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Da estrutura e espontaneidade, das externalidades e internalidades,

10 DAS ANTINOMIAS, POLARIDADES E PARADOXOS

10.1 Da estrutura e espontaneidade, das externalidades e internalidades,

A estrutura e a espontaneidade138, enquanto antinomias, podem ser entendidas como regulação entre organizações e mercados. Os mercados constituem-se componentes livres, comparáveis a um bando de pássaros em vôo, em que as ordens emergem de cada pássaro, atuando individual e instintivamente, como afirmam Brown & Duguid (2001:149), inspiradores desse subtítulo. A auto-organização do mercado é extremamente produtiva, porque ajuda a sociedade a escapar da rigidez do planejamento. No entanto, a organização formal é necessária porque evita a autodestruição dos mercados em sua espontaneidade, fornecendo as regras para manter a concorrência e evitar monopólios.

137 Internalidades são aqui entendidas como questões ligadas ao núcleo do negócio, sendo, portanto, estruturantes,

e externalidades são entendidas como fatores que favorecem a sua existência, ou o contexto capacitante (von Krogh & Nonaka), advindo da prática empresarial. Contudo, no Dicionário de Filsofia, encontramos ao lado de significados ligados à consciência e ao que não é o sentido que, segundo Hegel, identificava o interior como a “razão de ser” e o exterior como a sua manifestação. (ABBANANO, 1982).

138 Esse título ‘Estrutura e Espontaneidade” foi inspirada em um artigo de autoria de Duguid & Brown (1998),

apresentado por Oliveira (2001). Pesquisando o significado dessas duas expressões no Dicionário de Filosofia, encontramos: “estrutura em plano generalíssimo é equivalente a plano, construção, constituição. Em sentido mais restrito, estrutura não é um plano qualquer, mas {obedece}um plano hierarquicamente ordenado, uma ordem finalística, intrínseca, destinada a conservar, o quanto possível, o próprio plano. Já a palavra espontaneidade, enquanto adjetivo, da tradução latina, significa livre.” (ABBAGNANO, 1982).

Entendida como uma comunidade construída, a Microcity e as categorias internas – Modelo de Negócio, Ciclos, Singularidade – constituem-se, pois, competência essencial da empresa e foram consideradas como os settings nos quais o conhecimento tácito se abrigou tanto do ponto de vista do conhecimento pessoal, como do conhecimento organizacional. A competência essencial de uma organização também se intitula core competência, ou seja, o coração da empresa. Esse conceito tem sido denominado diferentemente por vários autores como competências distintivas, competências essenciais ou organizacionais, competências específicas, desenvolvimento de recursos, ativos invisíveis, entre outros. (LEONARD- BARTON, 1992). As características do Conhecimento Tácito estão aí presentes: conhecimento especial, singular, com grandes dificuldades na sua codificação, senão a impossibilidade, mas que emerge com força quando as circunstâncias assim o ensejam. As demais categorias analisadas – alegria, pura diversão, dispositivos de Aprendizado, tabus ligados a hierarquia139 e lucro – podem ser entendidas como fatores externos ao negócio, que favorecem mais do que fundam a sua existência.

Essa conclusão leva ao cerne de pesquisas recentes feitas em administração estratégica, na chamada “Visão da Empresa Baseada em Recursos140”, que combina a análise interna e externa da organização. Essa abordagem propõe que os recursos internos à empresa sejam os principais determinantes de sua competitividade, em oposição à abordagem da análise da indústria, na qual o principal determinante da competitividade da empresa é sua posição na indústria, (OLIVEIRA, 2001:123). A emergente “Visão Baseada no Conhecimento” ainda não se constituiu teoria de empresa, embora haja cada vez mais a compreensão de que o conhecimento é o principal ativo estratégico de uma organização. Trata-se de uma abordagem em expansão.

Um saber agir responsável e reconhecido que implica mobilizar, integrar, transferir conhecimentos, recursos, habilidades, que agregue valor econômico à organização e valor social ao indivíduo. (FLEURY & FLEURY, 2000:21)

139 As instituições hierárquicas de comando-e-controle da Era Industrial, que, nos últimos quatrocentos anos,

cresceram a ponto de dominar a vida comercial, política e social, estão cada vez mais irrelevantes em face de explosiva diversidade e complexidade da sociedade no mundo inteiro. Estão falindo, não apenas no sentido de colapso, mas de forma mais comum e perniciosa, cada vez mais incapazes de atingir o objetivo para o qual foram criadas, as organizações continuam a se expandir e devorar recursos, a dizimar a “terra” a aviltar a humanidade”. (DEE HOCK, 1998:17/18).

