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3 A IDENTIDADE, A MEMÓRIA E A CULTURA NAS PRÁTICAS COM O USO

3.2 A CULTURA E A TRANSMISSÃO DE SABERES NO USO DE PLANTAS

Segundo a Constituição Federal20 de 1988 em seu art. 216, cultura são todas as ações por meio das quais os povos expressam suas formas de criar, fazer e viver. No entanto, muitas vezes já ouvimos o jargão esse povo não tem cultura, pois é comum associarmos a cultura de um povo ou a cultura de uma pessoa ao contato destes com a leitura, música, artes, história entre outros aspectos. Neste tipo de associação, o indivíduo que não sabe ler nem escrever é considerado desprovido de cultura, pois, para o senso comum, cultura possui um sentido de erudição, de conhecimento adquirido por mecanismos diversos, mas principalmente, por meio do estudo, construindo uma concepção equivocada a respeito do que significa o termo.

Eagleton (2003) considera a palavra cultura, como uma das duas ou três mais complexas de nossa língua. Pois, ―a raiz latina da palavra ‗cultura‘ é colere, o que pode significar qualquer coisa, desde cultivar e habitar adorar e proteger‖ (EAGLETON, 2003, p.10). Pelegrini e Funari (2008) afirmam que essa palavra é das mais antigas, sendo usada em latim, há mais de dois mil anos, para designar o cultivo da terra, em um sentido bastante concreto, como plantar cuidar, cultivar, mas também cultuar. O autor lembra que,

Foi o pensador romano Cícero (século I a.C.) que cunhou o mais antigo conceito da nossa cultura, ao mencionar a cultura animi, literalmente, a cultura, o cultivo ou culto do próprio espírito ou da alma. Formulado desta maneira, este termo implica uma ação interior/ou exterior. Por uma lado, a preocupação do indivíduo consigo mesmo é que o leva a cultivar-se a si mesmo, como se fosse um campo a ser trabalhado‖. (PELEGRINI; FUNARI, 2008, p.12, aspas no original).

Assim, cultura passa a ser sinônimo de educação, no sentido de aprimoramento sendo necessária a realização de ações exteriores, como leituras, aprendizado oral, e até mesmo imitação, cultivando, assim, como a plantação, a natureza humana (PELEGRINI; FUNARI, 2008). Porém, segundo Laraia, (2007, p. 13), na tentativa ―de explicar as diferenças de comportamento entre os homens‖, o conceito de cultura, ―se metamorfoseia e se transforma‖ (PELEGRINI; FUNARI, 2008, p. 13).

Nessa afirmação dos autores, constatamos as possibilidades de alterações, que o termo cultura teve ao longo do tempo. Como afirma Eagleton (2003, p. 19), ―primeiro

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significa algo como ‗civilidade‘, depois no século XVIII, tornou-se mais ou menos sinônimo de ‗civilização‘, termo este que em pouco tempo se fortaleceu e se espalhou por toda Europa, tendo os franceses como exemplo de civilização‖. Neste período, cultura é sinônimo de civilização, pois a razão deveria prevalecer sobre o corpo e a emoção. Os europeus eram civilizados em relação aos bárbaros, os pobres eram iletrados e, daí, incivilizados (EAGLETON, 2003; PELEGRINI; FUNARI, 2008).

Tempos depois, os alemães, em contrapartida a essa noção de civilidade francesa, utilizam o termo kultur para definir cultura. Surge então, o conceito de cultura, como uma tentativa de negar o conceito de civilização. Desse modo,

No final do século XVIII e no princípio do seguinte, o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto a palavra francesa Civilization referia-se principalmente as realizações materiais de um povo. (LARAIA, 2007, p. 25, grifo do autor).

Neste contexto, que Eagleton (2003, p. 14) chama de ―dupla recusa: do determinismo orgânico, por um lado, e da autonomia do espírito por outro‖ é que na visão de Laraia (2007), surge o primeiro conceito de cultura do ponto de vista antropológico. Foi quando, Edward Tylor (1832-1917), no final do século XVIII sintetizou os termos Kultur, e

Civilization, no vocábulo Culture, que de modo mais amplo e complexo ―inclui

conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade‖ (LARAIA, 2007, p. 25).

