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Desencontros com o princípio da nacionalidade efectiva

No documento Contencioso da Nacionalidade 2. edio (páginas 95-98)

PRINCÍPIOS DE DIREITO DA NACIONALIDADE – SUA CONSAGRAÇÃO NO ORDENAMENTO PORTUGUÊS

2. Princípio da Nacionalidade Efectiva

2.4. Desencontros com o princípio da nacionalidade efectiva

Algumas soluções legais parecem afastar-se do princípio da nacionalidade efectiva.

RUI MOURA RAMOS levanta esses receios em relação à fixação, a priori e em abstracto, de situações em que, independentemente de apreciação por parte da Administração, se concede um direito à naturalização52. Claro que em casos marginais isso pode levar a um desvio ao

princípio da nacionalidade efectiva, uma vez que se perde a possibilidade de se aferir em

50 Esta regra é justificada por dois princípios constitucionais: o da protecção da unidade familiar (art. 36º e 67º) e o da proibição de expulsão de cidadãos nacionais (art. 33º, n.º1). A actual Lei de Imigração proíbe a expulsão de imigrantes que tenham efectivamente a cargo filhos menores de nacionalidade portuguesa residentes em Portugal (art. 135º), e prevê a sua regularização (art. 122º, nº.1, al. l)). Sobre este ponto, v. ANA RITA GIL, “Um caso de Europeização do Direito Constitucional Português – A afirmação de um direito fundamental ao reagrupamento familiar”, Revista de Direito Público, ano I, 2009, n.º2, pp. 9-61 e, também da nossa autoria, Imigração e Direitos Humanos, Petrony, 2017, p. 360 e ss.

51 A Supreme Court dos EUA tem falado de um “abuso de direito” do ius soli quando se pretende garantir com ele a estadia no território dos pais de cidadãos americanos. Sobre esta questão, v. GERALD NEUMAN, Strangers to the Constitution, Princeton University Press, Princeton, 1996, p. 165 e ss.

52 Op. cit., p. 229.

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concreto da existência de ligação à comunidade portuguesa. Porém, julgamos que as situações em que o titular do direito à naturalização não possua ligação suficiente com o território serão marginais, já que as condições previstas na lei são verdadeiros indícios de ligação à comunidade. Para além disso, a acontecerem, serão uma limitação do princípio da nacionalidade efectiva em nome de outro princípio que se estudará mais adiante e que vincula também o legislador – o princípio da cidadania enquanto direito fundamental.

Outras soluções levantam mais dúvidas no que toca ao respeito pelo princípio da nacionalidade efectiva. Estamos a pensar nos vários casos em que a lei prevê um direito de naturalização dispensando residência no território. Alguns autores defendem que a residência prolongada no território é condição prévia para uma naturalização ser conforme ao direito internacional53. A própria lei considera, em algumas normas, que a residência é o critério por

excelência para se aferir da nacionalidade efectiva do indivíduo, como é o caso art. 28º, sobre múltipla nacionalidade. Não se quer com isto dizer que a residência seja o único indício de uma ligação efectiva com o território – desde logo, também os descendentes de primeiro grau de portugueses residentes no estrangeiro têm a maior parte das vezes fortes ligações com Portugal. Não obstante, outros casos em que se concede naturalização com dispensa de residência no território devem ser analisados com cuidado. Esse era o caso, até à Lei Orgânica n.º9/2015, de 29 de Julho, dos descendentes de portugueses do segundo grau da linha recta que haviam nascido no estrangeiro. Estes, nos termos do art. 6.º, n.º4, possuíam um direito à naturalização, mesmo que nunca tivessem residido em território português. A lei considerou o facto de possuírem avós com a nacionalidade portuguesa era um indício suficiente de ligação efectiva com a comunidade portuguesa54.

A solução merecia reservas. Se é verdade que os filhos dos emigrantes mantêm facilmente laços com o país de origem dos pais, as gerações subsequentes por vezes já não possuem uma ligação efectiva com o país de origem dos avós55. Esta solução era ainda mais problemática

quando os emigrantes possuem direitos de participação democrática em medida semelhante aos nacionais56, pelo que indivíduos sem ligação ao território poderão influenciar decisões

legislativas, que em último termo não os afectarão57. Mais, esta solução criava cidadãos da UE

residentes fora do espaço europeu, que possuiriam vastos direitos de imigração no que toca aos demais Estados-membros58-59.

53 I

AN BROWNLIE, op. cit., p. 416.

54 Nos trabalhos preparatórios invocou-se que esta solução correspondia ao desejo de vários indivíduos nas comunidades emigrantes, que não podiam aceder à nacionalidade portuguesa porque os pais nunca haviam requerido essa nacionalidade para si próprios. Invocou-se ainda o “interesse nacional”, já que muitos dos potenciais requerentes ocupavam posições relevantes nas sociedades de acolhimento, pelo que esta solução poderia proporcionar a imagem de um “Portugal moderno”. Cf. Debates Parlamentares, Diário da Assembleia da República, n.º 54, 2005, p. 2479.

55 Também R

UI MOURA RAMOS manifesta algumas reservas no que toca ao carácter vinculado desta possibilidade de

naturalização. Cf. op. cit., p. 231.

56 Sobre os direitos políticos dos portugueses residentes no estrangeiro, v. J

ORGE MIRANDA, op. cit., p. 134 ss.

