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A memória faz parte do homem desde a sua criação. Os povos antigos registravam sua vida cotidiana através de pinturas, imagens em cavernas, por exemplo (LEROI-GOURHAN, 2001). Para os gregos, a memória era divinizada através de Deusa Minemosine, inspiradora do poeta (aedo), que “cria, repete, recita, compõem palavras em ritmo” (SMOLKA, 2000, p. 172) e, dessa forma, torna-se mestre da Verdade (DETIENNE, 1988).

Na Grécia arcaica havia uma nítida diferença entre a noção de memória (mneme) e a noção de recordação (anamnesis). Esta última era caracterizada como um instrumento de aproximação com o passado, sendo necessária para os homens mortais que não possuíam mais a vivência verdadeira da memória. Assim, é importante destacar que a memória para os gregos encerrava todos os elementos que constituíam a realidade da vida grupal humana e todos os outros que antecederam o próprio homem, e que assinalaram o surgimento do mundo e das primeiras formas de vida.

Para os gregos não havia necessidade de recordar, pois a recordação só existia para os mortais que esqueciam sua origem. Brito (1989, p. 8) destaca que, sendo a memória depositária do saber, o esquecimento se igualaria a morte. Por outro lado, a rememoração é uma conquista só alcançada como disciplina em busca da imortalidade. Desse modo, o resgate da memória significaria o meio pelo qual se garantiria a continuidade do tempo e a possibilidade de vida sem morte. Com o tempo, esta concepção da memória “que se baseia nas efemeridades do tempo humano e na crença do retorno à vida terrestre” vai se transformando (BRITO, 1989, p. 10).

O conceito de memória, desde o início do conhecimento humano, é compreendido como forma de retenção de informações do passado, adquirida pela razão ou percepção da realidade associada à noção de espaço e tempo. Já na antiguidade, com os gregos surgem as primeiras referências sobre memória, que serviram de subsídios para as reflexões sobre a memória individual. As primeiras incursões sobre este tema surgem, portanto, a partir dos filósofos gregos, destacando-se Platão e Aristóteles, precursores da ideia de memória, no contexto filosófico e científico.

Candau (2005, p. 39) faz uma síntese sobre a percepção da memória no período clássico dos filósofos gregos por meio de quatro correntes de pensamento: a primeira é representada por Homero e Hesíodo, que abrange as narrativas míticas (Odisséia, Ilíada, Teogonia) marcadas pela recitação dos versos18 dos aedos (poetas) conduzidos pela deusa Mnemosine. Estavam voltadas para o passado, para o tempo da origem dos deuses e do mundo dos homens buscando reafirmar o passado heroico do homem e a permanência dos deuses como mediadores da vida humana. Dessa forma, faz com que o poeta esqueça a miséria e angústia do presente, fazendo reviver no cantar os feitos dos heróis e dos deuses.

Na segunda corrente, Mnemosine “já não é mais aquela que canta a arché, o passado primordial, a fonte, a origem, mas sim o poder de que dependem os destinos das almas depois da morte” (CANDAU, 2005, p. 40). A memória aqui já não está mais no canto dos aedos, mas nos documentos com datas e origem; o tempo está como o ser definido. A memória muda de função, ela não é mais cosmológica, mas sim escatológica, pois traz os meios para alcançar o fim do tempo. Através da morte o homem esquece sua vida passada e recomeça uma nova vida:

Em contrapartida, a alma que se transforma no lago de mnemosine relembra-se, desde o princípio, de toda a série de suas vidas anteriores e evade-se do triste ciclo do devir e das dores, do ciclo de repetição sem memória. Ela renasce então ao nível dos deuses, escapa ao destino e emancipa-se da condição mortal

(CANDAU, 2005, p. 40).

Nesta perspectiva, o homem, anteriormente cantado nos versos do poeta, torna-se imortalizado e se aproxima da imagem dos deuses. A terceira corrente de pensamento, apresentada por Candau (2005, p. 40-41), está representada pelo platonismo, que entende a memória como instrumento de libertação do homem em relação ao tempo. A memória torna-se sinônimo de conhecimento; significa que o Homem relembra um saber presente na alma e que foi esquecido quando bebeu na fonte de Lethe (esquecimento). Dessa forma, a memória associa- se à verdade, ao aprender, ao mundo das ideias: “a memória aparece de novo como meio de atingir a perfeição da existência real que está fora do tempo humano” (CANDAU, 2005, p. 41).

