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CURSO PRÉ-VESTIBULAR POPULAR LIBERATO E A EDUCAÇÃO POPULAR: REFLEXÕES SOBRE RESISTÊNCIA

Maicon Jaime Silva de Matos - Graduando em Ciências Sociais (UFRGS)

Toda tarde, entre segun- da-feira e quinta-feira, dezenas de estudantes, de diversas ida- des, moradores da Capital e da Região Metropolitana de Porto Alegre, chegam à Rua Xavier de Carvalho, no bairro Sarandi. Cercada por um canal de es- coamento de esgoto, pequenos comércios e uma Unidade Bá- sica de Saúde, ali, imponente, encontra-se a Escola Liberato

Salzano, uma instituição de en- sino municipal e, hoje, também sede do Curso Pré-Vestibular Popular Liberato (CPVP), uma ação vinculada ao programa de extensão Por Dentro da UFRGS, do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social da Universidade.

Com um corpo docen- te voluntário construído, na

sua maioria, por estudantes ou graduados da Universida- de Federal do Rio Grande do Sul, as aulas iniciam às duas horas e estendem-se até as cinco e quinze, ofertando três períodos de disciplinas dis- tintas por dia. Trinta ou vinte minutos antes do início das aulas, as escadas que servem de acesso ao segundo piso da escola, onde se situam

as duas salas ocupadas pelo cursinho, testemunham uma literal sinfonia de tênis e sapa- tos. Vindos de casa ou do tra- balho, os vestibulandos sobem

os degraus e atravessam os corredores a passos lentos ou acelerados, conversando entre eles sobre amenidades e seus temores relativos ao Vestibular da UFRGS e ao ENEM. No fim do corredor, na sala 119, um professor aguarda a chegada de seus alunos.

A vida em um cursinho po- pular não é fácil e tampouco

é comum. Aliás, nada em um cursinho popular pode ser en- quadrado como uma atividade comum (aqui entendida como uma ação recorrente e, portan- to, previsível), seja em termos de rotina administrativa, seja em termos de ação pedagógi- ca. Tomando emprestado um termo popularizado nas redes sociais: é um plot twist (revi- ravolta) constante. Não digo isso de forma negativa ou pe- jorativa. Longe disso. Nesse status incomum é que repousa a maior razão de ser da educa- ção popular e talvez sua maior arma, além de constituir, no plano pessoal, o motivo que me trouxe para a vida de educador: ser resistência.

Quando a tarde inicia no Liberato, não há como garantir que o plano de aula confeccio- nado para aquele dia seja se- guido à risca, de ponta a ponta. O alunato, para usar um termo quase abandonado e típico do ambiente acadêmico tradicio- nal, não é uniforme. Há ali, no meio daqueles que ocupam as classes e cadeiras, egressos recentes da educação básica pública, bem como quem este- ve em uma sala de aula há dez ou quinze anos atrás. Da mes- ma forma, há entre eles quem não trabalha e quem, contando com a aula, terá, ao fim do dia, três turnos de atividades. Não foram poucos os momentos em que assisti alunos adorme- cerem diante dos meus olhos e, depois, pedirem desculpas pelo fato, como se não fosse le-

gítimo estarem cansados após uma longa jornada.

Planos de aula milimetrica- mente organizados não funcio- nam em ambientes assim. São, nesses cenários, apenas gas- tos de recursos humanos e de tempo para ambos os agentes envolvidos. É necessário, por- tanto, uma conscientização por parte do docente. Na busca de termo mais apropriado: uma re- núncia. Parte do que o docente aprendeu na academia, princi- palmente os velhos hábitos da objetividade e do pragmatismo, precisa desvanecer na sala de aula, ser abandonado em favor de uma conscientização sobre quem é seu aluno e os fatores externos à aula, mas ligados a ela. Essa consciência tem por produto uma mudança de postura: não importa se não cumpriremos perfeitamente o plano de aula, não importa se a velocidade na transmissão do conteúdo for lenta, não impor- ta quantas vezes repetiremos discursos ou questionaremos se a classe entendeu determi- nado termo. O foco aqui é a real compreensão por parte do aluno e nessa ação ninguém fica para trás.

Ser educador popular é, às vezes, exercer papéis distintos do catedrático: além da com- preensão de um conteúdo cien- tífico necessário para ingresso em uma universidade pública, precisamos garantir que, entre- mentes, os alunos percebam os fatores positivos e negativos

ACER

à sua volta. Não queremos que apenas percebam a realidade, mas procedam de forma a não ignorar suas nuances. Espera- mos que, conscientes de quem são, do ambiente onde estão inseridos, dos fatores que per- passam eles e suas relações, nossos alunos empoderem-se e lutem para mudar o status

quo.

Há também situações de exposição ao limite de nossas capacidades, quando somos retirados da condição de edu- cador e incumbidos de atuar em campos diversos, onde, tecnicamente, não temos ex- pertise, como, por exemplo, a escuta ativa. A primeira vez que experimentei ocupar esse papel não foi no Liberato, mas no primeiro cursinho popular que atuei. Não foi fácil, confes- so. Uma aluna chorava copio- samente. Eu precisava intervir.

Escutá-la. Oferecer alguma forma de conforto, apesar de, internamente, temer não saber operacionalizar tais desejos. Dali em diante, principalmen- te após ingresso no quadro docente do Liberato, vivenciei inúmeros episódios, nos quais, numa única tarde, além de dar aula, escutei, aconselhei e fui confidente de alunos que pre- cisaram de mais que apenas conteúdos do vestibular.

As particularidades aqui expostas, como dito no início deste texto, não inviabilizam a educação popular, pelo contrá- rio. São elas componentes es- senciais para a compreensão da razão-fim de nossos atos enquanto militantes dessa cau- sa e da própria causa em si: ser e oferecer resistência. Agora, resistência ao quê? Eu respon- do: resistência diante do nosso atual horizonte.

O Brasil é uma das nações mais desiguais do planeta. Se- gundo estudo do IPEA (Institu- to de Pesquisa Econômica e Aplicada), de 2017, publicado pelo Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo do Programa das Na- ções Unidas para o Desenvolvi- mento (IPC-IG/PNUD), que ana- lisou dados sobre o Imposto de Renda Brasileiro entre 2006 e 2014, nosso país tem um qua- dro pungente: os 1% mais ricos concentram algo entre 22 e 23% da renda nacional dispo- nível. Associado a isso, usu- fruímos de uma precarizada estrutura pública educacional básica, com abrangência limi- tada, infraestrutura hipossufi- ciente e profissionais subvalori- zados. O resultado é, até mais recentemente, um sistema pú- blico de ensino superior elitiza- do, composto por pessoas que, diferentemente da maioria do país, tiveram uma educação de base suficiente e funcional.

Num país assim, onde poucos usufruem de largas vantagens sobre os demais e, inclusive, ocupam universida- des públicas – financiadas pe- los alijados delas, ofertar uma educação acessível e que leve em consideração as disparida- des de seu público-alvo, de for- ma a empoderá-lo para ocupar espaço na Academia e a trans- formá-lo em termos de maior cidadania, é resistir. Resistir por um mundo melhor, por um país mais justo.

ACER

VO DEDS

Impacto da vivência extensionista

na formação cidadã

FILOSOFIA NA EDUCAÇÃO POPULAR: UM ATO DE RESISTÊNCIA