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4 SOBRE AS IMPLICAÇÕES DA AVALIAÇÃO PARA A APRENDIZAGEM DOS

5.6 Interiorizar o ideário meritocrático

Outra saída encontrada por alguns alunos é buscar ser dedicado e corresponder ao que lhe é solicitado, mostrando haver uma interiorização do ideário meritocrático, que, no dizer de Ruschel e Valle (2010, p. 658), “as diferenças de rendimento escolar dependem, unicamente, do interesse e do esforço de cada um”. Nesse sentido, os estudantes são convencidos da necessidade de grande dedicação e esforço individual, que se traduz nos depoimentos dos pesquisados em uma postura proativa diante das atividades didáticas: esforço para participar das aulas, esclarecer dúvidas, fazer muitos exercícios, buscar ajuda extraclasse, como explica Esmeralda: “Eu passei a tirar o máximo de dúvida durante a aula e, ... ainda quando tenho dúvida, quando faço exercício, vou lá na sala do professor, passei a mudar a minha postura”.

Questionada sobre a fala: “passei a mudar minha postura”, Esmeralda explica que, para interromper as explicações/exposições dos docentes, fazer questionamentos, tirar dúvidas durante as aulas, é preciso fazer um grande esforço emocional para vencer a insegurança, o medo de receber uma resposta grosseira ou ouvir uma piadinha com a dúvida. Esse tipo de postura é, de acordo com as falas de alguns estudantes, muitas vezes, vista como inconveniente por parte de alguns docentes, bem como de alguns colegas.

Os investigados mencionam, tendo sido possível observar durante as aulas, uma necessidade do professor em concluir o seu raciocínio durante a exposição para, somente depois, virar de frente para a turma e perguntar se eles entenderam o que estava sendo exposto e anotado no quadro, fato que se mostra como um dificultador do acompanhamento e do entendimento das explicações por parte dos discentes. Estes explicam que se um aluno interromper esse procedimento adotado pelo professor é considerado inconveniente, já que, muitas vezes, faz com que percam a sequência do registro no quadro. Nesse sentido, Larimar explica: “[...] a pessoa começa a escrever ali no lado direito e o que ela começou ali, ela continua escrevendo no final do quadro aqui, depois ela pula para o meio. Não tem uma sequência, sabe?! Não tem uma sequência para olhar para o quadro, começou ali, agora tá ali, não. Tá ali, vem pra cá, vem para o meio”.

Essas são razões apontadas pelos estudantes para se tornarem autodidatas, estudarem sozinhos ou buscarem auxílio de outras pessoas, como diz Esfênio: “Eu acho que eu estudo

mais antes da aula do que depois, por isso que talvez na aula eu estou tão participativo, eu estudo a matéria antes, para durante a aula eu conseguir acompanhar”.

Os dados nos permitem inferir que os estudantes tomam para si os problemas relacionados à aprendizagem dos conteúdos, assumindo o ônus do seu sucesso ou não, como é possível observar nas afirmações acima e, de forma mais enfática, na fala de Esmeralda: “[...] eu pego cadernos de pessoas que já fizeram aquela disciplina, eu estudo as provas anteriores, eu refaço listas que eu encontro na internet [...], tudo isso porque eu sei que se eu não fizer isso, seria muito difícil passar, se eu não fizesse esse trabalho comigo mesma”.

Através da fala de Esmeralda, “se eu não fizesse esse trabalho comigo mesma”, é possível inferir que a aluna está assumindo a responsabilidade por seus sucessos e malogros. Diante das condições de ensino, a aluna faz essa opção para seguir no curso. Procedimentos como esses nos levam a perceber a prevalência de um ideário meritocrático, no qual os sujeitos são impelidos à individualidade, a competitividade e são cobrados sem a devida contrapartida que lhes garantam alcançar as aprendizagens.

Nesse contexto, o foco é desviado das condições de aprendizagem dos estudantes e da atuação dos docentes para induzir ao senso comum e reconhecer o mérito individual e espontâneo dos indivíduos. Nessa perspectiva, “as causas do sucesso ou do fracasso na escola devem ser buscadas nas características dos indivíduos: a escola oferece ‘igualdade de oportunidades’; o bom aproveitamento dessas oportunidades dependerá do dom - aptidão, inteligência, talento - de cada um” (SOARES, 2017, p. 17).