A última corrente de pensamento é representada por Aristóteles, na qual a memória já “não liberta o tempo, ela vai permitir a sua percepção, pois não abre mais a via da imortalidade, ela permite atingir o ser verdadeiro” (CANDAU, 2005, p. 41). Em Aristóteles, as opiniões desempenham um papel de mediação para a memória, ou seja, o que se lembra não será a

18 Esta recitação sendo uma mnemotécnica que era marcada pela repetição com o objetivo de fixar e transmitir o

repertório do conhecimento passado, visando reforçar o conteúdo das narrativas que consistiam na origem do mundo; gênese dos deuses e nascimento da humanidade.

imagem fidedigna do vivido. Isto significa, segundo Candau (2005, p. 41-42), que as percepções armazenadas podem apresentar variações com as sensações originais, o relembrar não garante o acesso à perfeição. Esta concepção se aproxima das abordagens mais recentes sobre a memória, às quais concebem este fenômeno como a reprodução de uma imagem passada que pode ser evocada ou reconstruída a partir das representações do presente.

Partindo do esquema de sintetização do pensamento grego sobre memória proposto por Candau, enfatizamos as duas últimas correntes, a partir dos pensamentos de Platão e Aristóteles, pois ambos serão fundamentais para as reflexões sobre memória nos períodos posteriores do pensamento filosófico, contribuindo, assim, para o surgimento de teorias científicas que abordam este tema nas diversas áreas do conhecimento.

Platão, nos sec. V e IV a.C. (s/d) começa a se questionar sobre a prevalência da memória viva das pessoas que compartilhavam a tradição através dos nomoi (normas, leis) e do ethe (práticas, hábitos, costumes, sentimentos), que persistem pela transmissão oral e pelo surgimento da escrita associados ao conhecimento e à psique, como espírito pensante (HAVELOCK,1996, p. 213), começando um processo de ruptura em relação à memória ligada à oralidade. Para aquele filósofo a memória seria associada ao conhecimento, pois, segundo ele, “a atração da mímesis19 era estranha ao pensar” (SMOLKA, 2000, p. 172). Neste ponto começa a se perceber um afastamento em relação à figura do Aedo, do poeta como sendo aquele que propagava a memória e divinizava a deusa Mnemosine. Dessa forma, Platão (Idem) argumenta que “o filosofo é amante da verdade e da sabedoria, enquanto que o poeta é amante do espetáculo e da opinião”.

Na obra Teeteto20, Platão usa a metáfora do bloco de cera para falar da memória e explicar o seu entendimento sobre a mesma. Segundo ele, há um bloco de cera na alma de cada indivíduo, o qual é um presente de mnemosine, sendo que tais blocos apresentam qualidades diferentes para cada indivíduo. A cera não é nem tão fluida quanto a água – que não permite reter as impressões – e nem tão dura quanto o ferro, que não permita marcar, guardar as impressões. Nesta alegoria, o bloco de cera seria a memória, que ao mesmo tempo guarda as impressões do tempo presente tornando-se passado, e as apaga pelo esquecimento.

19 A mimesis (imitação), para Platão, possuía um sentido metafísico de lógica, em decorrência do distanciamento

entre o plano sensível e o inteligível, ao contrário dos pitagóricos, para quem a mimesis possuía um caráter de imanência, ou seja, o modelo e cópia estão no plano concreto, são duas faces, uma interna (apreendida racionalmente) e a outra externa (apreendida pelos sentidos) (PLATÃO, 1987, p. XVIII).

20 O tema da memória aparece em Platão em três obras: no Teeteto, está associada ao conhecimento; em Fredo,

ele relaciona à fala, à retórica, à arte de falar a verdade, a qual vai depender do conhecimento; e em Fedon, onde expõe a teoria das ideias, em que a memória passa a ser concebida em relação à realidade.

Cada indivíduo irá trazer, neste bloco de cera, a marca do que pretende recordar, sejam sensações ou pensamentos; e vamos lembrar enquanto estas marcas ou imagens estiverem presentes; aquilo que não foi gravado ou que foi apagado, é esquecido e, portanto, desconhecido. Neste diálogo com o filósofo, busco demonstrar a conjunção entre a problemática da memória e do esquecimento, que são duas categorias opostas, mas que convivem em um mesmo corpo.

