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Práticas da Medicina Popular e sentimento de pertencimento

5 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS OBTIDOS

5.2 ACHADOS DE CAMPO

5.2.3 Práticas da Medicina Popular e sentimento de pertencimento

Com suas sabedorias populares guardando segredos de rezas e receitas de como utilizar determinada planta medicinal, a maioria destas praticantes da Medicina Popular conquistou seu espaço, respeito e admiração da comunidade onde vivem, bem como, de outras comunidades muitas vezes distantes, sendo difícil identificar a abrangência desse reconhecimento. Esses aspectos ficaram evidenciados nos depoimentos:

[...] as pessoas da comunidade sempre me procuram, não tem hora do dia ou da noite eles vem procurar as garrafadinhas (entrevistada CP, 2015).

[...] lá no meu lugar é eu. Qualquer coisinha.. um machucadinho no pé.. vim aqui pra senhora arrumar o meu pé.. ai to com dor aqui... a senhora faz uma massagem (entrevistada BP, 2015).

[...] de fora vem bastante, lugar que eu fico até assustada, pois não sei onde eles me acham. Eu pergunto: onde tu me achou, e ai um informa o outro e vão vindo (entrevistada CP, 2015).

[...] são pessoas de longe (entrevistada AP, 2015).

A percepção aguçada, a observação, a habilidade desenvolvida e consolidada na prática com plantas medicinais e a experiência do dia-a-dia, além de conquistar o reconhecimento da comunidade, lhes confere, muitas vezes, a condição de ―médicas‖ desta população, como neste exemplo: [...] tem uns que me chamam de médica... eu digo que não

sou médica (entrevistada CP, 2015). Suas práticas caracterizam-se principalmente pela

solidariedade, afetividade, confiança e doação, conforme observamos nas falas abaixo:

[...] o trabalho voluntário faz muito bem, pois dessa vida não se leva nada, apenas o bem que se faz (AP, 2015).

[...] antes, o pessoal levava tudo sem pagar, agora tenho um custo, pois tenho despesas na desidratação, embalagem (CP, 2015).

[...] não cobro nada, mesmo para massagem eu compro o que precisa, faço e nunca cobro nada. E sinto bem e o pessoal já esta acostumado. Eu atendo eles agradecem (BP, 2015).

No entanto, apesar da característica voluntária do trabalho realizado, é inegável que a admiração e o respeito da comunidade lhes conferem, mesmo que de forma inconsciente, uma posição de poder. Nesse sentido, lembramos o que afirma Foucault (1984, p. 80), ―há uma perpétua articulação do poder com o saber e do saber com o poder‖.

Pedro (1994) destaca a difícil trajetória das mulheres na conquista desse poder, quando lhes era negado o saber. Para as mulheres, já eram ditadas funções determinadas, como o tradicional papel de mãe, de esposa e guardiã do lar.

Portanto, além destas funções o trabalho feminino foi à garantia de sobrevivência diária da família, principalmente nas camadas populares, fazendo com que a mulher conquistasse uma importância que extrapola os papeis de esposa e mãe (PEDRO, 1994). Esses novos saberes asseguram o exercício de novos poderes.

Não há saber neutro. Todo saber é político. [...] saber e poder se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, e, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder. Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber. [...] todo saber assegura o exercício de um poder. (MACHADO, 2006, p. 177).

Mesmo que o conhecimento adquirido em sua trajetória, lhes atribua certo poder, nas falas destas senhoras, transparece que a maior recompensa é o reconhecimento das pessoas que as procuram é o sentimento de estar auxiliando: [...] “mas o que acho mais

importante nisso tudo é tu te desprender, é tu atender aquela pessoa sem pressa, com todo amor (AP, 2015)”.

Observamos que a prática da Medicina Popular a partir dos conhecimentos com o uso de plantas medicinais é construída com muito trabalho e determinação.

[...] no começo não tinha estufinha, eu secava em cima do fogão a lenha em uma peneira, pois no sol alterava a cor e na sombra acabava mofando. Mas foi bastante difícil, pois tive que aprender tudo sozinha (CP, 2015).

[...] trabalhar com plantas medicinais é assim, e a passo de formiguinha (BT, 2015).

Em suas falas, autonomia e independência feminina aparecem como conquistas extraídas com paciência, persistência e até mesmo abnegação, construídas em meio a um universo machista: [...] mas meu marido não gostava desse meu trabalho. E eu sempre

pensava que um dia teria que escolher, e um dia ele falou: eu ou os chás...eu escolhi os chás e hoje tenho os dois (CP, 2015).

Outro aspecto a ser destacado é o cultivo das próprias plantas em seus quintais. Conforme Posey (1987, p. 181), ―a palavra ―quintal‖ indica terrenos adjacentes às casas, onde são cultivadas, geralmente, plantas úteis ou decorativas. Esse tipo de utilização do solo precede a colonização europeia, uma vez que os Kayapó, como vários outros grupos sociais, plantam espécies úteis junto às suas casas‖. Esta prática levou essas senhoras a descobrirem segredos que perpassam ao cultivo e colheita. Para Priore (2009, p. 95) ―o quintal era o território prestigiado da cultura feminina, feito de empirismo, oralidade e memória gestual‖. Temos então, nos quintais muito mais que uma mera porção de terreno, nos quais as famílias mantêm uma grande diversidade de plantas, mais sim, um espaço de conservação e demonstração de saberes acumulados ao longo do tempo, perpassando gerações.

Essa prática, ainda presente nos dias atuais, pode ser constatada nas residências das entrevistadas, conforme nos mostra a figura 4, onde todo o espaço do seu quintal e o entorno da casa são utilizados para o cultivo de plantas medicinais.

Figura 4 – O quintal - Local de cultivo de plantas medicinais na Medicina Popular.

