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3 OS QUADROS E MARCOS DA MEMÓRIA SOCIAL: RECONSTRUINDO

3.3 NOVAS ABORDAGENS SOBRE A MEMÓRIA SOCIAL

3.3.2 Memória, espaço e interações sociais

A obra Memória Coletiva visa contribuir para a compreensão do conceito da memória coletiva e do sentimento de pertinência a um grupo calcado nas relações sociais constituídas em torno de um passado comum e na memória compartilhada no campo histórico e simbólico. Dessa forma, as memórias individuais congregam a memória coletiva e histórica e incorporam elementos construídos pelo indivíduo e pelo seu grupo social.

A memória é viva e sempre carregada por grupos vivos e neste sentido está em permanente evolução aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações suscetível de longa latência e de repentinas revitalizações” (NORA, 1993, p. 9).

A construção da memória decorre de um processo que se desenvolve ao longo do tempo nas interações do indivíduo com outros indivíduos nos espaços sociais durante sua trajetória de vida e convivência social (VELHO, 2004; LINS; BARROS, 1997). A lembrança é o resultado dessas interações no âmbito da família, com o grupo e entre grupos nos espaços de convivência: em casa, na rua, no bairro, no trabalho, entre outros.

Os lugares são referências importantes na formação das memórias individuais e coletivas. As memórias dos grupos também se referenciam nos espaços em que habitam e nas relações que constroem com estes espaços onde se seguem as mudanças ali empreendidas, que acarretam mudanças importantes na vida e na memória dos grupos. Segundo Peralta (2007, p. 6), os argumentos de Halbwachs atestam que todos os grupos sociais desenvolvem uma memória indissociável do sentimento de identidade. Portanto, as memórias subsistem por fazerem fazem parte de um conjunto de valores e acepções construídas pelo grupo.

Desta forma, pretende-se mostrar que o sentido de memória social não está ligado apenas ao passado remoto ou acontecimentos e fatos que não existem mais, mas surge na cotidianidade dos grupos, sendo construído ao longo do contexto histórico e social do indivíduo. Nesta cotidianidade, o Homem assimila as habilidades necessárias para a sua aceitação no grupo, e neste processo constrói suas representações sociais que sustentam as “Tradições Inventadas” (HOBSBAWN, 1997) pelo grupo, que são necessárias para a sua aceitação.

A memória coletiva insiste em assegurar a permanência do tempo e a homogeneidade da vida, com o intuito de mostrar que o passado permanece e que nada tem mudado dentro do grupo e, junto com o passado, a identidade desse grupo também permanece, assim como os seus projetos.

Para Halbwachs (1990), os grupos têm a necessidade de reconstruir permanentemente as suas conversações, contatos, rememorações, efemeridades, usos e costumes, conservação de seus objetos, pertencimento e permanência nos lugares onde têm desenvolvido a sua vida, porque a memória é a única garantia de que o grupo prossegue sendo o mesmo, em meio a um constante movimento.

A cidade é um tema que há algum tempo desperta o interesse de pesquisa nas ciências sociais. Desde o surgimento da Escola de Chicago, na década de 1930, quando se percebeu que o espaço urbano podia ser uma rica fonte para estudos etnográficos, várias pesquisas foram realizadas com o intuito de interpretar a relação do ser humano com o meio urbano. Esta Escola representou uma primeira e importante tentativa de estudo dos centros urbanos, combinando conceitos teóricos e pesquisa de campo, com foco em problemas cotidianos em ambientes urbanos.

O modo de vida urbano passa a ser o objeto de estudo da antropologia na cidade, onde coexistem diferentes estilos de vida. Nesta perspectiva, With (1987) destaca que a característica mais significativa do modo de vida da cidade: “é a sua concentração em agregados gigantescos em torno dos quais está aglomerado um número menor de centros de onde irradiam as ideias e as práticas que chamamos de civilização” (WITH, 1987, p. 90).

