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A DANÇA NO PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO BRASILEIRO: ENTRE O EXERCÍCIO FÍSICO E A LEVEZA DOS GESTOS

SUMÁRIO

A DANÇA NAS DISCUSSÕES SOBRE CULTURA 161 1 “A dança como manifestação artística que tem presença

4. A DANÇA NO PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO BRASILEIRO: ENTRE O EXERCÍCIO FÍSICO E A LEVEZA DOS GESTOS

No entanto, recorrendo ao estudo de Chaves18, é possível observar que a dança esteve presente, de forma discreta, no processo de escolarização da educação física19. Em um movimento de conhecer o processo de escolarização da educação física, alguns autores identificam a presença da dança inserida nessa área, como no estudo de Vago (2002) sobre o enraizamento escolar da educação física, e no estudo de Soares (1998) sobre as imagens da educação no corpo, através do estudo da ginástica francesa do século XIX.

Como chamam a atenção os estudiosos de arte, as fontes disponíveis para os estudos sobre arte no Brasil são precárias, dificultando a compreensão sobre sua inserção na escola, ou seja, em seu processo inicial de escolarização. Porém, esses estudos evidenciam que em arte os conhecimentos privilegiados no processo de escolarização foram o desenho, o canto e os trabalhos manuais (BARBOSA, 1978; OSINSKI, 2000; PEREIRA, 2006).

A dança, conhecimento presente no processo de escolarização brasileiro, esteve associada à inserção dos exercícios físicos, da ginástica, com a implementação da tríade “educação moral, intelectual e física”; porém, nesse caminho, a dança entra no conjunto de conhecimentos necessários à educação das crianças e jovens brasileiros, especialmente das mulheres.

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CHAVES, Elisângela. A Escolarização da dança em Minas Gerais (1925 – 1937). 2002. 159 p. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002.

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A autora, preocupada em compreender a escolarização da dança, ocupou-se do estudo da cultura escolar mineira, investigando o movimento de escolarização da dança em Minas Gerais no período de 1925 a 1937, acompanhando o processo de inserção da dança na cultura escolar. Trabalhou com fontes primárias da legislação do ensino de Minas Gerais, que tem seus documentos oficiais conservados em arquivo público desde 1835, possibilitando aos pesquisadores vasculhar sua história e proporcionando um material rico em referências no cenário nacional. Afinal, Minas Gerais foi uma importante província na constituição da historia sócio- político-cultural brasileira.

Não é uma entrada marcante, uma presença viva, algo que consta como necessário e obrigatório, mas dá as primeiras pistas de existência, de associação a outros conhecimentos, de entrada pelas brechas do processo de enraizamento escolar de outro conhecimento, qual seja, a ginástica. Ela acompanha os processos iniciais de escolarização nos espaços de exercitação, descanso, controle e festividades escolares.

Para Chaves (2002), a dança foi incluída nos conteúdos dos exercícios físicos pela sua compreensão como prática corporal, na busca de um corpo eficiente, frente ao processo de modernização da sociedade. Mas foi chamada a compor os conteúdos ligados ao ensino das mulheres, por entender que possuía gestos feminilizantes, suaves, belos, não viris. Destacando a compreensão e defesa de um intelectual brasileiro, Fernando de Azevedo, que apresentando a defesa da educação física insere a dança, dizendo:

A dansa clássica, ao ar livre, suavisada na sua rudeza de saltos de corça e corridas precipitadas, em que, semelhantes aos potros as jovens gregas envoltas no peplo faziam voar a poeira (Aristophanes), a dansa clássica que, pela graça rythmica do movimento e harmonia das attitudes estheticas, faz lembrar as virgens das panathenéas e das festas amphyctionicas, tem uma elevada funcção educativa e é um dos maiores factores de regeneração plástica, como provou Isadora Duncan, na Escola de dansas de Bellevue, em que, trabalhando na ancia incontida de realizar o sonho helênico, cinzelava pelo esmeril do exercício em suas pequenas discípulas esses admiráveis modelos de flexibilidade muscular e perfeição anatômica, em que se aliava toda a mobilidade colubreante das Danaides do pyxis de Athenas á suavissima graça da dansarina de Tanagra (AZEVEDO, 1920, p.98 apud CHAVES, 2002, p.34).

Foi uma defesa importante para a representação da educação física, pois entende que a dança tem uma função educativa para as mulheres, constituindo um fator de regeneração corporal. A dança clássica a que o escritor se refere não é o balé clássico, e sim a dança com a natureza aos seus pés, por isso recorre a

Isadora Duncan20, sendo destacadas, pelo escritor, a flexibilidade muscular e a perfeição anatômica da bailarina.

