• Nenhum resultado encontrado

Da relevância da cidadania de direitos: que razão pública para a comunidade política europeia?

No documento Contencioso da Nacionalidade 2. edio (páginas 38-45)

(SOBRE A CIDADANIA EUROPEIA QUE SE MOVE DOS TRIBUNAIS PARA A ARENA POLÍTICA) Alessandra Silveira

4. Da relevância da cidadania de direitos: que razão pública para a comunidade política europeia?

Quando se fala em défice democrático das instituições europeias – apesar de a União Europeia ser claramente uma democracia substantiva/material, com tribunais que garantem os direitos e as liberdades dos indivíduos, no âmbito de uma União de direito orientada por padrões de jusfundamentalidade –, aquilo que se quer dizer é que a União Europeia não é uma democracia formal/processual porque não há uma circunscrição eleitoral europeia onde a preferência política dos eleitores releve enquanto tal (RANGEL, 2009). Ou seja, está-se a reclamar a ausência de um espaço público através do qual o cidadão europeu possa intervir nos processos decisórios que afetam o seu quotidiano. Temos, entretanto, dúvidas de que se trata de uma reivindicação exclusivamente europeia, diante dos processos de globalização e desterritorialização do poder em curso (ZABREBELSKY, 1992). E temos ainda mais dúvidas quanto à adoção de soluções que impliquem um recuo organizativo a partir da reprodução, no espaço da União, das fórmulas e mecanismos já testados a nível nacional – que estão em larga medida esgotadas e não conseguem satisfazer as expetativas dos cidadãos.

A forma mais segura de tornar as decisões coletivas aceitáveis aos olhos do cidadão é permitir que o eleitor decida livremente sobre quem faz escolhas em seu nome. Em última análise, é isto que permite que os cidadãos se revejam nas decisões adotadas e por elas se sintam minimamente responsáveis. As medidas adotadas pelo poder público tornam-se impopulares quando uma larga parcela da população é afetada por decisões em que (aparentemente) não interveio ou não influenciou – e tanto mais o será quando as decisões tomadas num Estado- Membro impactam necessariamente o que acontece noutro Estado-Membro, ou quando as decisões de hoje repercutem nas jovens e futuras gerações. É esta sensação de ausência de participação e representatividade que alimenta a narrativa do défice democrático europeu – em larga medida falaciosa, pois a União Europeia não é feita por extraterrestres, são os nossos

23 Sobre o tema da União política cfr. os anais da conferência anual Jean Monnet 2013, The political implications of

European economic integration – towards a political Union, European Comission, Directorate-General for Education and Culture, Publications Office of the European Union, Luxembourg, 2014.

38

representantes que lá estão – no Parlamento, no Conselho, na Comissão. De resto, tal défice democrático pode ser inclusivamente vantajoso quanto à qualidade das decisões adotadas, pois a justiça intergeracional pode ser mais facilmente atingida quando decisões sobre emissões de carbono ou pensões de reforma (por exemplo) são adotadas por instituições imunes às pressões eleitorais (PARIJS, 2014, p. 61). A União Europeia foi criada (também) para lidar com tais externalidades intergeracionais e transfronteiriças. Todavia, como fazer com que os decisores políticos europeus sejam mais permeáveis aos apelos das populações afetadas a fim de que estas se sintam mais comprometidas com a prossecução da vontade coletiva então definida?

Numa obra intitulada “Um ensaio sobre a Constituição da Europa”, Jürgen Habermas (2012, p. 74) explica que no início da integração europeia a força civilizadora desta inovação manifestou-se sobretudo na pacificação de um continente ensanguentado. Mas nos dias que correm, tal força civilizadora manifesta-se na luta pela construção de capacidades de ação política diante dos constrangimentos sistémicos de uma sociedade globalizada. O acolhimento da cidadania europeia, a referência expressa a um interesse geral europeu, assim como o reconhecimento de personalidade jurídica própria à União Europeia a partir do Tratado de Lisboa de 2009, tudo isso confirmaria, segundo Habermas, a ideia desenvolvida pelo TJUE de que os Tratados constitutivos correspondem à base jurídica de uma comunidade política europeia (EU polity).

Neste sentido, Habermas distingue três elementos basilares que têm de encontrar expressão em qualquer comunidade política democrática: i) a constituição de uma comunidade de pessoas jurídicas, numa associação de cidadãos livres e iguais em direitos; ii) a repartição de competências no âmbito de uma organização que garanta, através de meios administrativos, a capacidade de ação coletiva dos cidadãos associados; iii) um horizonte de vida partilhado, no qual se pode formar, comunicativamente, uma vontade coletiva. As duas primeiras componentes dizem respeito aos direitos fundamentais (ponto 2. deste texto) e à organização jurídico-constitucional do poder (ponto 3. deste texto), enquanto a terceira corresponderia a um contexto político-cultural necessário, em termos funcionais, para a formação de opinião e vontade democráticas e a legitimação do exercício do poder.

