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3 OS QUADROS E MARCOS DA MEMÓRIA SOCIAL: RECONSTRUINDO

3.2 OS QUADROS SOCIAIS DA MEMÓRIA: CONSENSOS E

3.2.1 O quadro social da memória da família

O quadro familiar insere-se na categoria de grupo social primário, pois é o primeiro núcleo de pessoas onde se mantém contato na sociedade, que se apoia em uma propriedade física ou moral da qual se supõe inerente a este grupo, e que se define pela variação de pensamentos e condutas das famílias constituídas ao longo do tempo. Nesse quadro são identificados os fatos e as figuras que se configuram como pontos de referência, sendo que cada um deles resulta de um período da vida do grupo. Os instrumentos mnemotécnicos desses quadros são os sentimentos e os acontecimentos da família, independente da definição do período de tempo.

Halbwachs (1925) afirma que de qualquer forma que nos inserimos em uma família, seja por nascimento, matrimônio ou de outro modo, como afinidade, por exemplo, passamos a fazer parte deste grupo onde não são considerados apenas os sentimentos pessoais, mas também regras e costumes que não dependem de nós, pois já existiam muito antes de fixarmos o nosso lugar neste grupo. Cabe ressaltar que o entendimento de família na sociedade em que Halbwachs viveu era bem diferente do conceito atual, pois na Europa, à época, a família era nuclear e seguia os costumes rígidos impostos pela igreja ou mesmo pelo Estado.

Com a modernidade, tanto a formação quanto a organização e a estrutura da família começam a mudar. Este grupo agora é considerado não apenas a partir do matrimônio, pelo casamento formal, mas pelas relações que se estabelecem entre as pessoas que convivem em um mesmo lugar, sejam eles pai, mãe, filho, irmão, etc., pois o que vale é a relação entre estas pessoas que compartilham um mesmo lugar/casa e o sentimento que interliga estas pessoas, mesmo à distância. Nos tempos de globalização, onde as relações tornaram-se mais fluidas e com várias oportunidades de organização dos grupos sociais, sejam presenciais ou pelas redes sociais, na constituição da família o que importa não é apenas o laço consanguíneo, mas o sentimento em relação ao outro para o fortalecimento dos vínculos entre os indivíduos.

Outro ponto relevate nesta abordagem da família enquanto grupo e lugar de construção de memória, é que a proximidade física entre os indivíduos da família não é primordial, visto que hoje existem casais que vivem uma relação de matrimônio e família onde os cônjuges estão em lugares diferentes, principalmente por motivos profissionais, cuja proximidade é facilitada pelo acesso às redes sociais. O mesmo ocorre com filhos que moram distante dos pais e mantêm sua comunicação constante através de mensagens instantâneas, imagens em tempo real e por meio de vários recursos da tecnologia moderna.

Na atualidade, a estrutura familiar é bastante relativa, pois, ao mesmo tempo, existem famílias constituídas por duas mães ou dois pais, com filhos consanguíneos ou não, casais separados que compartilham a guarda de seus filhos, além do que a manutenção da família atualmente não é somente de responsabilidade do pai, mas também da mãe, que agora deixou de ser responsável apenas pela educação dos filhos e organização da casa, mas assumiu também a sua manutenção, assim como existem casos opostos, em que os homens assumem a responsabilidade da organização e manutenção da casa e educação dos filhos. Enfim, na família moderna há várias possibilidades de constituição dos quadros sociais de memória ou representações do passado familiar, visto que as relações neste grupo são diversificadas.

Estas relações familiares vão se diluir em um grupo em que as regras e costumes preexistentes definem o lugar de cada um, ou seja, o seu papel social. A família, como outros grupos sociais, possui uma memória própria, constituída pelas relações de parentesco, por imagens, acontecimentos e recordações, no entanto, a coesão e solidariedade para a evocação e compartilhamento das lembranças são facilitadas pela duração das relações sociais deste grupo, pois quando os seus membros vão se afastando em caso de morte ou se um membro muda de cidade, mesmo assim o contato ainda continua, sobretudo na sociedade atual, onde a comunicação é viabilizada pelas redes sociais, como já mencionado anteriormente.

A memória familiar é uma imagem e uma noção em que os pontos de referência têm um sentido e um valor normativo, assim como a capacidade de reconstruir uma imagem particular do passado. Como exemplo, Halbwachs (2002, p.153-154) cita uma determinada cena ocorrida em uma casa onde pais foram os personagens, cuja cena ficou marcada na memória familiar. Todavia, quando lembrada esta cena não reaparece tal qual no dia em que ocorreu; neste caso, ela será recomposta e pode acrescentar elementos emprestados de outros momentos que precederam ou antecederam a dita lembrança, no entanto, seus personagens, os pais, estão ali presentes. Com isto, o autor quis mostrar que os personagens considerados importantes no momento da vivência em que se constituiu esta lembrança, no caso exemplificado, os pais, são os que permanecem mais presentes na memória de determinado fato.

No quadro de memória da família são bem conhecidos os fatos e as figuras que constituem os pontos de referência, mas cada uma dessas figuras expressam um caráter que resulta de um período da vida do grupo. São imagens e noções em que as reflexões do indivíduo que lembra se baseiam, onde tudo se passará, sem dúvida, como se tivesse retomado o contato com o seu passado. No entanto,

Não basta que tenha assistido ou participado de uma cena onde outros homens eram espectadores ou atores para que mais tarde, quando eles evocarem diante de mim, quando reconstituírem peça por peça a sua imagem em meu espírito, subitamente essa construção artificial se anime e tome aparência de coisa viva, e a imagem se transforme em lembrança (HALBWACHS [1950], 2004, p. 32).

Isto significa que embora tenhamos ouvido o relato de um parente ou alguém que conviveu conosco na infância e este relato nos insira em suas cenas, se não obtivermos estas imagens em nossa recordação, isto não será uma lembrança, pois:

[...] ainda que este fato possa ser localizado no tempo e no espaço, [...] acho-me na presença de um dado abstrato, para o qual é impossível fazer corresponder qualquer recordação viva: não lembro de nada e não reconheceria mais tal lugar por onde passei (HALBWACHS, 2004, p. 32).

As recordações de família se desenvolvem em terrenos ditintos e nas consciências dos membros do grupo doméstico: quando estão juntos ou, mesmo estando separados, cada qual recorda o passado comum da família à sua maneira. No entanto, os membros de uma família percebem que este grupo está ligado por algo comum, seja uma família consanguínea ou não. Os marcos espaciais e temporais são muito fortes no grupo familiar, podendo-se percebeer este fato pela fala de Alencar:

A permanência das famílias é uma forma de resistência, movida pela necessidade de manter os vínculos com o lugar que foi construído pelas gerações passadas, já que a referência de identidade do grupo social está vinculada ao lugar, e a família que lhe deu origem. O lugar compreende o local onde estão as casas, as roças e as capoeiras das famílias que descendem de um ancestral comum; as áreas onde são desenvolvidas atividades de pesca e de extrativismo e inclui, ainda, os locais que são significativos por servirem como ancora da memória e história do grupo (ALENCAR, 2007, p. 99).

No caso da argumentação de Alencar (2007), podemos associá-la às famílias mais tradicionais situadas em pequenas localidades ou que mantêm uma relação muito próxima com suas tradições familiares, pois, na sociedade atual as famílias diversificam suas formas de ser, como já mencionado, mas mesmo assim estabelecem regras e normas de convivência. A memória está presente como elemento agregador deste grupo, pautada na coesão e na solidariedade entre seus membros, para que os quadros da memória se sustentem enquanto o grupo permanecer em contato.