140 A visão da empresa baseada em recursos tem em Wernefelt seu principal representante. Outros poderiam ser

Trata-se de uma definição de conhecimento adequada para explicar o que foi encontrado na prática da Microcity: a apropriação de um saber agir, construído ao longo do tempo, feito de forma coletiva, alinhado a uma visão estratégica de futuro. A especificação de um trabalho em conjunto pode ser vista em seguida.

{as pessoas} (...) se reúnem porque vêem valor em suas interações. Como passam tempo juntas, elas tipicamente compartilham informações, visões e conselhos. Elas se ajudam a resolver problemas. Discutem suas situações, suas aspirações e necessidades. Elas ponderam sobre questões comuns, exploram idéias e agem como espelhos. Elas podem criar ferramentas, padrões, projetos genéricos, manuais e outros documentos – ou podem simplesmente desenvolver um entendimento tácito do que compartilham. Seja como acumulam conhecimento, tornam-se informalmente ligadas pelo valor que vêem em aprenderem juntas. Este valor não é meramente instrumental para seu trabalho. Ele também resulta na satisfação pessoal de conhecer colegas que entendem as perspectivas uns dos outros e de pertencer a um grupo interessante de pessoas. Com o tempo, elas desenvolvem uma perspectiva única sobre seu assunto, bem como um corpo comum de conhecimento, práticas e abordagens. Elas também desenvolvem relacionamentos pessoais e formas estabelecidas de interagir. Elas podem até desenvolver um senso comum de identidade. (WENGER, McDERMOTT & SNYDER , 2002:4).

Essa caracterização feita pelos autores presta-se sob medida para compreender a realidade encontrada na Microcity.

Se as pessoas compartilham uma prática, então elas compartilharão o know how ou o conhecimento tácito. (...) Se este know how e este conhecimento tácito compartilhado tornam possível compartilhar efetivamente o know that ou o conhecimento explicito efetivamente, então tais comunidades compartilhando circunstâncias em que estão imersas, elas também são efetivas na circulação do conhecimento explícito. (BROWN & DUGUID, 2001: 205)

Conhecimento individual e coletivo nesse contexto ajustam-se uns aos outros como as partes de intérpretes individuais para completar um número musical, as linhas de cada ator para o

script de um filme ou os papéis de um time para o desempenho em um jogo141, conforme

afirmam Brow & Duguid (1998).

141 O uso de metáforas para explicar o funcionamento de uma organização também é usado por Wheatley.

“Aqueles que têm usado metáforas musicais, especialmente as metáforas relacionadas ao jazz, para descrever o trabalho conjunto estão sentindo a natureza desse mundo quântico. É um mundo que requer que estejamos presentes juntos e dispostos a improvisar. Concordamos quanto à melodia, ao tempo e à nota, e então começamos a tocar. Ouvimos com cuidado, comunicamo-nos constantemente uns com os outros e, de repente, há música, possibilidades que vão além de qualquer coisa que tenhamos imaginado. A música vem de algum lugar, de um todo unificado a que tivemos acesso entre nós, um relacionamento que transcende a nossa falsa sensação de separação. Quando a música aparece, nada nos resta senão ficar maravilhados e gratos”. (WHEATLEY, 1999:67).

O compartilhamento da aprendizagem ao longo do tempo habilitou os “microcitianos” a desenvolverem uma perspectiva, uma visão comum sólida e integrada, moldando sua identidade no decorrer dos anos, possibilitando ajustar seu know how ao ambiente circundante com grande flexibilidade.