O conceito de sociabilidade criado por Georg Simmel partiu da seguinte reflexão: Como a sociedade é possível? Ou seja, buscando compreender a sociedade moderna não como algo dado, mas constantemente construído, reconstruído e dissolvido pelos indivíduos através de interações recíprocas (FRÚGOLI JR., 2007).

A cidade, com seus bairros, ruas, praças, igrejas, mercados, feiras, enfim, espaços de sociabilidades tecidos por complexidades e singularidades expressas na memória das pessoas que deles se apropriam e a ressignificação do vivido. Esta relação de significados leva a Antropologia a buscar a interpretação das ações coletivas como forma de “estudo e pesquisa mais detalhada sobre o fenômeno da memória coletiva e da estética urbana, numa perspectiva que alia as análises macro e microssociológica dos fenômenos culturais na e da cidade (ROCHA; ECKERT, 1998, p. 12).

Os estudos antropológicos de comunidades urbanas contribuem, de fato, para o entendimento dos modos de vida em grandes metrópoles, trazendo à tona questões do dia a dia dos sujeitos pesquisados, que na maioria das vezes passam despercebidos pelo “olhar Blasé” (SIMMEL, 2005) presente no cotidiano das grandes metrópoles. Para este autor:

A sociabilidade seria uma forma lúdica, arquetípica de toda socialização humana, sem qualquer propósito, interesses e ou objetivo que a interação em si mesma, vivida em espécies de jogos, nos quais uma das regras implícitas seria atuar como se todos fossem iguais (FRÚGOLI Jr., 2007, p. 9).

Simmel (2006) destaca que nas relações de convívio com o outro e contra o outro há várias formas de interações sociais, algumas, inclusive, podem ser conflituosas.

Todas as formas de interação e sociação entre seres humanos com desejo de superar o outro, a troca, a formação de partidos, o desejo de ganhar, as chances de encontro e separação casuais, a mudança entre oposição e cooperação, o engodo e a revanche – tudo isso, na seriedade da realidade, está imbuído de conteúdos intencionais (SIMMEL, 2006, p. 72).

A articulação entre a sociabilidade e a memória social acontece no encontro nos diversos espaços, quando os grupos se articulam por interesses diversos, sendo a linguagem uma das formas dessa articulação da memória inter e intragrupal. Como afirma Bosi (1994), “a linguagem é o instrumento socializador da memória”, pois reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural vivências tão diversas, como o sonho, as lembranças e as experiências recentes. O que possibilita o surgimento da memória social nas cidades é justamente o fato de os grupos estabelecerem relações sociais que podem ser de dominação, cooperação e conflito, podendo variar no tempo e no espaço.

Com o desenvolvimento das grandes metrópoles os grupos sociais voltaram-se para problemas relacionados à preservação e valorização da cultura, da identidade e da memória social. O estudo da teoria da memória social, a partir do século XX, torna-se crucial para o entendimento desses grupos sociais. Neste sentido, no século XX, há a necessidade dos estudos sobre a questão da teoria da memória como instrumento de preservação patrimonial de grupos sociais ameaçados de serem suprimidos e/ou esquecidos pela história Linear, homogênea e oficial, que desencadeia com o sentimento de seu direito à memória como possibilidade de inspiração para o desenvolvimento da cidadania. Neste sentido, temos os seguintes exemplos: memória dos velhos, de E. Bosi; memória dos excluídos; memória de mulheres; os pontos de memórias, dentre outros. Os espaços públicos urbanos têm um papel fundamental na ideia de sociabilidade, pois neles percebem-se interações entre diversos atores que ali se encontram e se relacionam. Essas interações que se estabelecem são pautadas tanto por interesses comuns quanto por conflitos, o importante é que ambos estimulam a construção de memórias individuais e coletivas no bairro. Alguns espaços públicos são produzidos inclusive a partir dessa possibilidade de interação, como os parques, as praças, as ruas e calçadas no ambiente urbano.

