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Da Assistência Psiquiátrica à Política de Saúde Mental década de 60 e 70.

Vida dos seus Destinatários

2.1. A(s) Política(s) de Saúde Mental em Portugal : Do asilo à comunidade.

2.1.2. Da Assistência Psiquiátrica à Política de Saúde Mental década de 60 e 70.

A eficiência da terapêutica psicofarmacologica, introduzida de forma mais generalizada a partir desta altura, permitiu grandes progressos no tratamento da doença psiquiátrica, criando a grande parte dos doentes a possibilidade de serem tratados/controlados sem necessitarem de permanecer no hospital, e promoveu necessariamente mudanças na forma de entender e lidar com o fenómeno. Como consequência abriram-se novas possibilidades e /ou condições à reformulação da Política de Saúde Mental em vigor até aos anos 60.

Neste período, de grande questionamento e reflexão, alargados a toda a Europa, assistimos também em Portugal à necessidade de evitar a segregação e marginalização do doente (Leal, 1972).

No inicio da década de 60 os serviços públicos de Psiquiatria eram prestados exclusivamente por cinco hospitais psiquiátricos, com 3.700 camas, localizados nas três principais cidades do país - dois no Porto, um em Coimbra e dois em Lisboa. A estrutura assistencial era pois predominantemente institucional e caracterizada por ausência de acessibilidade e uma reduzida disponibilidade de modalidades de intervenção terapêutica.

No sector privado existiam seis instituições psiquiátricas das Ordens Religiosas, com 3.100 camas utilizadas já então quase que exclusivamente para doentes mentais crónicos.

Em 1963 surgiu a Lei de Saúde Mental (LSM n° 2118) muito influenciada e contemporânea do Mental Health Act promulgado por Kennedy, que em termos de orientações políticas introduziu os princípios reformadores da política de assistência psiquiátrica que até então se praticava, que se inspiraram nas reformas já empreendidas em outros países do Ocidente. Esses princípios consistiram essencialmente na sectorização dos serviços psiquiátricos e na criação de Centros de Saúde Mental com o objectivo último de "des-hospitalizar" a Psiquiatria e levá-la ás comunidades. Procurava-se assim deslocar o fulcro da assistência psiquiátrica do hospital para a comunidade.

A desinstitucionalização, como filosofia assistencial, surge no contexto de uma perda progressiva de protagonismo e consequente perda do monopólio da assistência psiquiátrica por parte do Hospital Psiquiátrico. Essa tendência apareceu inicialmente nos anos 50, dando lugar, em muitos países, à implementação de estruturas assistenciais de base comunitária assentes na ideia de que o hospital não é de forma alguma a estrutura que responde às necessidades e à melhoria da qualidade de vida desta população específica. Para lhes responder é necessário diversificar as estratégias e estruturas assistenciais, incrementando os serviços de cariz comunitário em detrimento dos hospitalares (Bachrach, 1978).

A desinstitucionalização supõe uma mudança importante na assistência psiquiátrica que, em Portugal, ainda não encontrou porto seguro. Embora, em termos legislativos, a orientação explicita das políticas de saúde mental, no nosso país, seja a comunitária, a sua implementação tem sofrido importantes desvios relacionados com grave deficiência em matéria de criação de serviços de apoio à integração na comunidade.

A Lei da Saúde Mental de 1963 baseada em princípios próximos do modelo de organização comunitário criava assim uma estrutura de coordenação nacional e três de nível regional, com capacidade para desenvolverem e coordenarem serviços locais, a quem competiria promover a saúde mental, prevenir a doença e tratar e reabilitar as pessoas com problemas de saúde mental. Nesta lógica promulgou as bases de promoção da saúde mental, e definiu os princípios da Política de Saúde Mental regulando o tratamento e internamento compulsivos. Definia os direitos das pessoas submetidas a tratamento psiquiátrico, dando aos tribunais um papel decisivo nos internamentos compulsivos. Na Base I, capitulo I, são definidos os princípios orientadores das Políticas de Saúde Mental e estes rompem, a nível conceptual, com as orientações anteriores. Fala- se em promoção de Saúde Mental que torna necessária uma "acção profiláctica" (tónica na prevenção) de caracter individual ou colectivo; uma "acção terapêutica" (tratamento); e uma "acção recuperadora" (tónica na reabilitação e integração social através da adopção de medidas psicopedagógicas e sociais).

Para implementação destes princípios a lei prevê objectivamente a criação de duas estruturas. Uma é o Instituto de Saúde Mental (ISM), (Base IV), órgão coordenador da

Saúde Mental, de estrutura vertical, que divide o país em três zonas hospitalares - Norte, Centro e Sul - a cujas delegações compete orientar e coordenar os Centros de Saúde Mental (Base VII). Este órgão (ISM) na prática nunca existiu, mantendo-se até 1984 o IAP, criado em 1958, como também não foi definida qualquer integração a nível dos restantes serviços de saúde geral (Almeida et ai., 1995).

Esta Lei estabelece, como unidade fundamental dos serviços de saúde mental, o(s) Centro(s) de Saúde Mental (a criar, um por cada zona geográfica - Distrito - Dec.Lei n° 46102/64 de 28 de Dezembro), nos quais se previa a existência de equipas clínicas e de um conjunto de instituições extra-hospitalares. Com os 18 Centros de Saúde Mental previstos pretendia-se alargar e estender a cobertura a todo o território nacional, atribuindo-lhes a responsabilidade de prestação da globalidade dos cuidados de saúde mental da população abrangida, incluindo o internamento das situações agudas.

