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Considerando os elevados índices de reprovação e evasão dos cursos, o baixo rendimento dos estudantes na disciplina Matemática em todos os níveis de ensino no Brasil, como apontam diversos estudos, torna-se relevante analisar como os estudantes de Licenciatura em Matemática percebem a prática pedagógica, em particular, a prática avaliativa por eles vivenciada nas disciplinas de conteúdo específico. Trata-se de uma questão importante no processo de formação docente porque, como afirma Fiorentini (2005, p. 111),

[...] as disciplinas específicas influenciam mais a prática do futuro

professor do que as didático-pedagógicas, sobretudo porque as primeiras

geralmente reforçam procedimentos internalizados durante o processo de escolarização e as prescrições e recomendações das segundas “tem pouca influência em suas práticas escolares posteriores” (Grifo nosso).

A forte influência das disciplinas específicas sobre a visão dos futuros professores é fenômeno que tem interpelado professores formadores, particularmente de disciplinas de conteúdo pedagógico, como esta pesquisadora, que, entre outros fatores, motivada pela busca de respostas para essa problemática, trouxe essa frustração oculta na temática avaliação da aprendizagem para ser desvelada na pesquisa do doutorado.

As observações de aula e, especialmente, as reflexões realizadas durante a roda de conversa revelaram que, de fato, as disciplinas específicas exercem forte influência sobre os licenciandos. Influências essas que as disciplinas pedagógicas não têm conseguido justapor, como afirma Fiorentini (2005) e revela a fala de um dos sujeitos da pesquisa, Larimar: “Não desmerecendo, igual eu vejo muita gente desmerecendo, mas o que eu fazia, uma da Faculdade de Educação, uma aqui mediana e uma muito difícil [...].” Não tendo a intenção, mas já desmerecendo, o depoimento de Larimar revela que as disciplinas de conteúdo pedagógico são consideradas fáceis e as de conteúdo específico, difíceis, e, portanto, exigem do professor um rigor maior, como defende Citrino, também colaborador do estudo: “Então, essas matérias, elas têm que ser feitas com um rigor maior, sem dúvida nenhuma. E é por isso

que elas são vistas como mais difíceis, porque elas são de fato mais difíceis mesmo”. Defendendo o mesmo ponto de vista, Esfênio afirma: “A gente reclama demais que, tipo, ah! Fundamentos de Análise é muito difícil! Mas essa matéria, a matéria é Matemática, não é matéria de didática. Tem que ter uma diferenciação, gente!”

Por que as disciplinas de conteúdo específico têm maior poder de persuasão sobre a visão do futuro professor do que as de conteúdo pedagógico? Para Fiorentini (2005), as disciplinas específicas geralmente reforçam procedimentos internalizados durante o processo de escolarização - do Ensino Fundamental ao Superior. O autor explica, apoiado em Tardif (2002), que as experiências vividas no processo de ensinar e aprender durante a educação básica, futuro local de trabalho, têm um papel importante na formação docente.

Essa imersão prática é necessariamente formadora, pois levam os futuros professores a adquirirem crenças, valores, representações e certezas sobre a prática do ofício de professor, bem como sobre ser aluno. Mesmo aquelas práticas docentes criticadas, acabam, de certa forma, sendo inconscientemente internalizadas e parcialmente reproduzidas, pois o aluno, para obter êxito na disciplina, deve se sujeitar àquela forma de ensinar e aprender (FIORENTINI, 2005, p.111)

De acordo com Fiorentini (2005), a origem do problema reside no que ele denomina de tradição pedagógica, ou seja, o saber da tradição escolar, herdado da experiência escolar anterior, que é muito forte e persiste através do tempo e que a formação universitária, muitas vezes, não tem conseguido transformar ou mesmo abalar. Mas, em contrapartida, por que as disciplinas de conteúdo pedagógico não têm conseguido reverter esse quadro?

Concordamos com as explicações que Fiorentini apresenta para justificar a problemática em tela. Esses fatores foram identificados nas observações de aulas, nos relatos dos estudantes nas entrevistas e roda de conversa nessa investigação. Entretanto, entendemos que esses são os “sintomas”, as consequências do problema. A causa, de acordo com a teoria de Bourdieu (2015), pode estar na hierarquização das disciplinas escolares, ou seja, na valoração a elas atribuída. Trata-se da tese de estratificação dos saberes escolares, que procura explicar como o sistema escolar estabelece, em todos os graus de ensino, uma hierarquia que vai das disciplinas mais valorizadas (canônicas) até as disciplinas mais desvalorizadas (marginais), passando pelas disciplinas que ocupam uma posição intermediária (secundárias), como explicam Nogueira e Nogueira (2016).

