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FILOSOFIA NA EDUCAÇÃO POPULAR: UM ATO DE RESISTÊNCIA Priscila Vieira Bastos Licenciada em Filosofia e Graduanda em Pedagogia (UFRGS)

A vivência como mulher negra oriunda do bairro Restin- ga1, ex-aluna cotista do Centro

Universitário Metodista do Sul – IPA, filha de pais adolescentes, militante do Movimento Negro, professora de Filosofia e educa- dora social, motivou-me a reali- zar voluntariado no Curso Pré- -vestibular Popular Liberato. O curso faz parte de um programa promovido pelo Departamento de Educação e Desenvolvimento Social, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com o in- tuito de preparar estudantes da capital e Região Metropolitana, gratuitamente, para o ingresso na Universidade, seja através do processo seletivo vestibular ou pelo Exame Nacional do Ensino Médio.

Na disciplina de Filosofia, os alunos realizaram uma revi- são do conteúdo, preparando-se para o ENEM através da interpre- tação de imagens e enunciados sobre os principais filósofos que costumam aparecer na prova. Os educandos revisaram o conteú- do de forma lúdica, numa ativida-

1 - Restinga é um bairro da zona sul de Porto Alegre - RS, criado oficialmente via Lei nº 6571 de 1990. Atualmente a Restinga é dividida pela Av. João Antônio da Silveira: de um lado localiza-se a Restinga Velha e, do outro, a Restinga Nova. Ambas compõem o mesmo bairro, e possuem características próprias, remetendo à ocupação de seus respectivos territórios nas décadas de 60 e 70 do século XX.

de envolvendo o uso de uma bola de plástico para trabalhar com os pensadores e a sensibilidade.

Os temas das aulas foram ex- planados visando o bom desem- penho dos cursistas nas provas de seleção. Já que a Filosofia é uma disciplina de investigação, de reflexão, na qual o educando faz questionamentos como: o que é cidadania? O que são va- lores éticos e morais na socieda- de? O que são direitos sociais?, o papel do educador é desaco- modar o aluno da sua zona de conforto, do senso comum, e fazê-lo refletir sobre si e os de- mais artistas sociais. Conforme a obra de Nietzsche (2007),

Para além do bem e do mal: Um filósofo: é um homem que

experimenta, vê, ouve, suspei- ta, espera e sonha constante- mente coisas extraordinárias; que é atingido pelos próprios pensamentos como se eles viessem de fora, de cima e de baixo, como por uma espécie de acontecimentos e de faís- cas de que só ele pode ser alvo; que é talvez, ele próprio, uma trovoada prenhe de re- lâmpagos novos; um homem fatal, em torno do qual sempre tomba e rola e rebenta e se passam coisas inquietantes. (NIETZSCHE, 2007, p. 207)

Considerando essas ques- tões, o curso também buscou promover discussões sobre igualdade racial e social atra- vés dos pensadores apresen- tados durante as aulas. Lem-

Educadora e educandos do CPVP Liberato exercitando método dialético

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brando que eles defendiam diferentes teorias, como liber- dade, determinismo, valores sociais, dentre tantas outras, e buscando uma proximidade dos assuntos com a realidade dos educandos, procurou-se explorar a disciplina de Filoso- fia propondo um ato de resis- tência. Quando o tema foi po- lítica, por exemplo, discutiu-se a respeito do nascimento da pólis, entretanto, também se debateu a política atual, seus retrocessos e desafios na área educacional, social e cultural, visto que: “[...] as perguntas em filosofia são mais essen- ciais que as respostas e cada resposta transforma-se numa nova pergunta”. (JASPERS, 2003, p.140). Coletivamente, foram revisados os conteúdos propostos. Todos os alunos eram importantes, todos os alunos tinham o direito de fa- lar, ouvir e serem ouvidos no Curso Pré-vestibular Popular Liberato, numa troca de sabe- res constante. Conforme Frei- re (2007):

[...], o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encon- tro em que se solidarizam o re- fletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar- -se simples troca de ideias a serem consumidas pelos per- mutantes. (FREIRE, 2007, p. 91)

Para desenvolver uma di-

nâmica de fala e escuta, um dos recursos pedagógicos utilizados foi uma bola. Do mesmo modo, na aula so- bre Maiêutica Socrática2,na

qual o método dialético visa elucidar o verdadeiro conhe- cimento. Assim, os alunos questionavam uns aos outros, refletindo sobre política de for- ma democrática.