Na opinião de Álvaro de Carvalho, ex-director da Direcção de Saúde Mental, esta lei era indiscutivelmente avançada para a época e para o regime político existente.

Nunca foram criadas (Ferreira, 1987) a grande parte das estruturas extra- hospitalares que tornariam possível a desinstitucionalização da psiquiatria, no entanto eram previstos:

"Serviços para doentes de evolução prolongada;

- Secções...psiquiátricas funcionando em hospitais ou asilos gerais...; - Estabelecimentos de tratamento de alcoólicos e outros toxicómanos;

- Hospitais de Dia e Hospitais de Noite em ligação com os hospitais Psiquiátricos ou Hospitais Gerais;

- Serviços de colocação familiar e de assistência domiciliária;

- Serviços livres, agrícolas, artesanais...como as oficinas protegidas, em que os doentes viverão em regime de comunidade...;

- Lares educativos, para reinserção social do ex-doente..." (Base XIV)

Embora este modelo implicasse a reestruturação dos hospitais psiquiátricos, a Lei não a definia claramente. Esta ambiguidade teve como consequência que não fosse criado nenhum Centro de Saúde Mental nos três distritos em que se localizavam os Hospitais

Psiquiátricos e que, por coincidência, eram os mais desenvolvidos a nível económico, social, cultural e populacional. Esta situação inviabilizou assim a referida reestruturação e manteve inalterável a influência das estruturas hospitalares especializadas.

A Base XXII previa que o internamento pudesse ser efectuado sob duas formas: em regime aberto ou fechado. O que distingue estes dois regimes é o facto de no primeiro serem "reconhecidas ao internado as garantias normais dos admitidos em hospitais comuns, em especial o direito de saída", enquanto que no segundo tal não se verifica. A base XXV da Lei justifica este regime no seu n°3, "pelo carácter perigoso ou anti-social do internado, ou pela sua oposição injustificada, actual e eventual, a um internamento considerado meio presumivelmente eficaz de debelar um espírito anormal, grave e prejudicial ao doente naquele momento ou na sua provável evolução". A Lei de Saúde Mental conferiu neste domínio tacitamente, amplos poderes ao legislador e aos seus intérpretes, visto que a Constituição da Republica Portuguesa de 1933, vigente à data da publicação da Lei da Saúde Mental não definia os pressupostos em que este tipo de restrição da liberdade poderia acontecer.

O Dec.Lei n° 413 de 1971 aproximou a política de saúde mental portuguesa das correntes europeias na medida em que definiu a articulação dos Serviços de Saúde Mental com outros Serviços de Saúde (ARS) - Psiquiatria de ligação - e integrou a, então definida, Direcção Geral de Serviços de Saúde Mental, na Direcção Geral de Saúde. Outros princípios definidos internacionalmente e que Portugal ainda não previa dizem respeito à reabilitação psicossocial, à desinstitucionalização e aos direitos dos doentes mentais, como sejam o consentimento do tratamento e direito à informação, entre outros. (Caldas et ai., 1995; Presidência do Conselho de Ministros, 1997).

Apesar da evolução legislativa, na prática, em direcção à comunidade, a situação da Saúde Mental em Portugal estava ainda centrada no grande hospital psiquiátrico e no médico psiquiatra como seu agente privilegiado.

Com a revolução de Abril de 1974, dado o contexto de ruptura política, a aplicação do Decreto-Lei n° 413 de 1971 fica comprometido, sobretudo no que respeita à integração nos cuidados de saúde primários.

( BIBLIOTECA

saúde, marcam, neste período revolucionário, a tentativa de democratizar o acesso asaTRIe (onde se verificam grandes desigualdades), e neste caso à saúde mental, cujas estruturas estavam concentradas nas três grandes cidades do país, e que assentava em algumas estruturas públicas (Hospitais Psiquiátricos, dispensários e na clínica privada, unidades de internamento e hospitais psiquiátricos, sobretudo) e em casas de saúde privadas. Em 1976, um documento elaborado pelo IAP e por um grupo de trabalho da Zona Centro avaliava a situação dos Serviços de Saúde Mental: "Os Serviços de Saúde Mental, como tal, isto é, orientados para a promoção da saúde e não apenas para o tratamento da doença, tem sido entre nós, praticamente inexistentes. Os serviços do IAP praticam em regra uma psiquiatria passiva, centrada no médico, que ainda alheio a todo o tipo de trabalho em equipa vem actuando dentro de uma pseudo auto-suficiência centralizadora, quer nos dispensários quer nas grandes unidades hospitalares psiquiátricas, onde, por consequência se vão acumulando os "alienados"(IAP et ai., 1976, pág.2).

No inicio da década de 80 tinham sido criados vinte e um Centros de Saúde Mental (os primeiros surgiram em 1965), que cobriam 60% da população (cerca de 6 milhões) e incluíam os três especialmente vocacionados para as crianças e adolescentes, localizados em Lisboa, Porto e Coimbra. Em muitos deles, porém, os recursos eram limitados, a fixação de profissionais, sobretudo no interior, era difícil e a integração de algumas instituições de tipo asilar prejudicou o desenvolvimento dos cuidados comunitários. Mesmo assim alteraram profundamente o panorama da prestação de cuidados, melhorando a acessibilidade aos cuidados e facilitando o desenvolvimento de novas formas de intervenção, mais centralizadas na comunidade e com melhor ligação aos outros serviços de saúde e segurança social. Avancemos para o ponto seguinte.