É importante que se reconheça que para os homens estavam previstos os exercícios militares, que eram ritmados pela contagem, lembrando que estes podiam ser associados às danças pírricas, que eram danças de guerreiros, de batalhões de guerra, de combates. Daí vem uma das possíveis hipóteses: a idéia da aproximação da dança e da rítmica que vai aparecer na formação de professores da área.

A ginástica, inicialmente estudada com base na anatomia e na fisiologia, vai ganhar, segundo Soares (1998), estudos sobre o aperfeiçoamento dos gestos, na busca de um gesto harmônico e econômico. Uma ginástica que se torna científica, que busca na retidão e na ciência suas regularidades. Na obra Nouveau Manuel

D’ Éducation Physique, Gymnastique et Morale (1838), Francisco y Odeaño de

Amoros21 descreve o que considera essencial para a ginástica, sendo apresentados dezessete itens constitutivos, e aqui destacados os referentes à dança: "15º - As danças pírricas ou militares, e as danças de sociedade mais ou menos desenvolvidas, de acordo com as aplicações que o aluno deverá dar a elas. A dança cênica ou teatral pertence ao funambulismo e não pode entrar no nosso projeto" (AMOROS, 1838, p.v-x apud SOARES, 1998, p.40).

Caberiam às exercitações para a melhoria da postura e da eficiência de seus gestos, a dança feita pelos militares, danças de organização de combates ou as danças reconhecidas na sociedade, as danças oriundas dos salões da

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Isadora Duncan (1877-1927), bailarina dos Estados Unidos que rompeu com convenções e códigos que há séculos vinham sufocando a dança. Dançava inspirada na antiguidade grega, na qual os ventos, as árvores, os elementos da natureza expressavam-se em seu dançar (GARAUDY, 1980; BOUCIER, 1987).

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Francisco y Odeaño de Amoros, autor da obra Nouveau Manuel D’ Education Physique,

Gymnastique et Morale (1838), nasceu em Valença, Espanha (1770). Teve formação militar,

chegando a secretário do rei de Espanha, Carlos IV, adestrando-o nos exercícios físicos. Inicia suas publicações sobre a ginástica em 1820 e morre em Paris em 1848 (SOARES, 1998).

nobreza. Estariam pois, desconsideradas, todas as danças de rua, ou as que chegavam aos palcos públicos, aquelas que buscavam o riso, o inoportuno, o desgaste do movimento, aquelas que feitas nas ruas ou nos circos abusavam do uso dos gestos, aquelas saltitantes, em que mulheres e homens desperdiçavam energia. Cabe à exercitação, à ginástica, algo controlado que pode ser observado em sua organização gestual, assim é possível “um pouco” da dança.

Vale registrar que a compreensão de ginástica era ampliada, pois nela estavam contidos os jogos, as danças, as corridas, os saltos, a esgrima, a equitação, o canto, as evoluções militares, os exercícios físicos. E é com esse entendimento que também nas escolas entra a dança, através da ginástica, dos exercícios físicos que buscavam o fortalecimento e a harmonia dos movimentos para os homens e as mulheres.

No arquivo mineiro, foi identificado por Chaves que, em 1912, com as instruções para a Escola Infantil, apareceu o primeiro registro sobre a dança como conteúdo escolar, com a disciplina Canto, Danças e Jogos, sendo destacado o texto sobre essa disciplina que apresenta:

Canto, danças e jogos. – Aqui não vão as creanças instruir-se em musica. Vão cantar naturalmente, imitando a sua professora, aprendendo com ella a modular a voz e fazendo um exercício dos mais necessários á sua educação physica. O que convém attender é á escolha de peças apropriadas á idade, ao gosto e ao desenvolvimento dos alumnos, de modo a despertar prazer e interesse nessa disciplina, sendo muito importante que não se lhes dêm a cantar coisas banaes, sem arte, quer na musica quer nos versos, prejudicando a parte esthetica do ensino.

Nos jogos e nas danças não se tenha em vista somente a recreação, e por isso convém sempre que todos os exercícios se façam methodicamente, com hygiene e disciplina, educando mais que tudo os sentidos, o trato social e as boas maneiras do alumno, quando entregue livremente ás expansões infantis. Cante, dance e brinque a professora junto com seus alumnos, despertando-lhes alegria, confundindo-se com elles, fazendo-se imitar nas passagens mais difficeis, possuídas do mesmo interesse e dos mesmos enthusiasmos (MINAS GERAIS, 1912, p.118 apud CHAVES, 2002, p.67).