É este contexto político-cultural que está a ser forjado atualmente na Europa – sobretudo porque as soluções de economic governance adotadas para fazer frente à crise originariamente financeira têm fortes elementos de ação política. Alguém poderia imaginar, há alguns anos, que os orçamentos democraticamente aprovados pelos parlamentos nacionais dos Estados-Membros teriam de ser previamente submetidos às instituições europeias para fins de apreciação e acomodação à vontade igualmente legítima dos restantes democracias europeias? Tem sido assim desde a introdução do chamado Semestre Europeu. Nesta medida, o aprofundamento da integração económica por conta da crise financeira conduz à convergência política na União – ou seja, ao desenvolvimento de uma União política – e questiona a relação entre a política nacional e a política europeia, provocando uma alteração na balança de poderes federativos na União. Tal problemática deve ser equacionada em termos jurídico-políticos numa nova perspetiva. E demanda um esforço teorético no sentido de delinear um caminho para tal União política, pois se não for o caminho que os europeus

conseguirem consensualizar, será aquele que a força bruta lhes impuser – como ensinava Jean Monnet –, porventura hoje travestida nas «matrizes comunicativas anónimas» de que fala Günter Teubner, reconhecidas por mercados financeiros, comunicação social, movimentos religiosos, risco, etc.

Tudo se torna mais difícil porque os cidadãos europeus (do norte e do sul, das economias mais e menos robustecidas, etc.) anseiam por coisas distintas e por vezes contraditórias entre si. Como então criar um espaço político que os reconcilie e promova compromissos entre visões antagónicas para a Europa? E que permita a escolha entre distintas alternativas políticas para a União, em detrimento da alternativa preguiçosa entre ser contra ou a favor da integração (Brexit)? Não é certamente empresa fácil. Mas a solução está amplamente estudada nas obras de Ulrich Beck e Jürgen Habermas. E ela exige uma prática diferente i) dos governos dos Estados-Membros (que se escudam no discurso do défice democrático europeu para se desresponsabilizarem dos destinos da União Europeia), ii) dos meios de comunicação social (que podem contribuir decisivamente para a abertura recíproca das opiniões públicas nacionais, relatando as posições/controvérsias políticas que os temas europeus provocam noutros Estados-Membros), e iii) dos partidos políticos nacionais (que, no intuito de ganhar eleições, semearam os ventos da segregação entre a política nacional e a política europeia, e agora colhem a tempestade do populismo e da xenofobia).

Com John Rawls (1997, pp. 68-69) aprendemos que os conflitos sobre a natureza da tolerância e da cooperação têm persistido na tradição democrática – e podemos por isso supor que correspondem a conflitos profundos. Ora, quanto mais profundo for o conflito, maior será o nível de abstração a que devemos aceder para obter uma perspetiva clara e descomprometida das suas raízes. Para ligarmos esses conflitos às coisas conhecidas e básicas, devemos olhar para as ideias fundamentais da cultura política pública e procurar descobrir como e por que motivos os cidadãos e povos concebem a sua sociedade como um sistema equitativo de cooperação ao longo do tempo. Segundo este Autor seriam três as condições aparentemente suficientes para que a sociedade seja um sistema equitativo e estável de cooperação entre cidadãos livres e iguais que estão profundamente divididos pelas doutrinas razoáveis que afirmam: i) que a estrutura da sociedade seja regulada por uma conceção política de justiça; ii) que essa conceção política seja o foco de um consenso de sobreposição de doutrinas abrangentes razoáveis; iii) que quando se arbitram os elementos constitucionais essenciais e as questões de justiça básica, a discussão pública seja conduzida nos termos da conceção política de justiça.

Assim, em uma sociedade democrática a razão pública será a razão dos cidadãos livres e iguais que, como corpo coletivo, exercem poder político uns sobre os outros, por intermédio da produção legislativa corrente e do melhoramento da sua Constituição. O conteúdo da razão pública é fornecido pela conceção política de justiça. O sentido ideal da razão pública seria, portanto, duplo: por um lado, que os cidadãos regulem e conduzam os seus debates fundamentais nos termos daquilo que entendam como uma conceção política de justiça minimamente partilhada por todos; por outro lado, que cada cidadão esteja preparado para defender a sua conceção, ouvir as opiniões alheias, e aceitar os ajustamentos ou alterações razoáveis à sua própria perspetiva. Diante do exposto – e no que diz respeito à comunidade

política europeia –, a parametrização do agir político de uma União de direito materialmente considerada seria fornecida pelo robustecimento de uma emergente cidadania de direitos (enquanto «direito a ter direitos», no sentido de Hannah Arendt). A União de direito concebida nos termos de um controlo formal de juridicidade já não bastaria aos europeus, pois a emergência de uma cidadania de direitos implica a sua densificação material. O momento é, pois, de releitura e relançamento dos fundamentos, das estruturas e da operacionalidade da ideia de União de direito no sentido de uma União política. É precisamente a isto que estamos a assistir atualmente na Europa: uma cesura, um interregno, a simultaneidade do colapso e do despontar – o que demonstra que a discrepância entre as expetativas e a realidade é sempre motor para a mobilização social (BECK, 2013, p. 27).

