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3 OS QUADROS E MARCOS DA MEMÓRIA SOCIAL: RECONSTRUINDO

3.3 NOVAS ABORDAGENS SOBRE A MEMÓRIA SOCIAL

3.3.3 Memória e vontade de poder

Pelo exposto, pode-se perceber que a memória surge de diferentes formas e em diversos lugares como afirmação do poder hegemônico dos políticos, dos diversos atores que fazem parte do contextos memoriais presentes nas diversas sociedades ao longo do tempo, sejam aqueles que exercem o poder, agência da memória no sentido de impô-la como uma memória de nação que imprime um passado que se quer oficial, sejam aqueles que constroem memória do cotidiano em face do Homem à margem da sociedade e da História considerada oficial, a história e memória do homem ordinário, segundo De Certeau (1994).

Esta construção/imposição de memórias é frequente, principalmente em relação aos patrimônios material/histórico, que retratam as memórias a partir do ponto de vista daqueles que procuram explicá-la, reconstruí-la, salvaguardá-la, concluindo-se aí desde o pesquisador até o

gestor da memória, que a partir de seus projetos buscam a coleta de relatos, de imagens, documentos e tentam contar a história local através de exposições, publicações que “materializam” e cristalizam a memória do lugar em Museus locais, casas de memória, museus comunitários, entre outros.

Mas estas memórias também surgem nos fazeres dos sujeitos comuns a partir das suas práticas sociais diárias, que retratam o ethos dos grupos, e que vão se atualizando ao longo da história. É esta memória que representa a memória coletiva, pois ela está viva e se refaz, se reconstrói por ela mesma no cotidiano dos grupos. Esta memória se constitui pelos próprios atores sociais que agenciam a história do lugar a partir de ações realizadas de forma simples no seu cotidiano, por meio de conversas com os moradores mais velhos, realização de encontros dos moradores, festas, manifestações para reivindicações e nas simples conversas do cotidiano, este movimento espontâneo de busca da memória, que no âmbito da museologia Chagas (2008) denomina de Vontade de Memória.

Este conceito foi tomado de referência de Nietsche (2011), para quem a vontade de potência seria a própria essência de toda realidade, a luta das forças humanas, um impulso que reage e resiste no interior destas forças; uma multiplicidade de forças que se manifesta em diversas gradações em fenômenos sociais e políticos permeando a natureza do ser humano e o desejo de ser mais do que se é presentemente. Aplicado ao contexto da memória coletiva, este conceito define a manifestação ou o desejo de memória, a luta pelo poder e resistência dos grupos à margem da história, pelo registro de suas memórias subalternizadas, marcadas pelas lutas e conflitos para a afirmação de identidades de pertencimento a um lugar, um espaço social de memória dos grupos.

Com a ampliação da noção de patrimônio e da concepção de museus, as políticas públicas para essas áreas se multiplicaram, considerando-se os museus como parte do patrimônio e ambos sendo parte da memória social e coletiva. Diversas políticas direcionadas para cada uma dessas áreas começaram a ser definidas a partir do governo Lula (2003-2010), durante o qual foi dada grande ênfase às áreas de Memória, Patrimônio e Museus pelo Ministério da Cultura (MINC), sendo criadas estratégias de gestão voltadas para a valorização dos museus como agentes de desenvolvimento local e para a afirmação e valorização da memória social de diversos grupos até então não contemplados nas políticas governamentais de cultura e patrimônio.

Nesse período houve a reformulação da estrutura do Ministério da Cultura (MINC) com a criação do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), com órgão responsável pela proposição das políticas de museus e memória no país, bem como pelas ações direcionadas para a memória de comunidades e grupos diversos da sociedade civil.