57 NUNO PIÇARRA eANA RITA GIL, Country Report: Portugal, EUDO Citizenship Observatory, Florença, 2009, p. 27.

58 B

AUBÖCK et al., op. cit., p. 31. Os autores sugeriam aos Estados-membros que limitassem a aplicação do ius

sanguinis à primeira geração nascida no estrangeiro.

59 Para além de tudo isso, é difícil compreender porque é que a lei requer que o interessado tenha de nascer no estrangeiro para poder beneficiar desta forma de aquisição da nacionalidade. O interessado não poderá socorrer-se da mesma se tiver nascido em Portugal, mesmo que tenha avós com a nacionalidade portuguesa. Trata-se de uma

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A Lei Orgânica n.º 9/2015, de 29 de Junho, veio revogar esta disposição, e criar outra possibilidade de aquisição da nacionalidade portuguesa para os netos de portugueses. Ela veio permitir que as estas pessoas adquiram a nacionalidade portuguesa, mas de origem, se declararem que querem ser portugueses e inscreverem o nascimento no registo civil português. Não obstante, como resulta da redacção do art. 1.º, n.º1, d), essa possibilidade é acompanhada de alguns requisitos que visam, precisamente, salvaguardar o princípio da nacionalidade efectiva. Assim, menciona-se expressamente que a aquisição da nacionalidade está dependente da existência de “laços de efetiva ligação à comunidade nacional”. Por seu turno, o n.º3 dispõe que a verificação da existência desses laços “ implica o reconhecimento, pelo Governo, da relevância de tais laços, nomeadamente pelo conhecimento suficiente da língua portuguesa e pela existência de contactos regulares com o território português”. O Decreto-Lei n.º 71/2017 veio especificar os casos em que tal pode suceder, dando-se relevância a residência legal no território português, à inscrição na administração tributária e nos serviços de saúde, frequência escolar em estabelecimento de ensino no território nacional ou conhecimento da língua portuguesa.

A lei reconhece ainda um direito à naturalização aos antigos cidadãos portugueses que nunca adquiriram outra nacionalidade, com dispensa dos requisitos relativos ao período de residência e ao conhecimento da língua portuguesa (art. 6.º, n.º 3). Trata-se de uma forma de reaquisição da nacionalidade, o que justifica que a naturalização seja facilitada, pois o facto de o interessado já ter sido português é um indício bastante de ligação efectiva à comunidade. Para beneficiar deste direito, o indivíduo não deve ter adquirido outra nacionalidade após ter perdido a portuguesa, caso contrário resta-lhe a possibilidade de o Governo lhe garantir a naturalização discricionariamente.

Prevê-se ainda no art. 6.º, n.º 6 a possibilidade de naturalização discricionária para certas categorias de pessoas: os estrangeiros que possuíam a nacionalidade portuguesa e que adquiriram outra nacionalidade, os descendentes de cidadãos portugueses e dos membros das comunidades de origem portuguesa, bem como aqueles que prestaram ou irão prestar serviços notáveis ao Estado português ou à comunidade portuguesa. As primeiras hipóteses fundam-se na ideia de afinidade com o país, e têm sido questionadas por alguns autores, que consideram fundamentarem-se em concepções étnicas ultrapassadas da nacionalidade60. A

naturalização discricionária por serviços à comunidade portuguesa ancora-se na ideia de que qualquer Estado soberano tem a prerrogativa de conferir a sua nacionalidade a determinados indivíduos que se encontrem em situações particulares61. Também nestas hipóteses os

interessados estão dispensados de preencher os requisitos relativos ao período de residência e ao conhecimento da língua portuguesa. Não obstante, não possuem um direito a adquirir a nacionalidade portuguesa, mesmo que cumpram os demais requisitos que lhes continuam a ser exigidos62, já que a naturalização depende de decisão discricionária do Ministro. No

exercício dessa competência discricionária, ele deve guiar-se pelo princípio da nacionalidade solução paradoxal, já que o critério do ius soli deveria favorecer a aquisição da nacionalidade portuguesa. No mesmo sentido, RUI MOURA RAMOS, op. cit., p. 210.

60 BAUBÖCK et al.,op. cit., p. 34. 61 J

ORGE PEREIRA DA SILVA,op. cit., p. 127.

62 Maioridade e inexistência de condenações pela prática de crime, punível pela lei portuguesa com pena de prisão de máximo ou igual a três anos.

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efectiva, devendo ponderar se os indivíduos em causa têm os seus interesses ligados ao bem comum da comunidade política portuguesa63.

Por fim, a Lei Orgânica n.º 1/2013, de 29 de Julho veio criar mais uma categoria de naturalização discricionária, prevista no n.º7 do artigo 6.º. De acordo com essa norma, o Governo pode conceder a nacionalidade por naturalização, com dispensa dos requisitos relativos a residência no território e ao conhecimento da língua, aos descendentes de judeus sefarditas portugueses, através da demonstração da tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa. As exigências de “ligação a Portugal” não nos parecem suficientes para um pleno respeito pelo princípio da nacionalidade efectiva, já que dizem respeito a indícios como “apelidos, idioma familiar, descendência direta ou colateral”. A lei não define o que se deve entender por “idioma familiar” e, por outro lado, a descendência e apelidos já eram condições para a pessoa se integrar na própria fattispecie legal, pelo que não se pode considerar corresponderem a requisitos adicionais que demonstrem uma ligação efectiva à comunidade portuguesa.

No documento Contencioso da Nacionalidade 2. edio (páginas 95-98)

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