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Esquizofrenia e Qualidade de Vida

3.2. Qualidade de Vida

3.2.1. Evolução do conceito de Qualidade de Vida

A Qualidade de Vida tem-se apresentado como uma aspiração humana transversal ao tempo e à história, umas vezes sob a forma de sonho de felicidade, outras vezes proposta como a tarefa preceptiva do estado do bem-estar moderno. Enquanto objecto de estudo tem sido partilhada pelas várias ciências, incluindo a Psicologia. O que a caracteriza é precisamente a sua movimentação num terreno pluridisciplinar (Faquahar, 1995), lugar de confluência onde o psicólogo, o político, o economista, o médico, o sociólogo, junto com muitos outros profissionais, elaboram as suas abordagens.

Apesar da preocupação com a Qualidade de Vida existir desde sempre, o conceito é recente. Aparece na década de 60 e desenvolve-se posteriormente no contexto da investigação cientifica que entretanto prolifera, inicialmente no campo da Sociologia e da Psicologia, tornando-se um termo popular no campo da Saúde, sobretudo nos anos 80. Esta importância e vulgarização do conceito deve-se sobretudo a fenómenos como a globalização económica, a industrialização, as desigualdades sociais, o aumento da poluição, a explosão demográfica, o excesso de consumo e de desperdício, o progressivo esgotamento dos recursos não renováveis, a inflação, o desemprego, a marginalidade, contribuíram para a emergência do conceito dinâmico de qualidade de vida (Caeiro in Bessa, 2000).

As expectativas, os desejos, as necessidades, sociais e individuais, não são homogéneos e imutáveis, pelo contrário, elas são condicionadas pelas coordenadas espácio-temporais, ou seja, variam em função da cultura e do sistema de valores a que se pertence.

Nas sociedades actuais podemos dizer que o conceito de qualidade de vida é um conceito polissémico (Bessa, 2000), transversal aos diversos contextos onde as nossas vidas decorrem: o espaço institucional, o espaço doméstico ou o lazer, entre outros. O conceito entrou definitivamente na linguagem quotidiana (seja o discurso científico seja o discurso do senso comum) e é constantemente reivindicado enquanto valor social e direito social.

Historicamente o conceito de qualidade foi alvo de uma abordagem essencialmente filosófica (desde a Grécia Clássica ao século XIX encontramos reflexões sobre o conceito) enquanto que na actualidade nos aparece muito mais ligado às questões da vida prática: "Qualidade de Vida tem sido aplicado ao bem-estar e à saúde, ao impacto da doença, recursos financeiros disponiveis, trabalho e lazer, papeis sociais, cultura, preocupações da comunidade e integração na comunidade. Também se tem registado desacordo relativamente à questão de se a qualidade de vida é primariamente um fenómeno objectivo ou subjectivo" (Raphael e outros, 1996, pág.2, in Bessa, 2000).*2 Como assinala Garcia

Riano (1991), não existem referências históricas do termo Qualidade de Vida em si, resultando desse facto a necessidade de recorrer a termos como saúde, doença, bem-estar desenvolvimento humano e felicidade para traçar as origens do aparecimento do conceito Qualidade de Vida.

As primeiras descrições relativas à saúde e à doença, encontram-se nos escritos gregos e romanos. Nos finais do século VI a c, com o nascimento da Medicina hipocrática, a doença é apresentada como uma natureza intrínseca ao homem e não restringida a forças obscuras e misteriosas de carácter sobrenatural exteriores ao homem.

A Antiguidade e a Idade Média, períodos históricos de grandes epidemias indistintamente designadas por peste assistiram ao desenvolver e aprofundar da explicação das doenças através de factores sobrenaturais. A propagação das doenças era frequentemente atribuída ao castigo de Deus, uma "maldição divina" pelos pecados humanos (Ferreira, 1975; Foucault, 1990; Herzlich, 1991).

O Séc. XVIII por sua vez assiste ao desenvolvimento da noção de contágio e ao desencadear de medidas no sentido de travar a propagação das epidemias (Foucault, 1990; Herzlich, 1991). A doença passou a ser encarada como um fenómeno natural que podia ser

2 *Citação na lingua original - "QOL has been applied to wellness and health, the impact of illness, availability of financial

resources, work life and leisure, life roles, culture, community concerns, and community integration. There has also been disagreement on whether QOL is primarily an objective or a subjective phenomena" (Raphael e outros, 1996, pág.2, in Bessa, 2000).

combatido não pelos sacrifícios e penitencias mas pela higiene, isolamento, etc. (Reto, F., 1999). Sem dúvida que se trata de um período em que se lançam as primeiras sementes que permitiram aos séculos seguintes desenvolver a área do bem estar social e o problema da saúde pública.

No séc. XIX os relatórios Chadwich na Inglaterra (1842) e o relatório Shattuk nos EUA (1850) instauram uma acepção de saúde pública na qual os aspectos de saúde e bem- estar social se apresentam intimamente associados. Em ambos os relatórios, analisam-se conjuntamente a saúde publica, as condições de trabalho, a dieta e o sistema alimentar, a taxa de mortalidade e a esperança de vida, o sistema de escolaridade, o estado das casas e das cidades, assim como as formas de vida das diferentes classes sociais (Piédrola, 1991).