A avaliação, sob esse ponto de vista, funciona como um processo de controle do aproveitamento de oportunidades educacionais com fortes repercussões sociais. Sendo assim, a avaliação se constitui como instrumento

[...] de dissimulação de um processo de seleção em que, sob a aparente neutralidade e equidade, a alguns são oferecidas sucessivas oportunidades educacionais e, em consequência, oportunidades sociais, enquanto a outros essas oportunidades são negadas, processo que se desenvolve segundo critérios que transcendem os fins declarados da avaliação. Segundo esses fins declarados, a avaliação educacional pretende verificar se o estudante alcançou, e em que grau, os objetivos a que se propõe o processo de ensino. Implicitamente e mascaradamente, a avaliação exerce o controle do conhecimento e, dissimuladamente, o controle das hierarquias sociais. (SOARES, 1989, p. 47).

O ideário meritocrático concentra muitas de suas ações visando a premiar aqueles que alcançam sucesso e a punir aqueles que fracassam, sem observar as condições de ensino e as condições que cada sujeito possui para alcançar os objetivos propostos pela academia. No

caso dos graduandos dessa investigação, os bem-sucedidos são agraciados com suas entradas para o “clube dos matemáticos”, por meio de bolsas de iniciação científica, bacharelado, mestrado e doutorado. Recebem atenção e reconhecimento por parte dos docentes, mantém uma relação professor-aluno especial. Por outro lado, os estudantes que fracassam, ou seja, reprovam ou abandonam a disciplina, sentem-se intimidados, retraídos e procuram por docentes cujo perfil seja mais “humano” para esclarecerem dúvidas.

Nesse contexto, ao interiorizar o ideário meritocrático, os estudantes indicam que percebem, de forma nebulosa, com maior ou menor intensidade, os efeitos da violência simbólica nas suas dificuldades cotidianas, sem, contudo, demonstrar compreender claramente as raízes ou origem dessa violência. Nesse sentido, durante a entrevista, Esmeralda desabafa: “de todos os lados vão vir flechas para comprometer o seu percurso acadêmico”. As flechadas a que ela se refere são os desafios de ordem emocional, resultado das tensões vividas, especialmente nas relações que são estabelecidas no ambiente acadêmico.

Manter o equilíbrio emocional, aprender a controlar as emoções e sentimentos e agir com resiliência foram desafios apontados por muitos licenciandos, principalmente com relação ao ambiente de grande competitividade entre os pares e as tensões nas relações interpessoais com os docentes e discentes. Para vencer esse desafio, uma das estratégias apontadas por Esmeralda é ignorar seus sentimentos: “[...] eu vou ignorar a minha angústia, eu vou, o professor não sabe nem meu nome, mas eu não vou absorver essa... esse sentimento ruim, não vou deixar isso me consumir, eu vou ignorar isso e vou simplesmente fazer aquilo que eu vim fazer”. Além de ignorar os sentimentos, Esmeralda cita a necessidade de blindar- se: “Você tem que continuar caminhando assim, a atmosfera, às vezes, vai tá trazendo coisas não tão boas, mas você tem que tá muito focado no seu objetivo, essa blindagem seria não perder o foco”. Essa blindagem a que Esmeralda se refere também é uma forma de interiorização do ideário meritocrático, ou seja, responsabilizar-se por superar todas as dificuldades durante o percurso acadêmico.

Outra forma de blindagem, nos termos de Esmeralda, é a solidariedade entre os estudantes da licenciatura, um apoiando o outro, como também menciona Coralina:

Eu falo assim, que o curso de Matemática, às vezes, os que sobram, ficam um tentando dar força... ajudar o outro, um consolando o outro, porque muitos assim... trabalham, são casados, têm família, aí assim... fica um ajudando o outro [...]. Então é tipo assim, não tem o AA dos alcoólicos anônimos? Eu acho que devia ter dos matemáticos anônimos [risos].

Os licenciandos mencionam, com muita frequência, sofrimento emocional e doenças físicas, como sentimentos de inferioridade, incapacidade, depressão. Relatos como o de Ametista revelam a gravidade desse sofrimento:

Aí, no início de 2015, eu fiz matrícula e vim para ele chorando [profº ...], desesperada, chorava horrores, falei com ele assim que eu não queria.. que eu ia trancar e abandonar e não ia voltar. Ele sentou, conversou comigo, me acalmou. Eu estava tão nervosa que eu cheguei a ter quase um princípio de infarto, sabe? Eu fui parar no hospital por crise nervosa. [...] eu dei uma crise nervosa, então deu uma anemia, é... desencadeou mil coisas, eu engordei horrores nessa época, eu não tinha esse corpo, eu era muito mais magra.

