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2 PLANTAS MEDICINAIS EM TEMPOS DE PÓS-MODERNIDADE

2.3 PLANTAS MEDICINAIS E COMUNIDADES TRADICIONAIS NO BRASIL

―A mata é a farmácia deste povo‖ (VON MARTIUS- 1814).

No Brasil, o cenário não é diferente. O surgimento de uma Medicina Popular utilizando as plantas, já era praticada pelas populações indígenas, agregando posteriormente contribuições dos negros e europeus. Os primeiros registros sobre o uso de plantas medicinais datam do século XVI, sendo a primeira descrição sobre o uso de plantas como remédio foi feita por Gabriel Soares de Sousa, autor do Tratado Descritivo do Brasil, de 1587. Esse tratado descrevia as plantas utilizadas pelos índios com fins medicinais, como:

Árvores e ervas da virtude, [...] têm grande virtude para curar enfermidades. [...] Há muitas ervas menores, pelos campos, de muita virtude, de que se aproveitam os índios e os portugueses. [...] Cozidas as folhas e flores desta erva, tem a sua água muito bom cheiro e virtude para sarar sarna e comichão, e para secar chagas de boubas lavando-as com esta água quente, do que se usa muito naquelas partes. (SOUSA, 1851, p. 208 - 211).

Desta forma, uma quantidade imensa de conhecimentos referentes aos cuidados com a saúde, saberes estes acumulados pela população indígena durante muitos séculos, começou a ser repassada ao europeu. Carreira e Santos (2001) lembram que infelizmente não dispomos na historiografia brasileira de um estudo acerca de até que ponto as práticas de saúde indígenas e afro-brasileiras colaboraram para a adaptação do europeu ao Novo Mundo. Mas, pode-se verificar que os colonizadores lusos não somente entraram em contato com o saber do cuidar indígena, como também se apoderaram deste, utilizando-o na sua sobrevivência.

A influência europeia teve início no Brasil com a vinda dos primeiros padres da Companhia de Jesus chefiados por Nóbrega, em 1579, os quais chegaram com Tomé de

Souza para catequizar os índios. Formularam receitas chamadas ―Boticas dos Colégios‖, à base de plantas para o tratamento de doenças. A exuberante natureza brasileira era motivo de fascínio e curiosidade para viajantes e colonizadores que aqui chegaram a partir do século XVI. Povos sem escrita, os indígenas das terras do pau-brasil souberam beneficiar-se da diversidade da flora e da fauna de suas terras. Seus conhecimentos, passados de geração em geração, chegaram até nós por meio dos relatos de aventureiros, naturalistas e colonizadores. Muitos europeus perceberam os usos empíricos de vegetais e deixaram textos em que relacionam as plantas, geralmente identificadas pelo nome indígena, e os seus usos. Não existem, porém, registros padronizados nem descrições organizadas. Esses homens descreveram os habitantes, os animais, os minerais e em especial as plantas utilizadas como alimentos, venenos ou remédios (SANTOS; PINTO, 2012, JORGE, 2014).

Durante os três primeiros séculos da colonização no Brasil, a sociedade branca dispunha das poucas e raras formas de cura trazidas da Europa, precisando recorrer aquelas a que diversas etnias utilizavam para lutar contra os males que as acometiam. Sendo o uso das ervas medicinais a prática que possuía a maior legitimidade popular, onde, curandeiros africanos e pajés utilizavam folhas, frutos, sementes, raízes, essências, bálsamos e resinas, partes lenhosas e brancas que esmagavam entre as pedras, pulverizavam, carbonizavam, dissolviam, maceravam. A frase ―a mata é a farmácia desse povo‖, cunhada em 1814, por Von Martius, reflete o fascínio dos europeus pelo conhecimento a respeito do uso de plantas e crenças dos indígenas brasileiros (EDLER; FONSECA, 2005).

Diante destas descobertas, os viajantes que por aqui passavam sempre se abasteciam destas plantas antes de excursionarem por regiões pouco conhecidas. As grandes navegações trouxeram a descoberta de novos continentes, legando ao mundo moderno um grande arsenal terapêutico de origem vegetal até hoje indispensável à medicina (RODRIGUES; AMARAL, 2012).