Não era a disciplina de exercícios físicos, mas a noção de educação do físico e da moral, na qual a ordem disciplinar apresentava-se como eixo central para que, ao fazer uso dos cantos, jogos e danças, as crianças não tivessem acessos fúteis, banais, conforme também recomendava Francisco Amoros.

Também estava previsto um programa para essa disciplina, que, organizado por séries, previa para a dança os seguintes conteúdos:

Primeira série: Dançados de movimentos faceis, para um par ou pequeno grupo, que não fatiguem.

Segunda série: Dançados faceis combinados com o canto, para uma parte da classe ou toda ella.

Terceira série: Bailados e outras danças em que tome parte toda a classe.

Quarta série: Danças de movimentos graciosos e de mais difficil execução, combinados ou não com o canto (Decreto nº 3.405, de 15 de janeiro de 1912 apud CHAVES, 2002, p.68).

Apesar de não apresentar qual tipo de dança era recomendada, temos a indicação de que a dança seria orientada com a intenção de acompanhar o canto, com movimentos fáceis e graciosos, complexificando as suas combinações ao longo das séries e buscando trabalhar com todos os alunos. As crianças do ensino infantil, entre 4 e 7 anos, estariam exercitando seus corpos e mentes de forma fácil, harmoniosa, não fatigante e teriam junto às professoras momentos de alegria. A dança, nesse sentido, seria algo leve, alegre, divertido. Um conteúdo de uma disciplina que não parecia rígida e sim de descanso, de controle emocional, de controle dos gestos.

No estudo de Vago (2002), identificou-se a presença da dança em 1914 no interior das iniciativas para melhorar a disciplina escolar. Através do Relatório do 2° Grupo Escolar Affonso Penna de Belo Horizonte, a presentaram-se 31 iniciativas implementadas para melhorar a disciplina escolar, das quais destaco:

[...] instituição de quadro de honra; liga da bondade; regência escolar infantil; assistência médica; inspetoria de higiene infantil; batalhão

infantil; cartões de freqüência e bom ponto; sessão de leituras morais infantis; clube de diversões infantis (que funcionava mensalmente para jogos, brinquedos, danças, etc.) (VAGO, 2002, p.133).

A dança foi chamada a compor o programa escolar mineiro de 1914 no sentido de, em conjunto com outras atividades, dar conta da indisciplina dos alunos, normatizar as condutas físicas e morais. O controle mais uma vez presente para esse dançar na escola, sendo a dança sempre associada aos jogos e aos brinquedos, no clube das diversões infantis.

Em 1925, com o Programa do Estado para o Ensino Primário, em Minas Gerais, a dança foi localizada no Programa dos Exercícios Physicos, sendo reconhecida como uma qualificação dessa prática corporal para a época (CHAVES, 2002). O referido programa apresentava regras de higiene que deveriam ser tomadas como referência quando da realização dos exercícios físicos, sendo destacadas pela autora duas delas:

VI. Nos dois primeiros annos, os exercícios physicos visam habituar o alumno á attitude correcta, desenvolver seu instinctu de imitação e de imaginação, e formar hábitos de sociabilidade e de cortezia. Nos dois últimos annos, além de estimular os hábitos mencionados, formam hábitos de destreza, de vigilância, de julgamento e de outras qualidades moraes, indispensáveis na pratica da vida. [...]VII. Nas escolas, que dispuzerem de piano, as marchas, as danças, e outros exercicios, serão sempre feitos com acompanhamento de musica (Decreto nº 6.758, de 1 de janeiro de 1925, p.24 apud CHAVES, 2002, p.71).

Formar hábitos, garantir atitudes corretas e corteses, em busca de qualidades morais. Os exercícios físicos compõem a tão esperada “educação moral, física e intelectual”, e a dança foi chamada a auxiliar nesse processo.

No mesmo decreto, foram apresentados os conteúdos da dança no Programa de Exercícios Physicos, sendo os mesmos detalhados por ano/série: "[...] Primeiro ano: Danças populares infantis; Segundo ano: Danças e evoluções cadenciadas; Terceiro ano: Danças populares infantis; Quarto ano: Danças e evoluções cadenciadas" (CHAVES, 2002, p.72). Danças populares, danças

cadenciadas, danças do universo infantil, não há registros sobre quais danças foram selecionadas, ensinadas, mas estava presente a idéia de acompanhamento do ritmo, da cadência, do brinquedo infantil, das danças de roda.