Outro tema abordado foi a política de cotas e sua re- levância social, partindo do exemplo da minha experiên- cia como ex-aluna cotista do Centro Universitário Metodista do Sul – IPA, que, em parceria com o Centro Ecumênico de Cultura Negra – CECUNE, em 2006, proporcionou a entrada de quase trezentos negros e

2 - A maiêutica socrática tem como significado “dar à luz”, “dar parto”, “parir” o conhecimento. É um método ou técnica que pressupõe que a ver- dade está latente em todo ser humano, podendo aflorar aos poucos na medida em que se responde a uma série de perguntas simples, quase ingênuas, porém perspicazes.

pardos na Universidade. Hoje, como professora graduada e pós-graduada, busco contri- buir na formação e inserção de pessoas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como contrapartida das opor- tunidades proporcionadas pela Política de Ações Afirmativas em nosso país.

Durante as aulas não fo- ram somente os alunos que saíram da sua zona de confor- to. Também tive que rever con- ceitos e compreender, acima de tudo, que um professor com graduação e pós-graduação que não consegue comunicar- -se com todos os alunos é um profissional da educação incompleto. Numa classe de quase trinta alunos, um me deu uma lição para toda a vida.

Deparei-me com um aluno surdo, meigo, com um desejo enorme de aprender. Como re- curso para auxiliá-lo melhor, eu falava pausadamente, gesticu- lava o menos possível e tam-

Educandos do CPVP Liberato exercitando método dialético

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bém trabalhava com partes da matéria em folhas fotocopia- das que eram distribuídas para os alunos. A classe possuía in- térpretes de libras, que se re- vezavam ao longo da semana, mas, para mim não bastava, eu precisava me comunicar indivi- dualmente com aquele aluno e apresentar o conteúdo para o mesmo de forma tão satisfató- ria quanto para os demais da classe, contribuindo assim na sua jornada estudantil.

Percebi que não basta de- fender a inclusão de pessoas com deficiência no espaço escolar. É necessário ter con- dições para atendê-los, for- mação específica, recursos educacionais que envolvam as novas tecnologias, entre outros. No entanto, percebi que, apesar da dificuldade de

Referências:

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 36. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007. JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo, SP: Cultrix, 2003.

NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Martin Claret, 2007.

NOVOA, Antonio (Org.) Os Professores e Sua Formação. Lisboa, Dom Quixote, 1997.

comunicação com os colegas, existia uma interação e inte- gração entre eles.

No primeiro dia de aula, sem saber falar nada em li- bras, escrevi uma carta para o aluno, apresentando-me e colocando-me à sua dispo- sição, bem como os meus contatos de telefone e e-mail. Para minha felicidade, ele me enviou uma mensagem de- pois e assim iniciou a nossa comunicação via WhatsApp, um aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas. Dialogamos sobre a aula e, ao longo da conversa, sugeri para ele uma série sobre Filosofia:

Merlí, que fora escrita por Hec-

tor Lozano e Rebecca Beltrán. A partir de então nossa aula de Filosofia começou. Conver- sávamos sobre os episódios

que ele havia assistido e os di- lemas contemporâneos da sé- rie de quarenta capítulos que apresenta um professor de Filosofia, nada ortodoxo, que busca incentivar os seus alu- nos a pensarem livremente.

Se consegui ensinar algu- ma coisa para este aluno? Tal- vez! Contudo, tenho a certeza de que aprendi muito. A troca de experiências e a partilha de saberes consolidam espaços de formação mútua, nos quais cada professor é chamado a desempenhar, simultaneamen- te, o papel de formador e de formando (NOVOA, 1997).

Visando atender melhor to- dos os alunos surdos que surgi- rem durante a minha caminha- da docente, busquei um curso de libras. Estou longe de estar fluente, sei que tenho sempre o que melhorar como profissional da educação e como pessoa.

Uma aula de Filosofia está longe de ser apenas uma expla- nação sobre pensadores. É um ato de resistência ao domínio do capital, porque discutir polí- tica, educação e cultura de for- ma crítica, emancipa e dá au- tonomia ao educador popular.

Aula no CPVP Liberato ACER VO D A A UT ORA

Reitor

Rui Vicente Oppermann

Vice-Reitora

Jane Fraga Tutikian

Pró-Reitora de Extensão

Sandra de Deus

Vice-Pró-Reitora de Extensão

Claudia Porcellis Aristimunha

Diretora do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social

Rita de Cássia Camisolão

DEDS EM REVISTA

Porto Alegre, v. 3, n. 1, dezembro de 2019 Publicação do DEDS/ PROREXT/ UFRGS

Jornalista Responsável

Sandra de Deus

Projeto gráfico e diagramação

Paulo Baldo

Revisão

Débora Simões da Silva Ribeiro Maria Augusta Carvalho Teixeira Rita de Cássia Camisolão Vera Lúcia Inácio de Souza

Transcrição da entrevista

Aléxia Calage Val Patricia Xavier dos Santos

Conselho Editorial

Daiane dos Santos Moraes Débora Simões da Silva Ribeiro José Antônio dos Santos Luciane Bello Maria Augusta Carvalho Teixeira Patricia Xavier dos Santos Rebeca Campani Donazar Rita de Cássia Camisolão Vera Lúcia Inácio de Souza

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