A colonização portuguesa e posteriormente outros povos que aqui chegaram, trouxeram na bagagem outros tipos de plantas que enriqueceram ainda mais a flora brasileira. Da cultura europeia pode-se citar a Melissa officinalis L. (erva cidreira), a Pimpinella anisum L. (erva doce), entre outras. Foi através da cultura africana que se incorporou plantas como a

Ruta graveolens L. (arruda) e o Syzygium jambolanum (Lam.) DC. (jambolão), associando os

rituais religiosos ao uso de plantas medicinais, comum em diversas culturas africanas. Da cultura indígena, advém o mais amplo catálogo, de onde se pode citar a Piper umbellatum L. (caapeba), o Chrisobalanus icaco L.(abajerú) e a Bixa orellana L. (urucum) (BADKE, 2008).

A cultura Oriental, trazida pelos imigrantes chineses e japoneses no final do século XIX, contribuiu para a introdução de novas plantas na cultura brasileira tais como o

Zingiber officinale Roscoe (gengibre), a Litchi chinensis Sonn (lichia) e a Wassabia japonica

(raiz forte). Existem também outras plantas medicinais de origem oriental, que foram introduzidas pelos portugueses, quando as descobriram em suas navegações até a Ásia. Como exemplos têm-se a Cinnamomum zeylanicum Blume (canela) e o Syzygium aromaticum (L.) Merr. & L. M. Perry (cravo), que ficaram mundialmente conhecidas por seu uso culinário (BADKE, 2008).

Com o fim do período colonial, chega ao Brasil aquele que seria um dos maiores contribuidores ao estudo da fitoterapia brasileira, Bernardino Antonio Gomes, médico português que desembarcou na cidade do Rio de Janeiro, como médico pessoal da Princesa Leopoldina, então prometida a D. Pedro I como esposa. Fascinado com a grande quantidade de produtos derivados de plantas medicinais, extraídos das matas e selvas do Brasil, resolveu empenhar-se em não somente catalogar botanicamente tais plantas, mas também estudar seus princípios ativos de que tanto falava a população da época (BADKE, 2008, EDLER; FONSECA, 2005).

No início do séc. XIX, ao percorrer as províncias do Brasil, ―o eminente botânico francês Auguste de Saint-Hilaire compôs um herbário de 30.000 espécimes e mais de 7.000 espécies, das quais 4.500 eram desconhecidas dos cientistas, na época‖ (CARREIRA; SANTOS, 2001, p. 14).

Dessa forma, até meados do século XX, o uso das plantas com fins medicinais era amplamente utilizado no país, sendo reflexo das uniões étnicas ocorridas entre os diferentes imigrantes que aqui chegaram e os povos que aqui viviam. Assim, diante da ausência de boticas e de médicos, e destituídos de recursos para o tratamento, as populações enfrentavam a adversidade das doenças com receitas caseiras, com folhas e raízes encontradas nas matas, recorrendo a curandeiros, benzeduras e orações (WISSENBACH, 1998; ALVIM, 1998).

As ervas utilizadas para o tratamento das doenças, irradiadas por meio de receitas da Medicina Popular, algumas delas depurativas, outras ainda simplesmente simbólicas, encontravam-se espalhadas pelas matas, ou eram cultivadas em canteiros, e suas qualidades terapêuticas algumas vezes conhecidas mediante a observação do comportamento de animais, vinham de conhecimentos imemoriais. Porém, para utilizá-las, era preciso conhecer o cultivo, a colheita e as propriedades terapêuticas, e os cuidados na sua preparação, envolvendo rituais e constelações. Essa relação simbólica, revestida de um sentido mágico, despertava nas pessoas um mito de respeito e de temor (WISSENBACH,1998).

Badke (2008) destaca que, com o surgimento dos primeiros produtos alopáticos, como a aspirina no início do século XX, diminuiu a utilização de produtos a base de plantas, culminando com um maior afastamento dos profissionais da área da saúde no estudo das plantas, principalmente na segunda metade do século XX, quando estes se preocupavam em estudar os produtos químicos delas extraídos, para a produção de medicamentos alopáticos.