Nas falas dos estudantes é possível identificar os efeitos psicológicos da presença da violência simbólica na prática pedagógica, como esclarecem Bourdieu e Passeron (1982). Nesse sentido, os danos emocionais abalam a autoestima e, consequentemente, acarretam prejuízos para o rendimento acadêmico dos alunos, como indica o depoimento de Esmeralda:

Mas assim, foi muito difícil ter passado, por exemplo, em Análise Combinatória com o professor Perídoto, eu chorava muito, eu cheguei a chorar muitas vezes. Aguentei firme, mas eu ia para o banheiro chorar, eu conversava com muitos amigos:

- Olha, eu não tô aguentando, eu acho que eu não vou dar conta. Eu chegava em casa:

- Mãe do céu me ajuda, que que eu faço, porque esse professor, ele tá sendo grosso.

Nesse contexto, é importante analisar como os licenciandos percebem as implicações da prática de avaliação por eles vivenciadas. Constatamos que as provas convencionais, instrumentos predominantemente usados pelos docentes, são geradores de grande sofrimento emocional, com implicações diretas sobre o desempenho acadêmico dos estudantes, como evidencia a fala de Rubelita: “Mas você já entra com medo, por exemplo, eu não fiz a prova dele [Crisólito], mas só de pensar que eu vou ter que fazer no final do semestre eu já... já estou supondo que eu tomei pau”.

Vale citar uma referência de Bourdieu sobre a delinquência escolar de adolescentes na França e no Japão, porque entendemos que há alguma semelhança com o sofrimento psicológico demonstrado por nossos pesquisados:

[...] é frequentemente com uma grande brutalidade psicológica que a instituição escolar impõe seus julgamentos totais e seus veredictos sem apelação, que classificam todos os alunos em uma hierarquia única de forma de excelência - dominadas atualmente por uma disciplina, a matemática. Os excluídos são condenados em nome de um critério coletivamente reconhecido e aprovado, portanto, psicologicamente indiscutível e

indiscutido, o da inteligência: assim, para restaurar uma identidade ameaçada, ele com frequência não tem outro recurso a não ser as rupturas brutais com a ordem escolar e a ordem social [...] ou, como também ocorre, a crise psíquica, isto é, a doença mental ou suicídio (BOURDIEU, 1996, p. 46)

De forma velada, a ocorrência da violência simbólica está atrelada às normas e critérios de excelência, às práticas de avaliação e, portanto, às hierarquias de excelência acadêmica. Perrenoud (1999, p. 25-26) informa que “as normas de excelência e as práticas de avaliação, sem engendrar elas mesmas as desigualdades no domínio dos saberes e das competências, desempenham um papel crucial em sua transformação em classificações e depois em julgamentos de êxito ou de fracasso”. Como questão de fundo desse cenário está o escamoteamento das desigualdades.

Ao definir as hierarquias de excelência, a academia tenderá à classificação dos seus graduandos, o que significa um enorme peso na determinação do aproveitamento acadêmico. Nas palavras de Perrenoud (1999, p. 28), “o êxito e o fracasso escolares resultam do julgamento diferencial que a organização escolar faz dos alunos, da base de hierarquias de excelência estabelecidas em momentos do curso que ela escolhe e conforme procedimentos de avaliação que lhe pertencem”.

Para alcançar um nível elevado na hierarquia de excelência definida pelo Departamento de Matemática e, pelos docentes em particular, nossos interlocutores sentem os efeitos da violência simbólica, conforme depoimento de Ametista:

Eu não estava feliz, eu me cobrava. Porque querendo ou não existe uma pressão, eu acho que aqui é meio injusto nisso, existe uma pressão... do Departamento, de uma forma escondida, sabe? De uma forma meio que indireta, existe uma pressão daquela coisa de nota, de RSG, né? Então você, meio que se cobra por causa disso, porque existe aquela, né? Essa pressão. Então eu queria sempre ter a minha nota alta, ter meu RSG alto e eu não consegui manter isso.

Aqueles que não conseguem alcançar esse nível de excelência resignam-se, como diz Coralina:

Não, não tenho mais essa vaidade não, tirei 60, 60 é A, A de alívio! [risos]. Eu já me preocupei, assim... É lógico que eu fico satisfeita quando aparece um 100, né? Um 96, que é um A, né? Do conceito A mesmo, que o A do 60 é um A de alívio [risos].

Para Bourdieu (1989), é por meio de lutas simbólicas que os agentes buscam a distinção e privilégios no espaço social, ou seja, o poder no interior do campo, no caso em tela, do campo da Matemática. Nessa luta, aqueles que acumulam mais capital assumem

posições de poder dentro do campo. As evidências apresentadas nos relatos dos estudantes é que aqueles que aceitarem se adaptar às “regras do jogo”, ou seja, incorporarem o habitus - os valores e crenças - dos professores, receberão, como recompensa, o reconhecimento acadêmico e todos os seus benefícios.