O reconhecimento dos direitos humanos e os direitos dos cidadãos nos Estados do séc. XIX trouxe novas fronteiras para o conceito de qualidade de vida. Assim, reconhecendo a actividade, a acção individual, a luta política, a liberdade de associação e reunião, a liberdade religiosa e de opinião bem como a sua livre expressão, introduzem-se novos contornos políticos e sociais ao conceito de qualidade de vida. O relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 1994) refere que, até ao século XX, políticos, filósofos, académicos consideravam a qualidade de vida o resultado da capacidade humana para fazer pleno uso das potencialidades económicas, sociais, culturais e políticas visando o desenvolvimento equilibrado da sociedade, com respeito pelo universalismo do direito à vida.

Os desenvolvimentos científicos operados a nível da medicina no séc. XIX e primeira metade do séc. XX possibilitaram que a tónica se deslocasse do colectivo (como no caso das grandes epidemias) para o individual, orgânico. Privilegia-se o tratamento do sintoma em detrimento da sua articulação com o resto do corpo e da mente bem como do contexto em que a doença se desenvolve.

O entendimento da saúde enquanto estado de bem estar individual progressivamente mostrou-se limitado e incapaz de responder aos desafios colocados pela complexidade dos problemas emergentes: "os riscos que as investigações epidemiológicas vão revelando (...) distribuem-se pelo ambiente económico, cultural e social das populações e são condicionados pelos estilos de vida e de comportamento dos indivíduos,

das famílias e dos diversos grupos e comunidades" (Motta, 1985, pág.656, in Reto, F., 1999).

De facto a partir da IIa Grande Guerra, com o estabelecimento das democracias

parlamentares e com a instauração de uma economia de mercado foi possível atingir um desenvolvimento económico sem precedentes que se veio manifestar a nível da Qualidade de Vida.

A saúde enquanto "estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade" foi definida pela OMS em 1946 e constitui um marco de mudança importante dado que o entendimento que até então predominava encarava a doença como um estado orgânico e a saúde como ausência de doença (Ferreira, 1990b). Falar de saúde é falar do pleno desenvolvimento e realização dos indivíduos, das suas aspirações, aptidões, capacidades bio-psico-socio-culturais, o que implica também a qualidade de vida, na interacção satisfatória e construtiva com os outros e com o meio físico onde estão inseridos.

Progressivamente readquiriu-se uma visão comunitária da saúde, cada vez mais ligada à sua componente social. Desenvolveram-se e generalizaram-se as intervenções a nível da prevenção e promoção da saúde.

Os anos 60 assistem ao desenvolvimento do conceito de Qualidade de Vida que questionou a filosofia em que as sociedades ocidentais assentavam e levou à constatação de que o crescimento económico não significa necessariamente desenvolvimento social. É célebre a caracterização que o Presidente Jonhson's nos EUA faz, em 1964, da "sociedade afluente" como estando preocupada "não com o quanto, mas com o quão bom, não com a quantidade de bens mas com a qualidade de vida" A qualidade de vida é vista como o resultado da capacidade humana para fazer pleno uso das suas potencialidades económicas, sociais, culturais e políticas. Neste contexto da sociedade americana de facto fenómenos como a violência, o crime e a desordem publica ganhavam cada vez mais visibilidade, apesar de se verificar um cada vez maior crescimento económico. Para analisar a Qualidade de Vida passaram então a considerar-se indicadores societais com o fim de avaliar o bem-estar da nação, como sejam os níveis educacionais, tipo de habitação, taxas de crime nos bairros, etc. Durante algum tempo a vinculação da Qualidade de Vida

ao desenvolvimento económico fez com que não fossem tidos em conta aspectos mais qualitativos do conceito (Blanco, 1985). Nem a sociedade opulenta e consumista significa qualidade de vida, nem o bem-estar material e económico coincide com o bem-estar subjectivo, com a satisfação com a vida e com o sentido de felicidade.

Nos anos 70 os factores psicológicos ou subjectivos ganharam terreno sobre os indicadores sociais mais quantificáveis tentando afirmar-se como uma medida mais precisa da Qualidade de Vida (Day & Jankey, 1996). A Psicologia sugere que as medidas subjectivas podem explicar a variação da qualidade de vida do indivíduo não explicada pelos indicadores objectivos. Surge então a preocupação pelos aspectos qualitativos e quotidianos da vida que o desenvolvimento económico por si só não pode garantir, o que outorga ao conceito um rosto mais humanizado porque atento aos detalhes individuais da existência como a felicidade, a dor.

A partir daqui, as pesquisas e as intervenções vão-se pautar por uma destas duas tendências que acima identificamos. Sucintamente poderíamos dizer que se o conceito de Qualidade de Vida inicialmente consistia no cuidado de saúde pessoal, logo se converte na preocupação pela saúde e higiene publicas, estendendo-se posteriormente ao direitos humanos, laborais e de cidadania e ainda à capacidade de acesso aos bens económicos e finalmente converte-se na preocupação pela experiência subjectiva do sujeito perante a sua vida social, a sua actividade quotidiana e da sua própria saúde.