Mesmo perdendo espaço para os produtos alopáticos, essa prática sempre esteve presente no cotidiano do povo brasileiro, principalmente nas classes sociais com menor poder aquisitivo. Porém, nas últimas décadas, esse panorama começou a ser modificado. As plantas medicinais passaram a ganhar cada vez mais adeptos, tanto da população em geral como de profissionais da área da saúde. Desde a Declaração de Alma-Alta, em 1978, a OMS tem expressado sua posição a respeito da necessidade de valorizar a utilização de plantas medicinais no âmbito sanitário, em função de que 80% da população mundial depende dessas espécies, no que se refere à atenção primária à saúde (BADKE, 2008, PEIXOTO NETO; CAETANO, 2005, RODRIGUES; AMARAL, 2012).

Dentro deste contexto, o Brasil tem buscado estabelecer diretrizes na área de plantas medicinais e saúde pública, como a aprovação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS, com diretrizes e linhas de ação para ―Plantas Medicinais e Fitoterapia no SUS‖, e a ―Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos‖, com abrangência da cadeia produtiva de plantas medicinais e fitoterápicos. Essas políticas foram formuladas em consonância com as recomendações da OMS, os princípios e diretrizes do SUS, o potencial e oportunidades que o Brasil oferece para o desenvolvimento do setor, a demanda da população brasileira pela oferta dos produtos e serviços na rede pública e pela necessidade de normatização das experiências existentes no SUS (BRASIL, 2006, RODRIGUES; AMARAL, 2012).

Entretanto, apesar de todas as políticas estabelecidas, do reconhecimento da riqueza da flora brasileira e da tradição do uso de plantas com fins medicinais pela população, os estudos ainda são escassos. Um levantamento realizado em 2011 apontou 382 medicamentos fitoterápicos, sendo destes 357 fitoterápicos simples e 25 em associação. Esses fitoterápicos são produzidos a partir de 98 diferentes espécies vegetais. As espécies vegetais com mais registro são em sua maioria estrangeiras, como Aesculus hippocastanum L. (castanha-da-índia), com 22 registros e Ginkgo biloba L. (ginkgo), com 20 registros. Entre as (brasileiras, as mais registradas são Mikania glomerata Spreng. (guaco), com 20 registros,

(espinheira-santa), com 14 registros (CARVALHO; NETTO, 2012). Diante disso, pode-se afirmar que:

No Brasil, a Medicina Popular equivale aos conhecimentos e práticas arraigados tanto à cultura indígena quanto aos valores trazidos por colonizadores. Esses conhecimentos foram incorporados pela população e são respeitados no cotidiano, cristalizados nos hábitos, nas tradições e nos costumes. (BARBOSA et al., 2004, p. 38).

Considerado um dos países que detêm a maior biodiversidade do planeta, em torno de 15 a 20% do total mundial, o Brasil possui um banco genético cobiçado e explorado por muitos outros países. Além desse acervo genético, o Brasil é detentor de rica diversidade cultural e étnica que resultou em um acúmulo considerável de conhecimentos e tecnologias tradicionais, passados de geração a geração, entre os quais se destaca o vasto acervo de conhecimentos sobre manejo e uso de plantas medicinais (BRASIL, 2006).

Neste sentido, compreende-se que o Brasil, com seu amplo patrimônio genético e sua diversidade cultural, tem em mãos a oportunidade para estabelecer um modelo de desenvolvimento próprio e soberano, na área de saúde, referente ao uso de plantas medicinais e fitoterápicos. É o país com a maior biodiversidade do planeta, que agregado à diversidade étnica e cultural possui valioso conhecimento tradicional13, principalmente no manejo e uso de plantas com fins medicinais. As plantas além de serem utilizadas como substrato para a fabricação de medicamentos são também utilizadas em práticas populares e tradicionais como remédios caseiros passados de geração a geração (BRASIL, 2006).