Desta forma, o quintal, além de um espaço físico que abriga as plantas medicinais, é também o espaço onde ocorrem as interações estabelecidas com aqueles que realizam este cultivo, pois, ―quase sempre a pessoa vai plantar suas próprias plantas, ela vai ter outra

consciência (entrevistada AT, 2015)”.

Figura 5 – O horto – Local de cultivo de plantas medicinais na Medicina Tradicional.

Fonte: Dados da pesquisadora (2015).

Na figura 5, observamos uma organização no cultivo diferenciada da figura 4, neste local, encontramos um horto de plantas medicinais. Segundo Rodrigues et al. (2012) horto é uma área destinada ao cultivo de plantas in natura, com informações sobre as mesmas como: identificação botânica, buscando a preservação de espécies em extinção e propiciando ensino e estudo sobre as plantas. Os hortos também podem produzir e distribuir mudas para plantio nos quintais da comunidade, bem como, orientar a população para o preparo e uso destas plantas. As espécies cultivadas, sejam nativas ou exóticas, podem ser aquelas oriundas da relação de plantas medicinais nacional, estadual ou municipal, ou aquelas de amplo conhecimento das pessoas no local.

O horto em destaque (figura 5) foi construído pela Medicina Tradicional, como afirma a entrevistada BT (2015) nessa unidade de saúde já temos um espaço onde cultivamos

plantas medicinais. O mesmo foi construído objetivando promover o encontro dos saberes

popular e científico. Além disso, procura estreitar as relações entre os profissionais de saúde e a comunidade, propiciando ou fortalecendo a comunicação, o diálogo e a troca de saberes.

Ainda segundo Rodrigues et al. (2012) o horto pode ser fruto de parceria entre a Secretaria Municipal de Saúde e órgãos ligados ao cultivo de plantas medicinais, como universidades, Secretarias Municipais de Agricultura, para que haja acompanhamento de profissionais em todas as etapas de produção. O apoio técnico de outros setores pode auxiliar na inserção, na identificação correta das espécies, no resgate histórico e popular e no estudo das plantas mais utilizadas na comunidade, fortalecendo o vínculo e as ações educativas. Os hortos devem atender às boas práticas de cultivo, preservando a qualidade do ar, do solo e da água.

Percebemos nestes locais, isto é, nos quintais ou hortos, o cuidado do cultivo das plantas medicinais em ambiente limpo e sem a utilização de agrotóxicos.

[...] geralmente cultivo todas as plantas que necessito para produzir as tinturas (entrevistada AP, 2015).

[...] lá no meu lugarzinho tenho minha horta. Aqui na Pastoral temos o nosso cantinho da saúde (entrevistada BP, 2015).

[...] tenho muitas aqui em casa e recebo muito auxílio dos vizinhos, eles fornecem muito ervas, mas só aceito se conheço de onde vem, pois tenho muito cuidado com as ervas (entrevistada CP, 2015).

Sobre esse aspecto Amorozo (1996, p.47) afirma:

Toda sociedade humana acumula um acervo de informações sobre o ambiente que a cerca, que vai lhe possibilitar interagir com ele para prover suas necessidades de sobrevivência. Neste acervo, inscreve-se o conhecimento relativo ao mundo vegetal com o qual estas sociedades estão em contato.

Essas senhoras ervateiras, herdeiras de uma tradição cultural por meio de gerações, ao acumularem maior conhecimento, conquistaram credibilidade sendo reconhecidas e referendadas pela comunidade e pelo poder local: prefeitura, através das secretarias municipais de agricultura, EPAGRI, e Igreja Católica. Suas práticas e seus conhecimentos, ao serem transmitidos por meio da oralidade, estão sendo ressignificados e renovados, pois essa transmissão já não ocorre apenas no âmbito familiar, o que possibilitaria a perpetuação. Conforme afirma Oliveira (1985), a Medicina Popular não pode ser vista

como algo estático, mas como um processo histórico, vivo e atual, sendo fecunda, dinâmica e permanentemente atualizada. Esse movimento é afirmado pelas entrevistadas:

[...] também recebo alunos das escolinhas daqui (entrevistada CP, 2015).

[...] estamos tentando reciclar, aproveitando conhecimento, pois elas sabem muito. Então, juntado o que elas sabem com o que aprendi e está dando certo (entrevistada BT, 2015).

No entanto, esse movimento também causa preocupação, pois como afirma Bosi, (1999, p. 45) ―a informação só nos interessa enquanto novidade e só tem valor no instante que surge. Ela se esgota no instante em que se dá e se deteriora‖. Para Bauman (2001), essa ―modernidade líquida‖, se caracteriza não tanto pelo rompimento com as rotinas e subversão às tradições, mas em evitar que padrões de conduta se congelem em rotinas e tradições. Sobre este momento de liquidez, o autor afirma que é necessário tentar compreender quais as consequências da situação vivida pelo indivíduo para seu cotidiano, pois ―a vida é como um lençol muito curto: quando se cobre o nariz os pés ficam frios, e quando se cobrem os pés o nariz fica gelado. Há sempre um custo a ser pago para a melhora numa determinada direção‖ (BAUMAN, 2004, p.324).

Esse momento atual se caracteriza pela rapidez no fluxo de informações, na passagem de estruturas de solidariedade coletiva para as de disputa e competição, no permanente movimento e descarte das coisas, com impactos importantes na identidade. Dificultando, portanto, o interesse por parte das pessoas mais jovens em reter informações referentes a um saber tradicional. O desafio que está posto é como despertar nas novas gerações o interesse e o comprometimento com a manutenção desse saber popular e suas práticas, acrescentando a ele novos conhecimentos sem, no entanto, descaracterizá-lo.