetivamente introduzido no modelo ao descrever as relações entre os quatro elementos (artefactos, valores, assunções e símbolos) como quatro processos, tornando estas relações, e não os elementos, o foco central do modelo. Estes quatro processos – manifestação, realização, simbolização e interpretação - por sua vez, induzem alterações uns nos outros, de uma forma dinâmica, quer proactiva quer retroativamente, como descrito de seguida.

Mudança cultural como alinhamento e transformação: o caso do Código de Ética EDP i) O processo de manifestação permite que as assunções se revelem em perceções e emoções dos membros da organização e que estes fiquem conscientes dos seus valores (ou seja, manifestação proactiva). Mas este processo prevê, ainda, que os valores afetem as assunções, reafirmando-as ou alterando-as, como por exemplo novos valores introduzidos pelas chefias de topo ou valores importados de outras organizações (ou seja, manifestação retroativa).

ii) Através do processo de realização os valores são materializados em artefactos, por exemplo em rotinas, histórias, objetos, discurso, relatórios, produtos ou serviços (realização proactiva). Por outro lado, também os artefactos podem estimular os valores, resultando deste desafio duas possibilidades: a) não são incorporados porque seriam ignorados ou rejeitados; b) são incorporados no conjunto de artefactos da organização, resultando num realinhamento dos seus valores (realização retroativa) e, até, eventualmente, das suas assunções (manifestação retroativa).

iii) O processo de simbolização permite traduzir artefactos em símbolos, para que aqueles sejam apreendidos como culturalmente relevantes (simbolização prospetiva). Mas este processo, acrescentando significado adicional aos artefactos, permite, também, que estes se distingam de outros artefactos precisamente por este acréscimo de significado, como por exemplo um gabinete maior ser associado a uma posição de chefia (simbolização retrospetiva).

iv) Finalmente, durante o processo de interpretação as assunções básicas da organização ficam expostas aos novos símbolos, abrindo-se a possibilidade destes serem absorvidos (interpretação prospetiva) e, por outro lado, também, as assunções básicas podem reconfigurar o significado dos símbolos (interpretação retrospetiva).

Em síntese, o modelo de Schein presume uma hierarquia entre os três níveis de cultura: artefactos, valores e assunções. O de Hatch, ao introduzir dinamismo, pressupõe que a cultura é um processo contínuo, sem início ou fim definido e em que os quatro elementos (artefactos, valores, assunções e símbolos) são igualmente relevantes. Enfatiza portanto o lado mais processual da organização, a cultura vai emergindo. Considerando o modelo de análise de Smircich sobre a natureza da cultura, Schein

Mudança cultural como alinhamento e transformação: o caso do Código de Ética EDP sugere uma entendimento da cultura como algo que a organização “tem” enquanto que Hatch já se desloca para um entendimento da cultura como algo que a organização “é”.

d) Joanne Martin (2004)

Para Martin, as manifestações de cultura – práticas formais, práticas informais, rituais, gíria, manifestações físicas e valores – são interpretadas, avaliadas e ativadas de forma diferente pelos membros da organização porque estes têm diferentes experiências, interesses, objetivos e valores. Assim, “cultura consiste em diferentes padrões de significado que ligam as manifestações de cultura, por vezes em harmonia, por vezes em conflito entre grupos e, ainda outras vezes, em redes de ambiguidade, paradoxo e contradição” (Martin, 2004, p. 1).

Esta autora identifica três perspetivas nos trabalhos de investigação sobre a cultura organizacional: integração, diferenciação e fragmentação.

i) Integração. A perspetiva de cultura como integração, mais popular mas menos suportada empiricamente, assume que todos os membros da organização partilham uma cultura homogénea, sem ambiguidades e consensual. Esta consistência ocorre porque os gestores de topo definem um conjunto de valores que depois são reforçados por manifestações de cultura que geram um consenso alargado. Assume-se que todos os membros da organização conhecem, percebem e concordam com esses valores e sabem quais os comportamentos adequados a seguir. Quando surgem ambiguidades ou diferenças são consideradas como não fazendo parte da cultura ou então como evidências do falhanço no caminho na direção de uma “cultura forte”.

