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Nesta parte do trabalho iremos referenciar apenas os acontecimentos históricos mais significativos da introdução da assistência aos doentes mentais no nosso país e das ideias mestras que orientaram a prática clinica, o ensino e a investigação deste fenómeno. Não existem ainda muitos estudos monográficos de historiografia que abordem este tema e que permitam situar com rigor a sua evolução no contexto sociocultural e económico- político a que está intimamente ligada. Foram, aliás, certas dificuldades históricas, ligadas ao necessário triunfo e estabilização do Liberalismo no séc. XVIII, que retardaram por quase cinquenta anos a introdução, entre nós, dos grandes avanços que iam ocorrendo nesta área e do aparecimento das tão necessárias instituições oficiais de assistência aos "Loucos". Em Portugal a "história da loucura" é muito semelhante à do resto da Europa. Tal como em outras partes foi necessário ultrapassar preconceitos e representações

enraizados, muito deles de sustentação arcaica, mítica e religiosa sobre a forma como foi entendido o fenómeno da loucura.

Segundo Melo et ai. (1981, pág. 359) "A primeira noticia sobre o tratamento dos loucos em Portugal (...) data de 1539 e consta de um documento em que nos diz que os doentes mentais eram tratados no Hospital de Todos-os-Santos".

Em 1601, com D. Filipe II de Portugal, a segregação social dos loucos aumenta bem assim como o aumento do número de casas a eles destinadas. "Isolados da comunidade, amontoados nos ghettos(...)os dementes foram vegetando e definhando até à transferência para Rilhafoles em 1848/50" (Oliveira, 1983, pág. 7).

O Hospital de todos os Santos, destruído por sucessivos incêndios em 1601 e em 1750, sofreu grandes melhoramentos sob o reinado de D. João V. Com o megasismo que assolou Lisboa em 1755, um novo incêndio destruiu o hospital sendo os doentes trazidos para baixo de cabanas do Rossio e posteriormente para as cocheiras do Conde de Castelo Melhor sendo finalmente instalados no Convento de Santo Antão, que passaria mais tarde a designar-se por Hospital Real de S. José.

E no reinado de D. José - no século XVIII - que são decretadas as primeiras medidas oficiais de repressão e combate à indigência através do internamento compulsivo. Em 1760, o Marquês de Pombal cria a Intendência Geral de Polícia da Corte do Reino que vai promulgar medidas repressivas da ociosidade e da mendicidade. Em 1763, reconstruído o hospital do Rossio, abriu-se uma enfermaria com o nome de S. João de Deus, em honra deste pioneiro da assistência baseada na caridade e respeito pelos doentes. Em 1775, estes enfermos foram transferidos para o "as tristemente célebres enfermarias de S. Teotónio e Santa Eufemia do Hospital de S. José" (Pichot et ai, 1983, pág.250) onde a "assistência que lhes era prestada era imperfeita, rudimentar, mais cárcere que hospital" (Oliveira, 1983, pág. 7).

Sabemos que a assistência prestada a estas pessoas era geralmente dirigida pelo médico mais novo do quadro do hospital, dois dos quais se destacaram, Bizarro e António Maria Ribeiro, que aplicavam nos seus tratamentos sanguessugas em torno das jagulares, à roda do ânus ou ao longo da coluna vertebral, socorrendo-se das ventosas, vesicatórios, bebidas ácidas e também dos banhos e das emulsões antiespasmódicas (Sobral Cid, in

Oliveira, 1983). Deve-se ao Dr. Bizarro a primeira publicação estatística sobre doentes mentais, baseada na classificação de Pinei, que continuava nos países cientificamente menos desenvolvidos nesta área, a ser o oráculo na matéria.

Apesar destes esforços, a falta de médicos que apresentassem um outro entendimento da loucura e as dificuldades financeiras gerais sentidas na época, contribuíram para a decadência das instalações do hospital S. José e degradação total dos cuidados prestados, originando uma situação de verdadeira calamidade.

