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Da natureza jurídica da União Europeia: que comunidade política é esta?

No documento Contencioso da Nacionalidade 2. edio (páginas 35-38)

(SOBRE A CIDADANIA EUROPEIA QUE SE MOVE DOS TRIBUNAIS PARA A ARENA POLÍTICA) Alessandra Silveira

3. Da natureza jurídica da União Europeia: que comunidade política é esta?

A União Europeia evolui e comporta-se como se a sua base jurídica (o seu texto fundador) fosse uma Constituição – e não tratados governados pelo direito internacional. Assim, os Tratados constitutivos funcionam como a Constituição da União, na medida em que consagram uma ordem jurídica fundamental que vincula todo o poder público europeu. Por isso é possível afirmar (MADURO, 2006; AVEBELI/KOMÁREK, 2012) que o paradigma da construção europeia é constitucional – e o seu constitucionalismo assenta numa legitimidade plural, entre outras razões porque radica numa pluralidade de fontes constitucionais, o que tem um impacto profundo na natureza do seu modelo constitucional. Como explicava Lucas Pires (2008, p. 142), os desvios deste pluralismo constitucional em relação ao modelo constitucional do Estado democrático moderno são, a vários títulos, significativos. Trata-se mesmo de um outro modelo ou de um não modelo, de resto muito mais aberto a evoluções não predeterminadas. De qualquer forma, esta Constituição é de outro tipo (PIRES, 2008, p. 156). Se ela fosse reproduzida do modelo clássico nacional obrigaria, mais cedo ou mais tarde, à hétero ou à auto-ruptura das constituições nacionais, isto é, a um momento constituinte de separação, com estalido próprio e audível, de inimizade e conflito (PIRES, 2008, p. 157). Por isso este Autor concluía que a Constituição da União Europeia tem mais de uma «construção» do que de uma «ordem» e mais de uma «função» que de uma «forma». É uma Constituição não apenas «aberta», mas da sociedade aberta e do pluralismo.

Neste contexto, a competência das competências (que define, à luz da modernidade constitucional, a soberania) parece ancorar-se em vários planos constitucionais (CANOTILHO/MOREIRA, 2007, p. 244). A ideia de um exercício concorrencial de poderes constituintes (pluralismo constitucional) entre a União Europeia e os Estados-nação ainda encontra resistências porque coloca em causa a conceção tradicional de soberania – ou a visão de constitucionalismo que relaciona soberania, poder constituinte e Constituição e que os identifica com o Estado. Trata-se de uma conceção herdeira de Carl Schmitt que associa a soberania com o poder de determinar a exceção – ou seja, a posse desse poder determinaria onde reside a soberania do sistema. Todavia, é muito difícil aceitar a inalterabilidade do estatuto de Estado soberano diante do alargamento das competências da União Europeia em domínios tradicionais da identidade política dos Estados – e de grande sensibilidade para os seus interesses estratégicos –, relativamente aos quais, desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa,19 resulta aplicável a regra da maioria qualificada em detrimento da unanimidade.

Ou seja, mesmo que o Estado-Membro não tenha concorrido para a adoção de uma medida tem de a acatar e zelar pela sua correta aplicação.

19 O Tratado de Lisboa entrou em vigor em 1 de dezembro de 2009 e alterou o Tratado da União Europeia (TUE) e o Tratado da (antiga) Comunidade Europeia [que passou a chamar-se, depois de revisto, Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE)].