Referências bibliográficas

− AVEBELI Matej/KOMÁREK, Jan (eds.). (2012), Constitutional pluralism in the European Union and beyond. Oxford, Hart Publishing.

− BECK, Ulrich. (2013), A Europa alemã. De Maquiavel a “Merkievel”: estratégias de poder na crise do euro. Lisboa, Edições 70.

− CANOTILHO, J. J. Gomes/MOREIRA, Vital. (2007), Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I. Coimbra, Coimbra Editora.

− BARNARD, Catherine. (2007), The substantive law of the EU. The four freedoms. Oxford, Oxford University Press.

− CHALMERS, Damian/HADJIEMMANUIL, Christos/MONTI, Giorgio/TOMKINS, Adam. (2006), European Union Law. Text and materials. Cambridge, Cambridge University Press.

− FRIEDRICH, Carl. (1950), Constitutional government and democracy: theory and practice in Europe and America. Boston, Ginn.

− HABERMAS, Jürgen. (2012), Um ensaio sobre a Constituição da Europa. Lisboa, Edições 70. − KASTORYANO, Riva. (2004), “Introdução. ‘Multiculturalismo’: uma identidade para a

Europa?”. Em: KASTORYANO, Riva (coord.). Que identidade para a Europa? Lisboa, Ulisseia, pp.13-38.

− MADURO, Miguel Poiares. (2006), A constituição plural. Constitucionalismo e União Europeia. Cascais, Principia.

− MADURO, Miguel Poiares. (2012), “Constitutional pluralism as the theory of European constitutionalism”. In: CORREIA, Fernando Alves/MACHADO, Jónatas/LOUREIRO, João Carlos (coords.). Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho,

vol. III, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra, Coimbra Editora, pp. 449-471.

− MONTERO, Carlos Closa. (2010), “Martínez Sala and Baumbast: an institutionalist analysis”. In: MADURO, Miguel Poiares Maduro/AZOULAI, Loic (eds.). The Past and Future of EU Law. Oxford and Portland, Oregon: Hart Publishing, pp. 394-401.

− PARIJS, Philippe Van. (2014), “Demos-cracy for the European Union: why and how”. In: Studia Diplomatica – The Brussels Journal of International Relations, special issue “Various shades of federalism: which responses to the rise of populism and euroscepticism?”, vol. LXVII, No.4, pp. 57-73.

− PIRES, Francisco Lucas. (2008), .A revolução europeia por Francisco Lucas Pires – antologia de textos. Lisboa, Publicação do Gabinete em Portugal do Parlamento Europeu.

− POPTCHEVA, Eva-Maria. (2014), Multilevel citizenship. The right to consular protection of EU citizens abroad. Bruxelles/Bern/Frankfurt am Main/New York/Oxford/Wien: Peter Lang.

− NIC SHUIBHNE, Niamh/SHAW, Jo. (2014), “General report”. In: NEERGAARD, Ulla/JACQUESON, Catherine/HOLST-CHISTENSEN, Nina (eds.), Union Citizenship: development, impact and challenges. The XXVI FIDE Congress in Copenhagen 2014, Congress Publications, vol. 2. Copenhagen, DJOF Publishing, pp. 65- 226.

− RANGEL, Paulo. (2009), O estado do Estado. Ensaios de política constitucional sobre justiça e democracia. Alfragide, Dom Quixote.

− RAWLS, John. (1997), O liberalismo político. Lisboa, Editorial Presença.

− RODRIGUES, J. Cunha. (2012), “Sobre a abundância de direitos em tempo de crise”. In: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano 5, n.º 3, pp. 13-24.

− RODRIGUES, J. Cunha. (2013), “Comentário ao artigo 45.º da CDFUE”. In: SILVEIRA, Alessandra/CANOTILHO, Mariana (coord.), Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Comentada. Coimbra, Almedina. pp. 519-529.

− SHARPSTON, Eleanor. (2012), “Citizenship and fundamental rights – Pandora’s box or a natural step towards maturity?” In: CORDONNEL, Parcal/ROSAS, Allan/ WAHL, Nils (eds.). Constitutionalising the EU judicial system: essays in honour of Pernilla Lindh. Oxford and Portland, Oregon, Hart Publishing.

− VERHOEVEN, Amarillys. (2002), The European Union in search of a democratic and constitutional theory. The Hague/London/New York, Kluwer Law International.

− WEATHERILL, Stephen. (2007), Cases and materials on EU Law. Oxford, Oxford University Press.

− WEILER, Joseph. (1999), The Constitution of Europe. Cambridge, Cambridge University Press.

− ZABREBELSKY, Gustavo. (1992), Il diritto mite. Torino, Einaudi.

No documento Contencioso da Nacionalidade 2. edio (páginas 38-45)

Documentos relacionados