Em 1780, Pina Manique, Chefe da Polícia, inaugura a primeira casa de internamento, (a Casa Pia de Lisboa) cujos objectivos não diferiam dos das casas de correcção que tinham surgido pela Europa um século antes (Fleming, 1976; Melo et ai., 1981). Victor Ribeiro destaca de um trecho de Latino Coelho sobre Pina Manique, o seguinte: "buscou fundar um instituto, que fosse ao mesmo tempo casa de correcção e oficina de lavor para os que por sua vida e costumes pervertidos ofendiam a Segurança e a Moral... As causas que produziam a despovoação do reino, a decadência da agricultura, a frouxidão do trabalho nacional e a perigosa acumulação de gentes ociosas e suspeitas em Lisboa eram apontadas sagazmente pelo intendente da polícia, nos papeis que frequentemente dirigia ao governo da Rainha" (in Fleming, 1976, pág.18).

Não consta claramente nestas medidas que os doentes mentais fossem alvo de internamento, pelo menos de forma objectiva, o que não impede que entre a massa indigente estivessem os "loucos". Os "loucos" portugueses, à semelhança dos de outros países da Europa, também foram associados a outros "tipos sociais" e não considerados como uma categoria autónoma.

António Maria de Sena diz que ainda no século XIX os alienados continuariam "sem eira nem beira" vagabundeando pelas ruas ou a serem presos ou recolhidos nos Hospitais Gerais que não tinham condições para os receber e tratar. É somente no século XIX que, (tendo por referência a lei francesa de 1838, que previa a criação de estabelecimentos próprios para doentes mentais), se começam a abrir os primeiros asilos, institucionalizando a loucura em locais apropriados (Melo et ai., 1981).

Em 1841, o benemérito António Sampaio e mais tarde o seu filho Osborne Sampaio ofereceram parte da sua fortuna a favor dos alienados, depositando numa

comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia e do Real Hospital de S. José a responsabilidade de constituírem um novo hospital. No ano seguinte, após intensas discussões, por Decreto de 23 de Julho, o governo cedeu o edifício do Colégio Militar da Luz para que se criasse um novo hospital para doentes mentais. Bernardino António Gomes, primeiro médico da família real, médico naval interessado pelos loucos internados no Hospital da Marinha e António Maria Ribeiro, foram nomeados por D. Maria II para o estudo quer a nível nacional quer a nível internacional de todas as medidas que permitissem melhorar os cuidados assistenciais aos alienados.

Só depois de 1848, como consequência destas movimentações e discussões públicas, na sua maioria promovidas pela Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa, foi criado em Lisboa o Hospital de Rilhafoles - aquele que é considerado por muitos, como a primeira instituição oficial para assistência aos "loucos". Inserido num momento de maior estabilidade política, após as revoluções da Maria da Fonte e da Patuleia, a abertura a 13 de Dezembro deste hospital no velho convento de S. Vicente de Paula representou também um acto político da intervenção directa do Ministro do Reino, o marechal Duque de Saldanha, junto da Rainha D. Maria II.

Em 1851 é criado o primeiro regulamento interno da Instituição, inspirado na Lei de 1838 publicada em frança sob Luís Filipe, influenciado por Parchapé, o «Napoleão dos Asilos».

O Hospital de Rilhafoles abriu com uma lotação de 300 doentes, embora sob tutela do Dr. Pulido, primeiro director da Instituição, fossem integrados cerca de 322 utentes, escolhidos entre os muitos que em condições inumanas se acumulavam em duas enfermarias do Hospital S. José. Em 1 de Dezembro de 1864 existiam em Rilhafoles 532 alienados a que se vieram juntar 278 novas admissões durante 1865, atingindo a população do hospital no final do ano, deduzidas altas e óbitos, 513 doentes (Oliveira,

1983).

Guilherme Abranches, que viria a substituir interinamente o anterior Director, introduz nas práticas do hospital a hidroterapia e a ocupação dos doentes. Encontram-se referências ao uso do trabalho agrícola, aos ofícios de sapateiro, alfaiate, carpinteiro, pedreiro, trabalhos domésticos e o uso de jogos de bilhar e de gamão, desenho, pintura,

literatura, música, teatro como forma de distracção dos doentes de classes sociais mais elevadas.