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Neste cenário, a União Europeia pode constituir a emergência da primeira fórmula política verdadeiramente pós-moderna (PIRES, 1997, p. 81). Daí que, tendo em conta as suas particularidades, ainda se lhe designe como um «objeto político não identificado (OPNI)», na intrigante expressão de Jacques Delors. Como explicava Lucas Pires, os modelos de autoridade hierárquica e de normação piramidal cedem lugar a estruturas e processos de interação, coordenação e cooperação. A própria identificação da União Europeia como um sistema federativo ou federação reporta-se a um modo, mais do que a uma especificação morfologicamente pura.20 De resto, como explicava Carl Friedrich e a sua teoria do federalising process, o federalismo não deve ser considerado como um modelo estático ou um termo fixo e preciso de divisão de poderes entre as autoridades central e periféricas. Há de ser entendido como um processo de federalização de uma comunidade política. Assim, o «supranacionalismo normativo» que está na base da construção europeia transcende o modelo do Estado (KASTORYANO, 2004, p. 25), inclusivamente do Estado federal, mas valendo-se da principiologia federativa.

O sistema de governação da União Europeia é, pois, dito multinível porque os atores políticos envolvidos nos processos decisórios não são apenas Estados-Membros e instituições europeias (como acontece nos Estados federais). A governação política europeia expressa-se através de uma rede de atores transnacionais e comités públicos e privados especializados na regulação de políticas complexas, o que constitui, em linguagem politológica, um sistema decisório policêntrico, fragmentado e interdependente, caracterizado pela ausência de hierarquia. A União Europeia não constitui um sistema de governo em sentido estrito, e sim aquilo que os politólogos entendem por um «complexo emaranhado de redes de governação multinível». A metáfora das redes bem representa o esquema decisório europeu porque a ausência de liderança que o caracteriza demanda a combinação de procedimentos formais e informais de mediação entre representantes públicos, por um lado, e entre estes e os representantes de interesses privados, por outro. Assim, ao sistema parlamentar se sobrepõe um sistema de auto-representação de interesses setoriais. Em termos jurídico-políticos o que está a ser forjado é, portanto, algo bastante mais sofisticado que o modelo organizativo do Estado federal.

Enganam-se, portanto, os que julgam que a federalização em curso na Europa depende de uma Constituição federal formalmente concebida enquanto tal e da renúncia expressa ao estatuto de Estado soberano: a evolução do sistema federativo/multinível da União Europeia nunca se fez nem certamente vai fazer-se por aí. A federalização far-se-á sempre mais através da organização de um espaço de civilização do que na perseguição de um definido projeto de convergência normativa, esperançado na geração de um «outrem» estadual. De resto, já em meados do séc. XX, o politólogo Carl Friedrich acusava os juristas de terem estreitado o foco do federalismo: reduziram-no ao Estado federal e desbarataram um tempo precioso do séc. XIX nas disputas doutrinárias acerca da dicotomia Confederação de Estados versus Estado federal, sempre a partir do conceito bodiniano de soberania. Ou seja, os juristas teriam posto

20 A «federalização» do sistema europeu vem sendo feita há 60 anos, desde que a declaração Schuman de 9 de maio de 1950 iniciou a construção de uma União de base federativa com específica referência à expressão «federação europeia». O termo foi amplamente empregue por Francisco Lucas Pires, designadamente in A revolução europeia, cit., p. 57, onde se lê: «É nesta lógica que falo de federalização, sem Estado federal».

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todo o seu empenho teórico numa infrutífera contraposição segundo a qual o Estado federal seria um autêntico Estado soberano em que os entes federados seriam apenas autónomos – enquanto a Confederação corresponderia a uma organização de Estados que mantêm a sua soberania. O equívoco dos juristas consistiria, pois, em considerar o conceito de Estado soberano como ponto nevrálgico de toda a problemática relativa ao federalismo. Assim, acabaram por percecionar o federalismo apenas enquanto Estado (e não enquanto processo), fixando sua atenção unicamente no fator estrutural.