As feiras livres localizadas nos bairros/cidades, por exemplo, são espaços de encontro e de trocas, de confluência entre o rural e urbano nas grandes metrópoles e pequenas localidades, e se constituem como espaços privilegiados onde são vivenciados, exercitados e atualizados os elementos do modo de ser rural/urbano, representados pelos modos de falar peculiares, nos hábitos tradicionais de consumo, mas também nos novos hábitos, vistos nos produtos que são comercializados e nas estratégias criadas para sustentar as novas formas de relacionamento que se estabelecem nesses espaços.

A conformação desses espaços públicos se dá também pelas interfaces, dos ajuntamentos representados pela ocasião social, na qual estão presentes as técnicas de comunicação, encaixes, envolvimentos e engajamentos (GOFFMAN, 2010). Essas interações criam situações que são, na verdade, os próprios espaços públicos, cujas situações dizem respeito às performances dos atores sociais nos enquadramentos ou não aos seus pretensos papéis (GOFFMAN, 2002).

Entendemos que os mercados e feiras não são simples espaços de comércio, mas locais caracterizados por grande sociabilidade (SIMMEL, 2005), que ocorre a partir de várias formas de interação social que produzem diversas possibilidades de referências para a construção da memória social dos atores que fazem parte de seu cotidiano.

As feiras e mercados também se constituem como lugar de memória, além de lugar de resistências e disputas de interesses pela sua sobrevivência diante de uma economia que cada vez mais estimula o consumo de todos os tipos de produtos, principalmente aqueles mais globalizados, além das compras em cadeias de lojas de grandes grupos econômicos, deixando de lado as práticas de compras tradicionais que promovem a interface e a troca de interesses e de amizade entre os feirantes e seus fregueses. As interações que ocorrem nestes locais tornam esses espaços catalizadores de sentidos para as experiências de vida que ali se configuram. Estas vivências vêm a ser os alicerces para a construção de memórias diversas relativas a este contexto.

As interações que se estabelecem nas feiras e mercados públicos criam formas de relacionamento e redes de sociabilidade entre os feirantes e seus fregueses, tornando estes lugares antropológicos (AUGÉ, 2005), ou seja, espaços catalizadores de sentidos para as experiências ali vivenciadas. Estas vivências vão ser os alicerces para a construção de memórias diversas relativas a este contexto.

Com a globalização e, consequentemente, o crescimento de grandes cadeias comércio a nível mundial e até mesmo a facilidade de comprar sem sair de casa vem contribuindo para que cada vez mais as pessoas mudem seus hábitos de fazer compras, de andar pelas feiras e mercados praticando o espaço, como argumenta De Certeau (1994), na modernidade, torna-se uma pratica cada vez mais escassa. No entanto, ainda existem aqueles que têm o hábito de caminhar por estes espaços, encontrando amigos conversando com os feirantes, buscando o produto que encomendou e que foi pedido exclusivamente para ele. Estes tipos de prática do e no espaço da feira, que a torna um espaço social, um lugar de Memória (NORA, 1993) e de Sociabilidade (SIMMELL,2005). Ao tratar sobre os dois temas, estes dois autores referem-se às transformações sociais advindas da modernidade.

A seguir, faremos uma contextualização teórica e histórica sobre as feiras como espaços de sociabilidade e de produção de saberes e significados. Neste sentido, apresentaremos um breve relato mostrando sua história, a partir dos trabalhos de Braudel (1996), Le Goff (1996) e Lefrevbre (1991), que mostram os mercados e feiras como um importantes espaços de troca não apenas econômica, mas também social e cultural desde a Idade Antiga, passando por alguns outros autores, associando-os ao desenvolvimento das cidades principalmente na Idade Média na Europa, inclusive em Portugal (RAU,1980), para entendermos como estes espaços se situam no contexto da sociedade atual, especialmente as feiras estudadas em Portugal. Partimos deste ponto para a abordagem das feiras estudadas, caracterizando-as e analisando-as a partir de sua inserção no conceito de cultura e patrimônio imaterial.