Em suas reflexões, Platão (1987) relaciona a memória ao conhecimento fazendo a diferenciação entre memória (mnemesis), que representava os elementos que constituíam a realidade da vida grupal humana; e a recordação (anamenese), caracterizada como instrumento de aproximação com o passado, pertencente aos homens mortais, que não eram capazes de vivenciar a memória em sua concretude. “Com Platão a teoria da memória é fundamentalmente uma teoria do Conhecimento” (SMOLKA, 2000, p. 170).

É fundamental destacar que, sendo a memória depositária do saber, o esquecimento se igualaria à morte. Por outro lado, a rememoração é uma conquista só alcançada com a disciplina em busca da imortalidade. Deste modo, o resgate da memória significaria o meio pelo qual se garantiria a continuidade do tempo e a possibilidade de vida sem morte. Com o tempo, esta concepção da memória baseada na percepção das efemeridades do tempo humano e na crença do retorno à vida terrestre vai se transformando. Agora a perda da memória, ou seja, o esquecimento, não se associa mais à ideia de morte, mais sim à de vida. Isto porque nesta concepção vislumbra-se o retorno à vida terrestre pela reencarnação, o que para os gregos, à época, significava o esquecimento de parte da sua vida passada.

Este novo conceito de memória passa a fazer parte da luta do ser humano para escapar da sua fragilidade em relação ao tempo, buscando a imortalidade. Sendo assim, tudo o que é individual integra-se ao coletivo, o que nos reporta à teoria de Halbwachs, a ser vista mais adiante. Brito (1989, p. 10) explica que Platão retoma a ideia de rememoração como exercício necessário para a existência humana. Para este filósofo, o ato de rememorar é uma prática de aprendizagem essencial ao homem, mas em sua teoria a rememoração passa a ter como objeto a recuperação das verdades presentes na estrutura do real, ao invés da cosmologia ou da escatologia do início do pensamento grego clássico. Desta forma, ressalta a autora:

Assiste-se, pois, a uma transposição da mítica – significação e dignificação do individual mediante a inspiração em experiências concretas e abstratas vivenciadas pelo coletivo – para a busca de ruptura com o tempo humano, no sentido de alcançar as ideias primordiais que povoam a camada extraterrestre das quais o homem se esquece durante sua vivência temporal (BRITO, 1989, p. 12).

Outro filósofo grego importante para o estudo da memória foi Aristóteles, já que fazia a distinção entre a memória propriamente dita (mneme), como faculdade de conservar o passado, e a reminiscência (mamnesis), faculdade de invocar voluntariamente o passado. Sua teoria do conhecimento traz uma nova contribuição ao estudo da memória (SMOLKA, 2000, p. 176), pois destacou a importância das impressões sensoriais como fonte do conhecimento. Para ele, a memória não consiste somente em conservar os traços do passado, mas também os toma como objetos (MOREL, 2009), e destaca a importância das impressões sensoriais como fonte do conhecimento.

Estas percepções trazidas pelos sentidos são tratadas pela imaginação e suas imagens tornam-se material para a faculdade intelectual (SMOLKA, 2000). Dessa forma, para Aristóteles (1986, p. 2916), “[...] a memória não é nem sensação nem julgamento, mas um estado ou qualidade (afeição, afeto) de um deles quando o tempo já passou [...]”. Isso mostra que toda memória implica em passagem de tempo. A memória é uma capacidade de as criaturas vivas conscientes do tempo em poder lembrar, afirma este filosofo. Além disso, para que exista a memória há a necessidade do afeto que, para Aristóteles, será o principal elemento responsável pela lembrança do indivíduo:

A memória pertence àquela parte da alma à qual a imaginação também pertence. Todas as coisas que são imagináveis são essencialmente objetos da memória, e aquelas que necessariamente envolvem a imaginação são objetos da memória apenas incidentalmente (ARISTÓTELES, 1986, p. 293).