Novamente a teoria nos ajuda:

... as competências essenciais da empresa estão enraizadas principalmente em know

how coletivo, que é tácito porque está associado à prática de trabalho e que é

desenvolvido em processos de aprender-ao-fazer em contextos específicos à empresa ou em contextos específicos de colaboração entre empresas. Como o know how é tácito, está colado com prática de trabalho, e de difícil codificação, e também de difícil imitação por parte de competidores. (OLIVEIRA, 2001:151)

Pode-se concluir que a construção da competência essencial da Microcity, ou seja, seu Modelo de Negócio estruturado em um ciclo temporal e histórico, de forma idiossincrática, foi resultante de compartilhamento de aprendizagens do grupo “microcitiano”142, como o próprio pessoal se intitula. Este modelo foi inventado e reinventado a cada momento, em um processo de inovação, para o qual contribuíram inúmeros fatores, como as pessoas curiosas e criativas, as divergências internas, o clima de liberdade143 e a força de uma comunidade legítima que teceu uma organização, através da conexão entre as pessoas, resolução de problemas e criação de oportunidades de negócios.

142 A desconcentração no relacionamento entre os “microcitianos” não se dá apenas nos momentos de grandes

decisões empresariais, independentemente de alguns resultados não terem correspondido às expectativas. (NACIF, 2001:38)

143 De Geus, importante executivo da Sheel narra o encontro da equipe de planejadores da empresa com Allan

Wilson, zoólogo/bioquímico da Universidade da Califórnia. A demanda era entender a natureza do aprendizado “intergerações” com a comparação de um pequeno pássaro da Inglaterra, o chapim britânico com os tordos vermelhos. Segundo as conclusões, os chapins se colocavam na evolução anatômica acelerada, a partir de três características específicas: 1) capacidade de inovação – ou seja, desenvolvimento de habilidades de exploração de seu meio ambiente de novas formas; 2) propagação social – processo de transmissão de uma habilidade do indivíduo para a comunidade como um todo; 3) mobilidade – os membros da espécie têm capacidade de se congregar em bandos e se movimentar, em vez de permanecer em territórios isolados. “Qualquer organização com várias centenas de pessoas em geral tem pelo menos alguns inovadores. Sempre há pessoas curiosas o bastante para abrir caminho para novas descobertas, como os chapins... (...) Todavia, o fato de dispor de um punhado de inovadores por si só não basta para que o aprendizado institucional ocorra. A organização precisa deixar espaço para eles, de modo que não se sintam tolhidos e tenham tempo de desenvolver suas inovações. (...) Algo que também levanta questões mais profundas de controle e liberdade...” (DE GEUS, 1998:124)

A construção da identidade144 da Microcity foi apoiada por um ambiente alegre, lúdico, informal, acolhedor, não centralizador, sem fechamentos hierárquicos e com uma visão de compartilhamento que privilegiou a democratização do conhecimento, do lucro, fatores que podem ser considerados como externalidades. No momento em que são colocadas em confronto essas duas dimensões, encontram-se antinomias, ou seja, proposições coerentes que chegam a conclusões opostas. No modelo de negócio, core competência, encontram-se atualmente uma série de construções cognitivas, representadas por documentos, contratos, regulamentos, normas que precisam ser registradas, classificadas, codificadas para sua correta aplicação, que convivem com rituais, histórias, símbolos, piadas, emoções, espontaneidade. Daí decorre uma das mais críticas antinomias vividas pela Microcity, a seguir analisada.

Destaca-se ainda o dilema enfrentado entre o registro e o conhecimento espontâneo. As normas e os manuais já existem, estão sendo consolidados, os processos estão sendo redesenhados; há uma nítida intenção de registrar o mais completamente possível os conhecimentos existentes nas práticas, nos fluxos, nos contratos; uma grande enciclopédia está por ser elaborada, a considerar a enorme pasta 145 que conterá, mesmo que provisoriamente, todas as normas para as franquias.

Uma comunidade deve ter um conhecimento compartilhado sobre quais aspectos de seu domínio são codificáveis ou não. O desenvolvimento de sucesso da prática depende de um equilíbrio entre atividades conjuntas, nas quais os membros exploram idéias e a produção de “coisas”, como documentos ou ferramentas. Envolve um jogo contínuo de codificação e interações, do explícito e do tácito. Este é o momento em que a Microcity se encontra: a busca do equilíbrio entre essas duas tendências.