Também foi lançada por este Ministério a Política Nacional de Museus em 2003, que teve como princípios norteadores:

O estabelecimento e consolidação de políticas públicas para o campo de patrimônio e museu; desenvolvimento de práticas e políticas educacionais orientadas pela diversidade cultural do povo brasileiro; valorização do patrimônio cultural sob a guarda dos museus; reconhecimento e garantia dos direitos de participação das comunidades, nos processos de registro e de definição do patrimônio a ser musealizado; incentivo a sustentabilidade e a preservação do patrimônio submetido ao processo de musealização e respeito ao patrimônio cultural das comunidades indígena e afrodescendente, de acordo com as suas especificidades (AMAZONAS, s/d, p. 4).

A concepção da Política Nacional de Museus foi dividida em quatro etapas: a primeira consistiu na elaboração do documento básico para a discussão com representantes de entidades e instituições museológicas, que se fundamenta na Carta de Rio Grande51 e no texto “Imaginação museal a serviço da cultura” 52; a segunda etapa foi de apresentação do documento básico para

debate público, com participação de gestores de museus, representantes de secretarias estaduais e municipais de cultura, professores universitários, representantes de organizações museológicas nacionais e internacionais; na terceira etapa houve uma ampla divulgação do documento por meio digital e reuniões presenciais, com participação de diversos atores sociais (professores, estudantes, pesquisadores, aposentados, jornalistas, técnicos e gestores culturais, líderes comunitários, educadores, artistas) que contribuíram para o aprimoramento da proposta inicial; e a quarta e última etapa foi de consolidação do documento por uma equipe formada por representantes do poder público e da sociedade civil (POLÍTICA NACIONAL DE MUSEUS, 2007).

A Política Nacional de Cultura, com ênfase no Patrimônio Material e Imaterial e nos Museus, contempla a memória social e coletiva a partir do novo sentido e do lugar que os museus ocupam na sociedade. Para Moutinho (2004), isso ocorre com a “Criação do Sistema Brasileiro de Museus (SBM), que tem como principal função articular os museus brasileiros sejam eles federais, estaduais, municipais ou privados; de qualquer porte e tipologia”.

A criação da Política Nacional de Museus e do Sistema Brasileiro de Museus propiciou a elaboração de uma legislação direcionada para o setor de Museus, que regulamentou várias diretrizes propostas por esta política, tais como: a obrigatoriedade de Plano Museológico do IPHAN como ferramenta para o planejamento estratégico dos museus; a criação de museus regionais e centros culturais; a criação de associações de amigos que aparecem como sistema e representantes

51 Documento resultante do 8º Fórum Estadual de Museus, realizado em Porto Alegre (RS), em maio de 2002, em

comemoração aos 30 anos da Mesa Redonda de Santiago do Chile, sob o tema Museus e Globalização.

da comunidade local. Outro ponto importante foi a instituição do Estatuto de Museus, que definiu o conceito de Museu para efeito desta lei53, além de estabelecer como princípios fundamentais: a promoção da cidadania, o cumprimento da função social; a universalidade de acesso, o respeito e a valorização à diversidade cultural, entre outras deliberações.

O programa de financiamento Memória e Cidadania propiciou um maior alcance de recursos para Museus em todo o Brasil a partir de 2004. Segundo o documento da Política Nacional de Museus, estas ações permitiram que diversos museus do país tivessem financiamento para suas ações. Isso possibilitou a democratização e descentralização do funcionamento público da cultura e o acesso de um maior número de pessoas aos espaços museais e a garantia da preservação da memória sob a guarda dos Museus.

Neste contexto de institucionalização e estruturação da memória no âmbito das políticas públicas, percebe-se dois movimentos: de um lado, um enquadramento da memória (POLLACK,1999); de outro, o quadro proposto pela instituição, no caso, o IBRAM, que propõem uma memória social baseada em um roteiro e em uma construção de identidade baseada nos parâmetros dos índices de violência das grandes cidades em um primeiro momento54. O objetivo deste programa foi de identificar, apoiar e fortalecer iniciativas de memória e museologia social pautadas na gestão participativa e no vínculo com a comunidade e seu território (IBRAM, 2017), ou seja, a intenção deste programa é buscar a memória dos grupos que se torna oficializada, por meio de ações fomentadas por recursos públicos. Por outro lado, esta mesma memória carrega o caráter de espontaneidade, pelo fato de que esses grupos, agora pontos de memória, já trabalhavam no sentido de valorização destas memórias através das ações agora estruturadas pelo programa.