A partir do século XIX, cultura começa a deixar de ser sinônimo de civilização, tornando-se antônimo, pois se civilização é um termo de caráter sociável, uma questão de cordialidade e boas maneiras, cultura é algo inteiramente mais solene, espiritual, crítico e de altos princípios. É uma questão do desenvolvimento total e harmonioso da personalidade. (EAGLETON, 2003).

Em 1871, Tylor definiu cultura como sendo todo o comportamento aprendido, independentemente de transmissão genética. Em 1917, Kroeber rompeu todos os laços entre o cultural e o biológico, admitindo a supremacia do primeiro em detrimento do segundo (LARAIA, 2007).

Portanto, a ideia de cultura que entrou em uso no final do século XVIII, foi construída num contexto de incertezas e ambiguidades, entre os conceitos de civilização e cultura. Neste cenário, ―a civilização minimizava as diferenças nacionais, ao passo que a ‗cultura‘ as realçava‖ (EAGLETON, 2003, p. 20). No entanto, essa ambivalência se faz

presente nos dias atuais, quando a ideia de cultura apresenta ―o caráter de dois gumes – simultaneamente ‗permitindo‘ e ‗restringindo‘, sobre o qual muito se tem escrito nos últimos anos, na verdade estava presente desde o começo‖ (BAUMAN, 2012, p.16).

Ainda segundo Eagleton (2003),

A cultura como orgânica, assim como a cultura como civilidade, paira indecisamente entre o fato e valor. [...] É essa fusão do descritivo e do normativo, conservada tanto de ―civilização‖ quanto do sentido universalista de ―cultura‖, que despontara na nossa própria época sob a roupagem de relativismo cultural. Ironicamente, esse relativismo ―pós-moderno‖ deriva-se justamente de tais ambiguidades na própria era moderna. (EAGLETON, 2003, p. 26, aspas no original).

Sendo assim, a busca da origem da cultura é um questionamento sem uma resposta única, pois essa busca nos leva a crer que o início da cultura não é datado, mas coincide com o processo de humanização, com a compreensão da própria natureza humana. Segundo afirma Laraia (2007, p. 58), ―a cultura desenvolveu-se, simultaneamente com o próprio equipamento biológico e é, por isso mesmo, compreendida como uma das características da espécie, ao lado do bipedismo e de um adequado volume cerebral‖.

Nesse sentido, não podemos dizer que um indivíduo não tenha cultura, sendo que, todos nascem e permanecem dentro de um contexto social, qualquer que seja ele. É nesse meio que tece suas amarrações, conforme se pode observar nas palavras de Geertz, (1989, p. 15), quando afirma que ―o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu‖. É, portanto, impossível valorar as culturas, atribuindo maior ou menor valor, pois cada uma tem seu valor, não havendo uma cultura superior ou inferior à outra.

Ainda segundo Geertz (1989), por meio da análise dessas teias, que ele assume como sendo a cultura, pode-se perceber as relações existentes e as ligações que passam a ser estabelecidas entre o passado e o presente, entre o que aconteceu e o que se perpetua e quais as mudanças sofridas, possibilitando a percepção dos traços que estes acontecimentos deixam na sociedade. Desse modo, ―tudo o que o homem faz, aprendeu com seus semelhantes e não decorre das imposições originadas fora da cultura‖ (LARAIA, 2007, p. 51).

Segundo Bauman (2012),

―A ideia de ―cultura‖ serviu para reconciliar toda uma série de oposições enervantes pela sua incompatibilidade ostensiva: entre liberdade e necessidade, entre voluntário e imposto, teleológico e causal, escolhido e determinado, aleatório e padronizado, contingente e obediente à lei, criativo e rotineiro, inovador e repetitivo – em suma, entre a autoafirmação e a regulação normativa‖. (BAUMAN, 2012, p. 17, aspas no original).

Assim sendo, quando nos referimos à cultura de um povo, de uma sociedade, mesmo tratando do coletivo, não podemos falar do assunto, sem falar de identidade e, portanto, cultura e identidade são dois termos que estão associados. Conforme afirma Bauman (2012, p. 44) ―a atenção intensa que hoje se dá ao tema da identidade é em si mesma um fato cultural de grande importância e, ao menos potencialmente, de grande valor esclarecedor‖. Isso se evidencia quando, na sociedade atual, no momento em que se menciona uma crise de identidade se associa à cultura, onde muitas vezes as crises culturais são identificadas como crises de identidade.