O uso do banho como terapêutica era considerado de grande sucesso na época. A utilização de banhos tépidos, frios, de vapor nos balneários de Rilhofoles ou recorrendo em deslocações maciças às aguas do Tejo era tido como uma terapêutica de grande sucesso, reforçada até pela raridade deste hábito de higiene na cultura portuguesa da época (Oliveira, 1983).

Abranches conseguiu imprimir alguma eficiência e organização ao Rilhafoles, chegando a propor a criação de mais dois hospitais e dois asilos para recolher e tratar os doentes de todo o reino e, na área do Rilhafoles, a construção de um hospital-modelo para 200 a 300 doentes, que permitisse desanuviar as taxas de ocupação verificadas.

Em 1882, na sequência de um legado do Conde de Ferreira para alienados, nasce o Hospital Conde Ferreira permitindo que os alienados dessa zona do país deixassem de ser recolhidos "em tristíssimas condições, no Hospital de Santo António, no expressivamente chamado «porão» (...) ou recolhidos em Prisões" (Pichot et ai., 1983, pág. 255). Dirigido por António Maria de Sena, criador dos edifícios das escolas primárias e professor da Universidade de Coimbra, o Hospital nasce com um avançado regulamento dos serviços. Sena, depois de Bizarro em Lisboa, fez um levantamento que procurava identificar o número de alienados existentes, concluindo para o país números mais altos (cerca de 6000) do que Bizarro, Pulido, Ribeiro e Abranches, mas inferiores ao Censo da População de 1876 (cerca de 8000 alienados), para os quais só havia um único hospital de apoio, com um número já excessivo de 500 camas e que já oferecia sinais evidentes de decadência.

Por outro lado, impregnado pelas ideias evolucionistas da época, Sena, articulou a alienação mental com a história natural, dando grande relevo à hereditariedade na patogenia das doenças, sem deixar, no entanto, de realçar a importância dos factores adquiridos. Colaborando com a Provedoria da Santa Casa da Misericórdia do Porto a quem pertencia, do ponto de vista administrativo, o Hospital Conde Ferreira, recomendou medidas eugénicas para prevenir o «perigo da procriação livre de alienados e predispostos» (Pichot et ai., 1984).

Portugal, na educação do pessoal médico, de enfermagem e outros e a obrigação de desenvolverem estudos científicos acerca da doença mental, expresso em regulamento interno.

Em 1889 é promulgada a primeira lei especial sobre assistência a alienados, impulsionada por António Maria de Sena.

Em 1892, por forte pressão da opinião pública levada à Câmara dos Deputados por Dias Ferreira, Miguel Bombarda foi nomeado Director do Hospital de Rilhafoles e inicia um período importante no que diz respeito à organização e gestão da terapêutica e do estudo cientifico da psiquiatria. Rilhafoles, que havia adquirido a conotação da horrível e assustadora loucura o asilo dos lunáticos, entraria numa fase de reflorescimento.

Numa lógica de libertação dos doentes da marginalização institucional para que foram empurrados, Miguel Bombarda introduziu um plano de acção que visava essencialmente a melhoria do apoio clinico e uma radical transformação dos serviços hoteleiros. Neste sentido foram reformuladas as condições de higiene, a alimentação foi enriquecida, foi implementada a ergoterapia, o hospital foi aumentado através da construção de novos pavilhões e foi beneficiado com a introdução de iluminação e gaz. Outros aspectos como a organização administrativa e disciplinar foram também intervencionados. São eliminados os meios de contenção como as cadeiras fortes, as coleiras, mas deixados alguns meios de repressão, como a redução alimentar e a limitação de visitas.

