• Nenhum resultado encontrado

O elevado status das disciplinas de conteúdo específico em relação às de conteúdo pedagógico apresenta-se como um fator de tensão constante para os interlocutores desta investigação e perpassa todo o processo de formação dos futuros professores, com implicações para as relações que são estabelecidas no ambiente acadêmico como um todo, mas, sobretudo, na sala de aula e, particularmente, na prática de avaliação.

A relação professor-aluno é citada por 59,52% dos licenciandos como o ponto neurálgico do processo pedagógico como um todo. Referindo-se às disciplinas de conteúdo específico, Esmeralda é veemente: “Você sente uma angústia imensa nos primeiros períodos, assim, eu senti uma angústia muito grande, de não ter, assim, parece que eu era invisível dentro da sala de aula”.

É interessante esclarecer que a “frieza de tratamento”, a distância estabelecida na relação professor-aluno é percebida pelos alunos durante todo o percurso acadêmico. Os relatos indicam e constatamos em nossas observações de aulas que, à medida que vão avançando para os períodos finais do curso, os estudantes vão se retraindo cada vez mais, como diz Topázio: “Eu acho que quando eu cheguei eu perguntava muito mais do eu pergunto hoje”. Os diálogos a seguir ilustram essa situação:

Pesquisadora: O professor fazia uma pergunta e a maioria dos alunos ficava em silêncio e eu ficava me perguntando o porquê.

Topázio: Ah, porque já está traumatizado! Você pega uma turma de Variável Complexa do quinto período, a maioria, a maioria dos professores, tem esses que eu falei, por exemplo, o preconceito, um pouco também, porque a gente não vem preparado para aquilo, você fica meio... [risos].

É muito, muito fria mesmo, a relação. Tem muita gente que reclama disso, que os professores parecem que não quer se envolver, não gostam dos alunos. [...] então quando a gente chega na IFES você tá sozinho, você não tem apoio de professor. Então muita gente tem dificuldade com a frieza do tratamento [...]. (Esmeralda)

Os estudantes percebem a distância que se estabelece na relação por parte de alguns professores, mas não demonstram compreender o porquê. Essa questão, de acordo com Bourdieu e Passeron (1982), diz respeito à imposição da autoridade e do respeito profissional.

O professor encontra nas particularidades do espaço, que lhe concede a instituição tradicional (o estrado, a cadeira e sua situação no lugar de convergência dos olhares), as condições materiais e simbólicas que lhe permitem manter os estudantes à distância e com respeito, e que o coagiriam mesmo se ele se recusasse a aceitá-lo (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 122)

Cabe questionar o porquê dessa imposição da autoridade e do respeito profissional na relação professor-aluno. Bourdieu e Passeron (1982, p. 121) esclarecem que se trata de um “sistema das coerções visíveis ou invisíveis que constituem a ação pedagógica como ação de imposição e de inculcação de uma cultura legítima”. Nos termos dos autores, “toda ação pedagógica (AP) é objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural” (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 20). Isso acontece, segundo os autores, porque a ação pedagógica escolar “reproduz a cultura dominante, contribuindo desse modo para reproduzir a estrutura das relações de força, numa formação social onde o sistema de ensino dominante tende a assegurar-se do monopólio da violência simbólica legítima” (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 20).

Uma forma de inculcação e legitimação da cultura dominante por meio da coerção, especialmente da linguagem verbal arrogante e prepotente, como explicita Esfênio: “Porque o professor, muitas vezes, ele pressiona o aluno e deixa ele mal, se ele fizer uma pergunta boba. Aí no caso ele não entende, mas o professor acha que a pergunta é imbecil”. E, também, Jacinto: “Porque, a mesma maneira que esse meu professor, ele né?! Tinha um ar de prepotência, né? Assim que é normal aqui!”

Na relação professor-aluno, de acordo com Tardif e Lessard (2014), a linguagem sarcástica, irônica, áspera entre outras formas de manifestações, é uma forma de coerção simbólica. Os testemunhos dos alunos evidenciam essa forma de coerção, como nos relatos a seguir:

[...] às vezes, até faz uma piadinha com a dúvida, mas não deixam de responder, não deixa de tirar a dúvida, não deixa de perguntar assim no final, você entendeu? Tem certeza? Quer que repete? (Citrino)

Os nomes que eu já ganhei aqui, chorão, sim, por que eu reclamo: “- ah você reclama demais, ah, mas você de novo”. É porque eu estou insistindo para aprender. - “Ah, você pergunta demais, como é que você passou no vestibular sendo que você tem tantas dúvidas?” (Larimar)

As manifestações de uma parcela majoritária dos estudantes ressaltam sentimentos como: indignação, angústia, medo, traumas, repúdio, bloqueios, entre outros. Eles reclamam, principalmente, da ausência de empatia e da forte austeridade dos professores. Clamam por uma relação professor-aluno baseada na alteridade e empatia, como afirma Esmeralda: “Eu acho [...] que falta essa preocupação no sentido de empatia, sabe? Aquela coisa de olhar pro aluno e conseguir se colocar no lugar do outro?”.