Segundo Hall (2003, p.13), ―o sujeito assume identidades diferentes, em diferentes momentos‖. A construção dessa identidade é um processo heterogêneo, onde cada pessoa terá particularidades que a diferem de outros indivíduos. Cabe considerar que o sujeito não vive isolado, então sua identidade cultural, é o ―resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquirida pelas numerosas gerações que o antecedem‖ (LARAIA 2007, p. 46).

Bauman (2012) também destaca o processo de construção das identidades culturais, quando sugere que,

[...] a imagem mais capaz de apreender a natureza das identidades culturais é a de um redemoinho, e não a de uma ilha. [...] As identidades não se apoiam na singularidade de suas características, mas consistem cada vez mais em formas distintas de selecionar/reciclar/rearranjar o material cultural comum a todas, ou pelo menos potencialmente disponível para elas. É o movimento e a capacidade de mudança, e não a habilidade de se apegar a formas e conteúdos já estabelecidos, que garante sua continuidade. (BAUMAN, 2012, p. 69).

Como afirma Bosi (1986, p.17) "existe uma cultura vivida e uma cultura a que os homens aspiram‖. Nas palavras de DaMatta (1983), a cultura é uma tradição, que é transmitida de geração a geração, o que torna uma sociedade única, diferente da outra. No caso do homem, a cada sociedade corresponde uma tradição cultural que se assenta no tempo e no espaço. Para Bauman (2012, p. 28), ―o trabalho da cultura não consiste tanto em sua autoperpetuação quanto em garantir as condições para futuras experimentações e mudanças‖.

Ainda, segundo Bauman,

[...] a cultura, como tende a ser vista agora, é tanto um agente da desordem quanto um instrumento da ordem: um fator tanto de envelhecimento e obsolescência quanto de atemporalidade. [...] O paradoxo da cultura pode ser assim reformulado: o que quer que sirva para a preservação de um padrão também enfraquece seu poder. (BAUMAN, 2012, p.28).

Portanto, como ressalta Eagleton (2003, p. 60) ―cultura e crise andam de mãos dadas‖, pois, sendo a cultura um processo dinâmico, apresenta constantes alterações, uma vez que ―dominar uma cultura‖ significa dominar uma matriz de permutações possíveis, um conjunto jamais implementado de modo definitivo e sempre inconcluso‖ (BAUMAN, 2012, p. 43). Sendo assim, a cultura é um processo em constante evolução, sempre em movimento. Bauman (2012) cita o antropólogo polonês Wojciech Burszta, ao afirmar que, ―a teoria tradicional da cultura, tão bem-testada no caso de populações estáveis, isoladas, relativamente pequenas, economicamente simples e autocentradas, é inútil diante de culturas em movimento‖ (BAUMAN, 2012, p. 76).

Diante do exposto, e preciso buscar compreender as influências da sociedade global nas identidades locais e vice-versa. É importante buscarmos refletir de que forma as identidades e as culturas relacionadas ao trato com as plantas medicinais desses sujeitos pós- modernos, interagem e subsistem nesse momento de ―liquidez‖ (BAUMAN, 2001) e nesta modernidade em movimento. Como estas práticas se estabelecem na medida em que as sociedades se modernizam e se transformam? Estas tradições se mantêm, ou suas populações muitas vezes, inventam ou reinventam tradições para se adequar a outras formas culturais ou até mesmo, como um modo de se adequar as mudanças sociais? A incorporação de novos conhecimentos no trato com plantas medicinais e sua ressignificação é condição necessária para a sua sobrevivência cultural? A resposta para essa questão parece ser positiva se tomarmos como referência as considerações de Bauman quando afirma que a cultura é um processo inconcluso, em constante evolução e que se faz na contradição entre o criativo e o rotineiro, entre o inovador e o repetitivo.

3.3 A MEMÓRIA E A TRANSMISSÃO DE SABERES NO USO DE PLANTAS