Ora, os fenómenos do federalismo não devem ser perspetivados como estruturas estáticas necessariamente coincidentes com o Estado, mas como momentos de um processo que se desenvolve com resultados alternados, segundo prevaleçam tendências centrífugas ou centrípetas. Há uma continuidade conceitual das várias formas através das quais o federalismo pode manifestar-se sem perder as suas características essenciais, o que põe em causa a concepção estadualista do federalismo tão cara aos juristas. É, pois, escusado esperar pelo big bang federal na Europa. Em vez disso, avança-se paulatinamente no sentido da unidade jurídico-política do sistema, através da subordinação de cada ordenamento parcial (União e Estados-Membros) ao supra-ordenamento constitucional que resulta dos Tratados constitutivos.21 Neste sentido, ordem jurídica europeia e ordem jurídica dos Estados- Membros seriam autónomas mas integrantes do mesmo sistema jurídico – que a ambas vincula em termos de juridicidade e jusfundamentalidade e as obriga, por força da lealdade que as une (artigo 4.º TUE), à acomodação e integração das respetivas reivindicações de autoridade (MADURO, 2012, p. 452-453).

Por isso importa captar a fenomenologia da articulação, interação, conexão íntima entre constituições e ordenamentos jurídicos no seio da União. Os seus atores e políticas são frequentemente partilhados, na medida em que a União não mantém um aparelho administrativo e judicial difuso nos distintos Estados-Membros, sendo o seu direito aplicado por administrações e tribunais nacionais. De resto, é nesta particularidade onde reside o código genético da integração, sendo porventura a União Europeia o único sistema jurídico onde o diálogo jurisdicional produz efeitos erga omnes por via do mecanismo do reenvio prejudicial (artigo 267.º do TFUE), o chamado «diálogo de juiz para juiz».22 Isto corresponde a

um valor constitucional acrescentado na medida em que permite corrigir certos problemas de funcionamento dos processos políticos nacionais e aporta um novo espaço de ação política e reconstrução de uma cultura constitucional, além de oferecer uma plataforma de entendimento entre perspetivas que, no plano nacional, são ainda demasiado distintas ou irreconciliáveis entre si (PIRES, 1998, p. 102). Assim, não só a comunidade política europeia como o seu direito tem algo de pós-moderno. A criação e efetividade do direito da União dependem de um processo de negociação contínuo – um típico direito em ação.

Assim, como explica Poiares Maduro (2006, p. 344), o constitucionalismo resultante da integração europeia não constitui o produto de um momento constituinte, mas de um 21 Sobre o processo de progressiva “constitucionalização” dos tratados, operada pela jurisprudência do TJUE, cfr. J. L. da Cruz Vilaça/Nuno Piçarra, “Are there substantive limits to the amenmdments of the treaties?”, in José Luís da Cruz Vilaça, EU Law and Integration - Twenty Years of Judicial Application of EU Law, Hart Publishing, 2014.

22 Para a compreensão das distintas tipologias de comunicação judicial que produzem um efeito de «fertilização cruzada» (ou «referências cruzadas») cfr. Anne-Marie Slaughter, “A tipology of transjudicial communication”, in Richmond Law Review, vol. 29, 1994-1995.

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paulatino desenvolvimento judicial e político, geralmente construído por referência a fontes constitucionais nacionais. Foi o resultado de desenvolvimentos intergovernamentais, a partir das revisões dos tratados, mas também da sua interpretação constitucional levada a efeito pelo TJUE – sempre em diálogo com uma comunidade de atores jurídicos e políticos de caráter nacional e supranacional (sobretudo tribunais, litigantes, e Comissão Europeia), razão pela qual o Autor o reconhece como um constitucionalismo progressivo e de baixo para cima (bottom-up). De qualquer forma, o constitucionalismo europeu desde sempre consubstanciou um conjunto de instrumentos jurídicos voltados à resolução de conflitos de poder entre União e Estados-Membros e à limitação do exercício de tais poderes – mas não pretendia ser a expressão de uma comunidade política europeia. Vai daí que o chamado «défice democrático» seja o problema constitucional mais acentuado nos debates da União Europeia, porque a confronta com o desafio da articulação entre constitucionalismo e a questão da União política (MADURO, 2006, p. 348).23

4. Da relevância da cidadania de direitos: que razão pública para a comunidade política

No documento Contencioso da Nacionalidade 2. edio (páginas 35-38)

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