144 “A verdade é que uma empresa comercial, como, aliás, toda organização, não passa de uma idéia. Todas as

instituições não passam de um constructo mental a que somos levados ao buscar um propósito comum; uma personificação conceitual de uma poderosa idéia muito antiga chamada comunidade. Uma organização não é nem mais nem menos do que a força atuante da mente, do coração e do espírito das pessoas, sem a qual tudo não passa de matéria inerte, mineral, química ou vegetal, decaindo sempre para um estado estável, segundo a lei da entropia. (DEE HOCK, 1998: 118-119)

145 Apesar da resistência em registrar todos seus dados na Microcity, uma pasta contendo modelos de contratos

está sendo gradualmente concebida. Poucas páginas estão armazenadas no Manual, que, no entanto, espanta pelo seu gigantesco tamanho.

De modo geral, os indivíduos têm a intenção de compartilhar e de registrar o seu conhecimento. 146 Nas sociedades antigas anteriores à escrita, os saberes práticos, míticos e reais eram relatados oralmente. Com o advento da escrita, o saber é carregado pelos manuscritos; com invenção da imprensa, o saber é carregado pela biblioteca. Atualmente, com o advento do computador, surge um quarto tipo de relação com o conhecimento: o ciberespaço, a região dos mundos virtuais por intermédio dos quais as comunidades descobrem e constróem seus objetos que são denominados Coletivos Inteligentes. (PIERRE LEVY, 1993)

O pólo impresso ainda domina o século XXI, embora já se esteja vivendo, segundo Pierre Levy, no pólo do computador, ou da linguagem hipertextual. As redes, fenômeno que amplia sua força, em que pese a sua potência e o seu crescimento, ainda não chegaram como solução em gestão. O pólo escrito ainda funciona no ambiente empresarial: normas, regras, contratos são feitos no pólo escrito, não no pólo da hipertextualidade. E os registros são feitos, em sua maioria, dentro de uma idéia de apanhar o todo, construir uma enciclopédia147, um saber que deve ser cumulativo e encerrado num grande espartilho de ordem e coerência, segundo expressão de Morin (1, 2005).

Ter-se-ia pelo menos duas alternativas para a conciliação desse aparente dilema: trabalhar na concepção da auto-regulação, que são as comunidades de prática, e ainda trabalhar na linguagem da hipertextualidade.. O hipertexto contém associações em relação às palavras ou conceitos que o compõem. É possível associar a qualquer palavra, um texto, imagens, sons que, por sua vez, podem ser associados a outros textos, imagens, sons, indefinidamente. Os livros contêm estas associações, mas são muito mais limitados para fazê-las do que os

146 Desde os tempos do primeiro machado, o conhecimento trouxe poder para os que se encontravam em posição

de usá-lo. (...) Em 1439, na cidade alemã de Mainz, um ourives chamado Gutenberg que se havia enganado sobre a data de uma feira de peregrinos nas proximidades de Aachem. (...) quando se deu conta de que a feira só iria acontecer um ano depois, Gutenberg revelou aos seus sócios uma oportunidade de investimento alternativa que vinha imaginando havia algum tempo: fabricar letras metálicas que poderia ser recombinadas e recombinadas para imprimir palavras sobre o papel. Esta técnica revolucionária já fora desenvolvida na Coréia do século XIV, mas seu uso foi permitido exclusivamente para a reposição de certos textos religiosos que haviam sido destruídos pelo fogo. Uma vez completo o trabalho de reposição, o maquinário também foi destruído. É irrelevante se Gutenberg recolheu ou não a sua idéia de alguém que viajara a Coréia e ouvira falar do sucedido. O fato é que um tipo móvel iria mudar radicalmente o mundo da documentação no Ocidente, substituindo os textos manuscritos. (BURKE & ORNSTEIN, 1999: 138).

147 O termo enciclopédia não deve ser entendido no sentido cumulativo e alfabesta no qual ele se degradou. Ele

deve ser entendido no sentido originário agkuklios paidea, aprendizagem que transforma o saber em ciclo, efetivamente, trata-se de em-ciclo-pediar,ou seja, aprender a articular pontos de vista separados do saber em um ciclo ativo.

computadores ligados em rede. Os computadores podem associar, com um clique, conceitos em um mesmo texto, entre dois ou mais textos diferentes, independente de sua proximidade física, através da internet.