De acordo com o modelo de análise de Smircich a cultura é encarada como algo que a organização “tem”. Esta perspetiva é atrativa, quer para os gestores quer para os investigadores, pois pressupõe a criação de uma visão que se refletirá, consensualmente, na cultura da organização, induzida a partir da gestão de topo. No entanto, Martin alerta para o erro em que incorrem vários estudos baseados nesta perspetiva, que inferem para todos os membros da organização as análises efetuadas a uma amostra de colaboradores. Acrescenta que estes estudos “oferecem aos gestores e investigadores

Mudança cultural como alinhamento e transformação: o caso do Código de Ética EDP uma promessa sedutora de harmonia e homogeneidade de valores que não é empiricamente comprovada e que, muito provavelmente, não será cumprida” (p. 7). ii) Diferenciação. Nesta perspetiva de cultura, assume-se que na organização coexistem várias subculturas, estabelecendo-se entre elas relações de harmonia, conflito ou indiferença. Defende que existe inconsistência entre manifestações de cultura, mas consenso dentro das “fronteiras” das subculturas. Considera, no entanto, que apesar de não existir ambiguidade dentro destas subculturas, a ambiguidade pode existir nas fronteiras entre subculturas.

Os estudos baseados nesta perspetiva tendem a focar-se na análise do que é partilhado e não nos diferentes pontos de vista dos membros de uma subcultura. Assim, acabam por não se distanciar muito da perspetiva da cultura como integração: dentro de uma subcultura existe uma cultura homogénea, consensual e sem ambiguidades; as diferenças de pontos de vista e o que não é claro são entendidos como sendo exterior à subcultura.

iii) Fragmentação. A perspetiva de cultura como fragmentação assume a complexidade do funcionamento das organizações e a heterogeneidade dos seus membros. Por isso não exclui a ambiguidade (como a perspetiva de integração) nem a remete para as fronteiras entre subculturas (como a perspetiva de diferenciação), mas identifica-a como a característica principal da cultura organizacional. Assim, a compreensão da ambiguidade deve ser o elemento central dos estudos sobre cultura.

Nesta perspetiva não existe uma separação clara entre “nós” e “eles”. Os significados atribuídos pelos membros da organização a uma determinada manifestação cultural não são necessariamente consistentes, nem conflituosos, podendo existir várias interpretações possíveis. Se existir consenso, ele refere-se a um assunto específico e é transitório. Martin parece ter uma visão da cultura como algo que a organização “é” se se utilizar o modelo de análise de Smircich sobre a natureza da cultura, o mesmo é dizer que tem subjacente uma visão processual de organização.

Não obstante alguns estudos utilizarem uma ou outra perspetiva, Joanne Martin salienta que as três - integração, diferenciação e fragmentação - estão presentes simultaneamente

Mudança cultural como alinhamento e transformação: o caso do Código de Ética EDP nas organizações. A presença simultânea destas três perspetivas foi demonstrada empiricamente num estudo realizado numa grande empresa de distribuição alimentar de retalho do Reino Unido por Harris e Ogbonna (1998, em Harris e Ogbonna, 1999). O estudo revela que a gestão de topo tende a adotar uma perspetiva de cultura como integração, as chefias intermédias uma perspetiva de diferenciação e os demais colaboradores uma perspetiva de fragmentação.

e) Raymond Williams (1980)

O modelo de Williams, utilizado por exemplo por Bryson (2008), apresenta também contributos para a compreensão da cultura das organizações assumindo que a cultura não é necessariamente homogénea e consensual. Este modelo, alegando que a sociedade está em constante mudança e negociação, pressupõe um conflito constante entre três tipos de cultura: dominante, residual e emergente.