Neste sentido, uma questão foi levantada por Aristóteles quanto ao ato de lembrar: Como se pode lembrar alguma coisa que não está presente, e não é fato? Segundo o filósofo, para isso deve-se considerar o afeto, que é produzido na alma pela sensação, e que irá contribuir para o estado duradouro o qual chamamos memória, como um tipo de figura/retrato: porque o estímulo imprime uma espécie de semelhança do percepto, sendo que:

A recordação, ela não é nem a recuperação nem aquisição da memória; porque quando se aprende ou recebe uma impressão sensória, não se recupera qualquer memória (por que nenhuma aconteceu antes), nem se adquire pela primeira vez; é somente quando o estado ou afeto foi introduzido que existe memória (ARISTÓTELES, 1986, p. 293).

Pode-se destacar três aspectos relevantes apontados por Aristóteles (Idem) em relação à memória, quais sejam: as sensações e o afeto, a imaginação e o tempo. Esta concepção nos reporta a uma categoria que se apresenta na abordagem atual sobre memória, que tem o homem com o agente de suas próprias representações, a partir de suas percepções e sensações.

Aristóteles, em seu tratado “Da memória a reminiscência”, trata da conservação das sensações do passado e a atualização da lembrança (MOREL, 2009, p. 12), elaborando a primeira análise explicativa e sistemática da memória (Idem). No entanto, ele não dá atenção ao uso consciente das lembranças pessoais no domínio prático; e também não compartilha com a ideia de Platão sobre o pós-morte. Para Aristóteles, “é absurdo dizer que alguém é feliz não por que o é atualmente, mas porque o foi anteriormente” (MOREL, 2009, p. 13).

Podemos afirmar que, a partir de Aristóteles, consolida-se uma forma mais sistemática de perceber a memória, visto que, para ele todas as coisas são objetos da memória; e esta é produzida pela imagem que pertence à faculdade sensitiva primária do ser. Afirma, ainda, que o recordar pressupõe uma cadeia de sucessões continua de lembranças. Sendo assim, “quando um homem deseja recordar algo, este será o método que deve seguir; ele intentará encontrar um ponto de partida para um movimento ou impulso que o conduza ao que busca” (ARISTOTELES, 1962, p. 49).

Quanto à reflexão em relação ao tempo, Aristóteles (Idem) atribui a ele as formas distintas de recordar e explica que há uma recordação atual associada à percepção do recordar; e a característica da recordação é justamente a consciência do ato de recordar. Nesta argumentação, vemos uma aproximação à discussão de Bergson (1994) sobre memória hábito e memória recordação, a ser explanada no próximo tópico. Desta forma, estabelece uma diferenciação entre a memória vista por ele como a lembrança e o recordar:

O recordar difere da memória, não somente no aspecto do tempo, mas também por que, enquanto muitos animais participam da memória, pode-se dizer que nenhum dos animais conhecidos, exceto o homem possui a capacidade de recordar. Por esta razão o recordar é como uma espécie de silogismo ou inferência; pois, quando um homem recorda infere ou deduz que ele já viu ou experimentou algo semelhante, sendo o processo de recordar uma espécie de busca. Este poder ou capacidade só pode corresponder naturalmente a animais que possuem a faculdade de deliberação, já que também a deliberação é uma espécie de inferência (ARISTOTELES, 1962, p. 52).

Podemos perceber que as preocupações que cercam a memória passam a ter como objeto não mais o ser absoluto, a essência primitiva, mas sim a necessidade de superação do tempo humano para alcançar o tempo celeste. No entanto, há um fio condutor que relaciona as diferentes concepções de memória que é a relação com o passado, ou seja, o ato de recordar sempre estará relacionado ao tempo passado.

O pensamento de Aristóteles contribui para uma mudança em relação à poesia, para a qual Platão trazia algumas restrições, pois na sua concepção a poesia pode instruir, visto que o poeta se incumbe de narrar o que poderá acontecer. Sendo assim, estabelece uma diferença entre a poesia e a prosa, afirmando que:

Não é oficio de o poeta narrar o que aconteceu; e sim, o de representar o que poderia acontecer [...]. Não diferem o historiador e o poeta na forma como escrevem, por versos ou prosa, difere, sim, que um diz às coisas que sucederam, e o outro, as que poderiam suceder (ARISTÓTELES, Poéticas, IX, p. 50).