No entanto, essas memórias vão se reificando e tornando-se representações do passado definidas por um determinado grupo, mas muitas vezes não representam a voz daquele grupo. Estas memórias ditas sociais acabam sendo definidas como as lembranças que representam a

53 Art. 1o: Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem fins lucrativos que conservam, investigam,

comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento. Parágrafo único Enquadrar-se-ão nesta Lei as instituições e os processos museológicos voltados para o trabalho com o patrimônio cultural e o território visando ao desenvolvimento cultural e socioeconômico e à participação das comunidades.

54 Os primeiros pontos de memória considerados pilotos resultaram da parceria entre os Programas Mais Cultura, do Ministério

da Cultura, e do Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania (PRONASCI), do Ministério da Justiça, tendo como referência a vulnerabilidade social dos bairros selecionados. Nos editais posteriores ampliaram-se os critérios buscndo referencias diversas de identidade.

história local, esquecendo-se que a memória coletiva/social se faz de versões do passado que estão em constante atualização.

O corpus desta pesquisa consiste, em primeiro lugar, nos relatos de história de vida de antigos moradores e feirantes do bairro da Terra Firme, em Belém-Pará. Naquele contexto socioespacial, foram definidos dois segmentos de narradores para as entrevistas. O primeiro segmento composto de feirantes foi representado por oito indivíduos que atuam no Hortomercado, e um indivíduo que atua na feira da Celso Malcher, totalizando nove interlocutores, conforme discriminado no próximo capítulo (Quadro 5). Para a coleta das narrativas de vida desses feirantes e moradores do bairro da Terra Firme, recorremos ao fundamento teórico da História Oral (THOMPSON, 1992, p. 17), na qual serão ouvidos os feirantes que atuam no local desde a fundação do Hortomercado e da Feira, em 1989, bem como os moradores do bairro que frequentam a feira mais de uma vez na semana. Partindo destes relatos, teremos a trajetória de vida desses feirantes, no seu trabalho na feira, identificando os marcos sociais da memória desses indivíduos.

Segundo Alberti (1990), a História Oral pode ser entendida:

Como um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica, etc) que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participam de, ou testemunharam acontecimentos, conjunturas, visões de mundo como forma de se aproximar do objeto de estudo[...]. Trata se de estudar acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos, etc., à luz de depoimentos de pessoas que deles participaram ou testemunharam (ALBERTI, 1990).

No desenvolvimento do trabalho de campo, logo de imediato percebi que não conseguiria realizar o que havia proposto inicialmente, de pesquisar a Feira, o Hortomercado e o Shopping Chão, pois cada um deles configurava um “núcleo” dentro do espaço da feira e do Bairro. Compreendi, ali, que a feira da Terra Firme, apesar de ter uma estrutura parecida com as demais feiras locais, era bem diferente, pois ela tinha uma organização sob uma lógica própria, uma “confusão” estabelecida que parecia não ser decifrável, mas que para os que viviam aquela cotidianidade parecia que eles se encaixavam exatamente ali.

Os atores sociais compreendiam a dinâmica daquele espaço público, rua, que ali funcionava como lugar de trajeto, de trânsito, de troca, de sociabilidades (SIMMEL, 1983), que se caracterizam por rituais de interações (GOFFMAN, 2011) com suas situações de conflitos, de cooperação, de disputas. Eles tinham suas táticas e astúcias (CERTEAU,1994) para lidar com aquele cotidiano, cujas práticas e interações estão inseridas na dinâmica social do bairro da Terra Firme.

4 - TERRA FIRME DE MEMÓRIAS E HISTÓRIAS: O BAIRRO, A RUA, A FEIRA