É importante destacar que alguns estudantes mencionam sentimentos e experiências positivas nas relações estabelecidas com alguns professores, como relatam Esfênio e Ametista: “E ele tentava o máximo possível entender o aluno [...], então ele não era só um professor, ele era um educador. O que é diferente dos professores do bacharel aqui. Ele preocupava mesmo com a gente” (Esfênio).

Eu tive uma colega [...], ela tem muito bloqueio com prova, ela tem muita dificuldade com prova. [...] muitas vezes, ela ia para a prova sabendo até mais que eu, não conseguia fazer. E eu notava que a Jade notava aquilo, sabe?! Ela percebia. Então ela é humana, consegue estar próxima do aluno. Chegava, conversava com ela e tranquilizava ela, porque no início ela se desespera pelo fato dela não conseguir. Eu achava bacana a Jade perceber isso. (Ametista)

De acordo com Teixeira (2007, p. 429), “o outro, a relação com o outro, é a matéria de que é feita a docência”. Essa matéria, a relação professor-aluno, é uma queixa da maioria dos interlocutores desta investigação. Eles deixam evidente que a relação é um dos fatores que mais os atingem emocionalmente, como relata Esfênio: “A gente aqui na Matemática tá acostumado ser chamado de burro!! Literalmente isso! Muitos aqui já sabem disso. Tem professores aqui que falam que os cavalos da Inglaterra sabem derivar e nós não”. Situação também relatada por Larimar: “Do jeito que você cai na sala de aula e alguém ó, te

chicoteando, muitas vezes, te chamando de burro, perguntando o que você está fazendo aqui, que aqui não é lugar para você”.

Teixeira (2014) explica que a relação é um grande desafio colocado para a docência. Nos termos da autora,

Talvez maior não pudesse ser, pelo fato de a dificuldade estar instalada na relação, no ponto de origem da docência. Está colocado um problema no

coração da docência, pois as representações e imagens dos docentes sobre

os discentes dão significado e sentido às condutas pedagógicas, dão significado e perspectivas às suas relações com seus alunos. Elas modelam, influenciam, imprimem conteúdos e formas às condutas dos professores no jogo das relações docentes/discentes. Tais imagens e representações dão sentidos, significados e atribuem sentimentos à experiência e à condição docente (TEIXEIRA, 2014, p. 440) (Grifo nosso).

A dificuldade na relação professor-aluno é evidenciada pelos estudantes quando denunciam situações de constrangimento público, humilhações, como conta Esfênio: “Eu já vi muito professor humilhando aluno em sala”. Esmeralda também menciona: “Isso é dolorido também, porque eu, a gente recebe muita patada de professor. Você faz uma pergunta que eles julgam ser boba, pergunta idiota, você também recebe... recebe... recebe também aquilo ali, como se diz, sua pergunta não foi adequada”.

Pode-se inferir que, ao destacar a relação docente como um dos principais desafios vivenciados no processo pedagógico, os estudantes estão chamando a atenção para a dimensão do cuidar, como esclarece Teixeira (2014, p. 433):

Do cuidado de si e do outro. Do zelo com os processos educativos, com os percursos e dinâmicas da formação humana, com as dinâmicas, conteúdos e formas de construção do conhecimento e inserção na cultura, traçados em que a dimensão política se reitera na docência. O cuidado de si e do outro é político.

A autora afirma ainda:

A relação docente/discente poderá favorecer ou desfavorecer, impedir ou realizar experiências emancipatórias e humanizadoras, ou o seu inverso nos (in)acabamentos éticos e estéticos nela implicados. Por ser assim, talvez se possa dizer que a docência é algo da ordem da delicadeza, tanto quanto é ela da ordem do humano, do político e do cuidar. A docência diz respeito ao delicado envolvimento, ao delicado comprometimento, a uma delicada preocupação e zelo com os destinos e temporalidades humanos [...]. (TEIXEIRA, 2014, p.433) (Grifo da autora)

Sendo a docência da ordem da delicadeza, do humano, do político, do cuidar e a relação, o coração da docência, como esclarece Teixeira (2014), se há dificuldades nesse aspecto, temos aí um grande desafio.

Quando a dificuldade do professor está no aluno e em suas relações com ele, estamos diante de um problema fundante, de um desafio imensurável. Estamos diante de uma questão maior que outras que os docentes possam viver e sentir, pois se trata de uma dificuldade relativa à própria origem da docência, problema frente ao qual os demais podem tornar-se menores (TEIXEIRA, 2014, p. 440) (Grifo nosso).

Os licenciandos colocam, direta ou indiretamente, a relação professor-aluno no cerne dos problemas vivenciados nas disciplinas de conteúdo específico e apresentam as dificuldades enfrentadas a partir das relações estabelecidas na sala de aula e demais espaços acadêmicos. Foi nesse contexto de indignação e denúncia que os alunos foram estimulados a falar sobre as práticas avaliativas, tendo em vista compreender suas percepções sobre avaliação a partir da prática de seus professores.