Neste trecho já se percebe uma referência à história, termo que inexistia nos escritos gregos anteriores a Heródoto, considerado o pai desta disciplina. Isso significa que não se contariam mais os feitos heroicos como os Aedos, mas sim, narrariam os resultados de suas investigações, procurando pela causa dos acontecimentos. Neste momento, vemos a memória transformando-se em história e a separação entre o ato de lembrar e os relatos dos acontecimentos passados que, neste caso, passam a ser escritos como forma de luta contra o esquecimento. Este autor retorna e transforma a tarefa do poeta arcaico: contar os acontecimentos passados, conservar a memória, resgatar o passado, lutar contra o esquecimento. Neste sentido, Gagnebin (1997) afirma:

Nas primeiras linhas das histórias do nosso primeiro historiador podemos ler, ao mesmo tempo, esta imbricação e está separação da palavra mítica e do discurso racional emergente: Heródoto de Halicarnasus apresenta aqui os resultados da sua investigação, para que a memória dos acontecimentos não se apague entre os homens com o passar do tempo, e para que os feitos admiráveis dos homens e dos bárbaros não caiam no esquecimento (GAGNEBIN, 1997, p. 17).

Por outro lado, Tucídides – discípulo de Heródoto – opõe-se a ele quando afirma que não se pode acreditar na memória para manter a fidelidade do relato sobre a realidade narrada. Para este filósofo, a memória não assegura nenhuma autenticidade; ela é frágil, enganadora; ela seleciona, interpreta, reconstrói. Na sua visão, as testemunhas de cada fato apresentam versões que variam segundo a sua simpatia, com relação a um ou outro lado, e segundo a sua memória (TUCÍDIDES, I, p. 22-23; DETIENE, 1998, p.105). Nestes argumentos, percebe-se uma das características da memória, que é a seletividade das lembranças.

Tucídides também reivindicava a escrita como meio de fixação dos acontecimentos, fazendo da imutabilidade do escrito uma garantia de fidelidade, inaugurando, dessa forma, uma política da memória e delimitando os domínios de um novo saber histórico. (DETIENNE, 1988; GAGNEBIN, 1997). Aqui, temos o início da história como ciência, que investiga os fatos passados. Em determinado momento da história, o termo Memória Coletiva foi usado para os povos sem escrita, associado às tradições e mantido pela transmissão oral, como afirma Gondar (2008):

Nas sociedades sem escrita a memória coletiva surge como um cantar mítico da tradição que obedecia a três interesses dominantes e o saber técnico: a idade coletiva do grupo fundada nos mitos de origem; as genealogias que expressam o prestigio dos grupos dominantes e o saber técnicos, transmitido por fórmulas práticas associadas à magia religiosa (GONDAR, 2008, p. 2).

Com o surgimento da escrita há uma mudança nesse contexto, pois este processo permite as inscrições em pedra e em mármore nos diversos monumentos (funerários, religiosos e comemorativos). Sendo assim:

Nos Templos, cemitérios, praças e avenidas das cidades; ao longo das estradas até o mais profundo da montanha [...], as inscrições acumulavam-se e obrigavam o mundo greco-romano a um esforço extraordinário de comemoração e de perpetuação da Lembrança (LE GOFF, 1996, p. 432).

Para Leroi-Gourham (2001), a evolução da memória estaria ligada ao aparecimento e à difusão da escrita. Ela dependia essencialmente da evolução social e do desenvolvimento urbano. Com a escrita há uma sobrecarga de memória e, ao mesmo tempo, um poder maior de perpetuação da lembrança. Somado às inscrições públicas no monumento, temos os documentos inscritos, que conferem um suporte material à memória, ampliando-a e estabelecendo a sua transformação, convertendo-se na Memória Social.

Para sistematizar a evolução do pensamento sobre a Memória originário da Grécia antiga até o aparecimento da escrita, apresentamos um esquema comparativo (Figura 1), elaborado com base em Smolka (2000, p. 175), que busca demonstrar como a memória se organizou nesse período: memória enquanto Logos, conhecimento da verdade; e como imitação que mascara a verdade e alimenta as paixões e suas formas de transmissão mnemotécnica, caracterizada pela memória viva, pela arte de lembrar; e a narrativa contrapondo à escrita, que configura a “morte da memória”, o esquecimento e a exterioridade da memória.

Figura 1 - Esquema comparativo da memória do período grego a partir do surgimento da escrita.

Fonte: Smolka (2000, p.175).