As músicas, os cantos, as marchas, as danças, buscavam dar ao corpo dos alunos uma ordem, um lugar de postura e atitudes corretas, em busca de um ser humano civilizado, cortês, educado, que representasse este país em processo de crescimento. Exercícios físicos, e dança em seu interior, compunham um programa em que estavam previstos os conhecimentos sobre leitura, caligrafia, aritmética, geografia, ciências física e natural etc., e caracterizava-se como um saber necessário ao desenvolvimento das crianças, ao desenvolvimento da nação.

Naquele momento inicial, a arte, reconhecida pelo ensino de desenho, canto e trabalhos manuais, não apresentou a dança como conteúdo. Aos poucos, a dança vai sendo inserida na escola, pela via dos exercícios físicos e da ginástica, inicialmente entendida como movimento ritmado, acompanhamento de brincadeiras, elemento de graciosidade da ginástica, até a sua inserção na forma de danças populares, especialmente para apresentação nas festividades escolares22.

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Sobre a presença da dança nas festas escolares, ver o capítulo dedicado à análise da Revista do Ensino (CHAVES, 2002). Nessa revista, estão presentes práticas de dança, não em seus textos, pois no período estudado não se identificou nenhum texto sobre dança, mas nas fotografias e imagens que em meio a textos de temáticas diversas apresentavam-se. Porém são registros, no caso das fotografias, de fatos que aconteciam nas escolas mineiras e que pelo registro seria considerado algo de importância na dinâmica escolar. A autora analisa que: "As fotografias não expressam as danças, não mostram os movimentos, a música e a interpretação, mas expressam parte deste conjunto de informações através das formas corporais, dos figurinos, da apresentação de poses e cenas que compõem um ideário. As imagens fotográficas de práticas de dança selecionadas para as edições da Revista, podem ser tomadas como uma tentativa de incentivar o professorado a realizar esta prática com seus alunos" (CHAVES, 2002, p.101). Recomendo, também, o estudo de VAZ, Aline Choucair. A escola em tempos de festa: poder, cultura e práticas educativas no Estado Novo (1937-1945). 2006, 131 p. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.

Esse processo de consolidação da presença da arte e da educação física, especialmente por meio do desenho e da ginástica, foi tratado como um problema, a exemplo da consideração das mesmas como “letra morta”, apresentada por um diretor da Escola Normal Modelo no Estado de Minas Gerais em 1916, que diz:

De fato, as sciencias naturaes, o desenho, a Gymnastica, estão condicionados a figurar como letra morta nos nossos programmas primários: pois que as nossas melhores professoras já não se julgam com a mesma responsabilidade para essas disciplinas, relegando-as para as horas de sobra, antes para as horas do seu exgotamento nas outras (Secretaria do Interior. Relatório do Secretário ao Presidente do Estado, 1916, p.638 apud VAGO, 2002, p.318).

De fato, arte e educação física entraram na escola nesse percurso de significações que ganham lugar na cultura escolar, e mantiveram-se ao longo do século XX com novos confrontos e novas significações que as trazem aos dias de hoje. Não foram “letra morta” no processo de consolidação dos conhecimentos escolares.

Barbosa (1978, p.11) chama a atenção para o fato de que:

Através de observações feitas durante os anos de 1974 e 1975 em aulas de Educação Artística em escolas públicas de 1° gra u em São Paulo, constatamos que ainda persistem no ensino da Arte, métodos e conteúdos que se originam no século XIX e que se afirmaram educacionalmente nos inícios do século XX.

Estudos sobre a educação física na escola indicam que não é muito difícil identificar a presença de aulas de educação física em que corridas ao redor do pátio ou da quadra, seguidas de exercícios, ainda se fazem presentes.

Considero que o enraizamento da educação física e da arte consolidou-se entre o final do século XIX e XX, e isso exigiu dessas áreas um processo de profissionalização e definição de seus conhecimentos a serem tratados no espaço escolar. Novos modelos escolares, novas revisões foram feitas por essas áreas

para se manterem enraizadas na cultura escolar, que passa por mudanças contínuas.

Essa trajetória permite caminhar no século XX olhando para a efetivação do sistema de ensino superior brasileiro e sua formação para atuação nas escolas de educação básica, bem como destacar a arte e a educação física como integrantes da cultura escolar brasileira no século XXI.