i) A cultura dominante, que se traduz no sistema de significados e valores predominante num dado momento. É por isso um sistema dinâmico, podendo, também, ser entendida como a forma como as pessoas vêm o mundo.

ii) A cultura residual, que são as formações sociais prévias, como por exemplo, os valores religiosos, os valores de um passado colonial, ou os valores de um passado rural, que ainda são residualmente praticadas.

iii) A cultura emergente, que são os novos significados, valores, práticas e experiências que estão continuamente a ser criados, podendo ser ou não integrados na cultura dominante.

Este modelo, caracterizando a organização como uma constante negociação entre a cultura dominante e as culturas residual e emergente, permite uma visão mais abrangente dos múltiplos interesses que nela (co)existem e, em particular, a compreensão do poder e do conflito como algo natural e não como uma exceção. O modelo permite, assim, explicar a cultura organizacional como uma construção social e proporciona uma visão das subculturas como importantes alternativas que, em determinadas circunstâncias, poderão transformar-se em culturas de oposição à cultura

Mudança cultural como alinhamento e transformação: o caso do Código de Ética EDP dominante. Não tem uma visão homogénea da organização, nem uma perspetiva de cultura como integração. Está aqui também presente a ênfase na visão de organização como fluxos e transformação.

Apesar de ainda popular nas empresas, a perspetiva de cultura como uma variável (perspetiva manegeralista) foi deixando de ser dominante no meio académico a partir dos anos oitenta começando a ganhar relevância a perspetiva de cultura organizacional como uma metáfora, nomeadamente com Hatch e Williams no final do século XX.

Em suma, debruçando-se sobre a análise dos diferentes estudos da academia relacionados com a natureza da cultura e com organização, Smircich conclui que a cultura organizacional tem sido encarada como algo que as organizações “têm” (substância) ou como algo que as organizações “são” (processo). Partindo do modelo de Schein, que tem uma visão mais entitativa da organização, Hatch introduz-lhe dinamismo deslocando-se para uma visão processual. Williams, presumindo uma luta constante entre culturas dominante, residual e emergente e Martin, ao fazer a distinção entre integração, diferenciação e fragmentação da cultura têm também presente uma visão do mundo como processo.

Da análise dos contributos para a compreensão sobre a natureza da cultura organizacional a partir de cinco autores de referência e do respetivo entendimento sobre o que é uma organização pode encontrar-se algum paralelismo entre duas perspetivas de realidade (substância e processo, na formulação de Chia e King) e duas perspetivas de cultura (variável e metáfora, na formulação de Smircich).

Do ponto de vista ontológico, a primeira abordagem, em que as organizações “têm” culturas, existem “coisas” ou “entidades” que podem ser geridas (e controladas), está mais associada à metafísica da substância, dando-se ênfase às “entidades” per se, assumindo-as como sendo elas próprias a realidade. A outra abordagem em que a cultura é entendida como uma metáfora, em que as organizações “são” culturas, está mais associada à metafísica do processo, em que o mundo é visto como algo dinâmico em contínua transformação, em que as “entidades” que se vêm e nomeiam são efeitos ou produtos de um interminável movimento e transformação, em que uma organização é

Mudança cultural como alinhamento e transformação: o caso do Código de Ética EDP entendida como fluxos e transformação, em que a mudança não pode ser gerida, mas que emerge naturalmente ou existe algum espaço para manipular essa cultura.

A gestão da cultura organizacional poderá também ser encarada nestas duas perspetivas e terá necessariamente enfoques diferentes sobre a (im)previsibilidade do seu resultado, ou seja, sobre os efeitos que decorrem das tentativas de mudança de cultura.

A gestão da cultura e as abordagens à implementação de programas para a mudar bem como as consequências da implementação desses programas e algumas recomendações de autores de referência para projetos desta natureza terminam esta secção.