Como base de sustentação da sua política, Bombarda propôs a independência administrativa e financeira de Rilhafoles em relação ao Hospital de S. José, a anexação do Convento de Santa Marta e a aquisição dos terrenos da quinta do Borba, que se situava entre os dois estabelecimentos. Contudo esta autonomia em relação ao Hospital de S. José, tão desejada por todos pertencentes a Rilhafoles, prevista em regulamento em 1851, só viria a ocorrer em 1945. Miguel Bombarda procurou também, nesta fase, introduzir a investigação clinica e laboratorial, tendo efectuado inúmeras publicações e não deixou de focar o problema do ensino da Psiquiatria que, só em 1911, viria a ser introduzida oficialmente no plano de estudos médicos.

desenvolvidas por Vogt, já referidas anteriormente, e separa claramente os «estigmas de degenerescência» dos chamados «estigmas adquiridos». Dando grande relevo às perturbações vasomotoras e ao papel dos afectos, conceptualiza inicialmente a loucura como sendo essencialmente uma «doença dos sentimentos» (Pichot et ai., 1984). Em termos de síntese, considerava que num plano de organização geral de um hospital devia- se integrar conjuntamente a assistência, o ensino e a investigação, conforme é hoje usualmente defendido mas nem sempre seguido e respeitado.

Em 1893 a ordem de S. João de Deus estende a Portugal a enfermagem religiosa prestada a alienados pela ordem, constituindo a Casa de Saúde do Telhai em 1895. A mesma ordem funda a Casa da Idanha destinada exclusivamente a mulheres.

Esta caracterização evidência alguns marcos históricos na forma como a sociedade portuguesa lidou com esta problemática até ao séc. XIX e que estiveram na génese das primeiras políticas de saúde mental, que iremos a seguir analisar.

Conforme vimos no primeiro e segundo ponto deste capitulo, a loucura e os loucos, independentemente da época ou do lugar, foram sempre figuras controversas, tratadas com alguma ambiguidade e desconfiança. Sobretudo, sendo um fenómeno bio- psico-social de indiscutível amplitude foram e são um produto do sistema cultural, político e económico vigente em cada época e em cada contexto. Do estatuto de loucos e/ou «possuídos» ao de doentes, marginalizados e expulsos para locais longínquos ou encerrados em asilos/prisões, mais tarde transformados em hospitais, ou ainda, por força de pressões politico-económicas, libertos e desistitucionalizados para a «sociedade dos normais» (que funcionaram e funcionam muitas vezes como prisões globais), as pessoas com problemas de saúde mental chegam aos nossos dias carregadas com um património cultural e social que reproduz esta lógica de marginalização, segregação e ambiguidade. Pensamos que em toda a história e adequado ao contexto socio-cultural de cada época, em termos gerais (não particularizando), quer estando presos ou encerrados em asilos, quer estando mais inseridos socialmente (família ou estruturas sociais comunitárias), as pessoas que apresentam uma doença mental não dispõem de níveis de qualidade de vida satisfatórios ou adequados, se pensarmos em função das disfunções que em principio seria normal apresentarem e se analisarmos por comparação com outras doenças crónicas(

diabetes...). Esta situação evidência claramente que estas pessoas e estas patologias sofrem, de forma singular, sem exemplo comparável, a pressão das culturas, das sociedades, de tudo de bom e de mau que as constituem.

Invertendo agora por breves instantes a nossa lupa de leitura, através da loucura e do louco, foi-nos possível perceber e caracterizar como é que em cada época as diversas sociedades se organizavam e se estruturavam do ponto de vista político e cultural. São disso exemplos, entre outros, a revolução francesa e o impacto gerado no entendimento do Homem e em particular do Louco por todo o mundo ou ainda a implementação em Portugal do Liberalismo que possibilitou a implementação dos primeiros cuidados específicos para estes enfermos, que se assumiriam como as primeiras políticas dirigidas em particular para esta problemática, conforme veremos no capitulo seguinte, que trata das diferentes políticas de saúde mental implementadas no sentido de promover a qualidade de vida das pessoas com problemas de saúde mental.

Cap. 2

As Diferentes Orientações nas Políticas de Saúde Mental