Referindo-se ao sistema escolar francês, Bourdieu (2015, p. 238) esclarece que são:

[...] as diferenças sociais que recobrem as diferenças entre as disciplinas ordenadas segundo uma hierarquia comumente reconhecida: desde as disciplinas mais canônicas, como o francês, as letras clássicas, a matemática e a física, socialmente designadas como as mais importantes e nobres [...].

Assim, cabe questionar: qual a relação entre diferenças sociais e a tese da estratificação dos saberes, defendida por Bourdieu? Para o autor, “as disciplinas canônicas consagram os alunos provenientes das famílias mais favorecidas tanto pela situação social como pelo nível cultural [...]” (BOURDIEU, 2015, p. 238). Essa consagração acontece, de acordo com Bourdieu (2015, p. 247), porque as disciplinas nobres “devem sua posição dominante ao fato de que os valores que assumem explicitamente a fim de transmiti-los, não contradizem em nada os valores atuantes nas práticas pedagógicas e as ideologias que vinculam”.

No caso da Matemática, em particular, foi possível constatar durante as observações em sala de aula, nos discursos de professores e estudantes a exaltação da beleza, a sedução daquela que recebeu de Johann Carl Friedrich Gauss (1777 - 1855), matemático alemão, o título de “rainha das ciências”. A esse respeito, Pessanha (1997, p. 15) afirma: “(...) é um discurso altamente coagente. Pode imperar com a força de uma autoridade e até de um autoritarismo, se transferido de seu território próprio, legítimo e adequado para outros territórios”.

De acordo com Bourdieu, para compreender a supremacia das disciplinas “mais importantes”, “nobres”, faz-se necessário mergulhar fundo nas sutilezas das distinções e das hierarquias

[...] que se estabelecem entre diferentes formas de excelência escolar e que se revelam por índices tão objetivos como por exemplo a hierarquia das disciplinas e das atitudes e das aptidões que as primeiras exigem: de um lado, matérias como o francês (e em outro registro, a matemática) parecem exigir o talento e o dom e,de outro, matérias como a geografia (e em menor grau a história), as ciências naturais e as línguas vivas que requerem sobretudo trabalho e estudo (BOURDIEU, 2015, p. 242) (Grifo nosso).

A excelência acadêmica nas disciplinas consideradas “nobres” parece exigir de cada estudante, como aponta Bourdieu (2015), o talento e o dom - a inteligência, a aptidão - individuais. É o que o autor chama de ideologia do dom, segundo a qual o sucesso ou o fracasso dependerá das características individuais, dos dons, da inteligência de cada indivíduo, pois seriam dadas as mesmas oportunidades de acesso a todos, ou seja, trata-se do princípio da equidade formal.

Os reflexos dessa hierarquização, na percepção dos estudantes, podem ser observados na fala de Esfênio: “Na Matemática aplicada, eu acho que eu me esforço mais que na licenciatura e principalmente nas matérias da Faculdade de Educação. Eu não levo elas a sério, muitas vezes, mas eu entendo.” E, também, na fala de Ametrino, referindo-se às preleções de um docente:

Fiz duas matérias com ele e ele sempre punha essa ideia na gente: - Não, tem que ir para o bacharelado, porque o bacharelado, ele dá um conteúdo que você não aprende fazendo as disciplinas de didática... as disciplinas da Faculdade de Educação. Então você tem que ter conteúdo. Professor bom é aquele que domina a Matemática, sabe a raiz, sabe de onde vem tudo, consegue provar tudo. Esse é um bom professor.

Voltamos à questão colocada anteriormente: por que as disciplinas de conteúdo pedagógico não têm conseguido reverter esse quadro? Qual a função da avaliação nesse processo? Se olharmos o problema pelas lentes da teoria de Bourdieu, veremos que se trata da tese da reprodução e legitimação das desigualdades sociais. Um processo de dominação cultural que é percebido pelos estudantes como fatores que dificultam seus percursos acadêmicos sem, contudo, demonstrar compreender o problema na sua origem, ou seja, uma questão de ordem social, que discutiremos mais adiante.

Um dos fatores que dificultam o êxito acadêmico, de acordo com a percepção dos licenciandos, é o planejamento das atividades pedagógicas, segundo eixo temático que analisaremos a seguir. Consideramos ser esse elemento da prática pedagógica de grande importância porque, como pontua Luckesi (2011, p. 17), “sem ações planificadas, não há avaliação da aprendizagem”. Para melhor compreensão da visão dos alunos sobre essa questão, recorremos aos documentos diretamente relacionados ao planejamento do trabalho pedagógico na Instituição - o Projeto Pedagógico do Curso (PPC) e as ementas das disciplinas -, visando à obtenção de subsídios para analisar os depoimentos dos pesquisados.