Nessa luta simbólica, a avaliação exerce a função de classificar os estudantes “brilhantes” e “opacos”, bem como legitimar as diferenças sociais entre eles, ignorando-as. Contudo, essa situação não é percebida claramente pelos licenciandos, questão que será analisada no próximo capítulo.

6 SOBRE AS POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES DA AVALIAÇÃO PARA A FORMAÇÃO DOCENTE

As pesquisas sobre a ação de professores mostram que em geral o professor ensina da maneira como lhe foi ensinado.

Beatriz D’Ambrosio

Partindo do pressuposto de que a prática pedagógica vivenciada na academia, durante a formação inicial, exerce influências na formação e poderá ser apropriada pelo futuro professor de Matemática na educação básica, conforme explica D’Ambrosio (1993, p. 38) na epígrafe, neste capítulo, nosso objetivo é analisar como os licenciandos percebem as práticas pedagógicas/avaliativas dos professores das disciplinas de conteúdo específico e suas possíveis implicações para a formação como docentes.

Ao buscar referenciais teóricos para fundamentar as análises e, assim, alcançar o objetivo proposto para este capítulo, encontramos os pesquisadores: D’Ambrosio (1993), Vasconcelos (1995), Freire (2004), Cunha (2005), Villas Boas (2005), d’Ávila (2007, 2015), Fischer (2008), Viana (2015), Canôas (2015), entre outros. Esses autores sinalizam que as experiências vivenciadas durante a formação poderão exercer influências na atuação docente futura. Nesse sentido, Paulo Freire (2004, p. 23) é enfático ao afirmar:

Se, na experiência de minha formação [...], começo por aceitar que o formador é o sujeito em relação a quem me considero o objeto, que ele é o sujeito que me forma e eu, o objeto por ele formado, me considero como paciente que recebe os conhecimentos-conteúdos-acumulados pelo sujeito que sabe e que são a mim transferidos.

De acordo com Paulo Freire, essa forma de compreender o processo formador poderá trazer implicações para a formação do docente, pois “[...] eu, objeto agora, terei a possibilidade, amanhã, de me tornar o falso sujeito da ‘formação’ do futuro objeto de meu ato formador” (FREIRE, 2004, p. 23).

Nessa direção, Cunha (2005) fornece importantes contribuições para a análise da questão. A autora afirma que “o professor ensina com base na sua experiência, enquanto aluno, inspirado em seus antigos professores” e esclarece que “muitas são as pesquisas que detectaram essa espiral reprodutiva da formação” (CUNHA, 2005, p. 94). Sintonizados nessa ótica, outros pesquisadores destacam a importância das experiências que os futuros professores vivenciam com os seus formadores. Nessa direção, Vasconcelos (1995, p. 78)

afirma: “As experiências que os futuros educadores têm nos seus processos de formação são decisivas para suas posturas, posteriormente, na prática de sala de aula”.

Tomamos como referência o estudo de Canôas (2015), no qual a autora sublinha que a educação do professor formador, sua consciência e seu compromisso são aspectos centrais na formação inicial do professor de Matemática. Esses aspectos indicam a necessidade de uma reflexão sobre a formação docente e a prática pedagógica no curso de Licenciatura em Matemática, especialmente a prática dos professores de disciplinas de conteúdos específicos. Isso porque, não raro, nessas disciplinas, os índices de reprovação e evasão são, historicamente, elevados em nosso país. O mais grave dessa história é que, satisfeitos e insatisfeitos convivem mais ou menos harmoniosamente com esse baixo desempenho, com conflitos eventuais, mas efetivamente aceitando a situação de grande abandono dos estudantes do curso já nos primeiros anos da graduação (ZAIDAN, 1993).

Partindo da premissa que o docente toma como referência as ações de seus formadores vivenciadas para suas práticas na profissão, de acordo com d’Ávila (2015), cotejando modelos e contramodelos de docência, analisaremos, nas subseções que se seguem, os temas-eixos que emergiram do nosso corpus de dados: 1) Da tensão bacharelado versus licenciatura; 2) Da aprendizagem dos conteúdos específicos versus pedagógicos; 3) Da interiorização da concepção de avaliação tradicional; 4) Da preparação do licenciando para avaliar; e 5) Expectativas dos alunos e conclusão da licenciatura.