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4 TERRA FIRME DE MEMÓRIAS E HISTÓRIAS: O BAIRRO, A RUA,

4.2 PERCURSOS PERCEPTIVO INTERATIVO NO BAIRRO

O percurso pelas ruas do bairro da Terra Firme é uma forma de perceber de modo mais próximo, articulando olhares dos moradores e dos de fora. No final de 2015, foi realizado um encontro promovido pelo Ponto de Memória, que reuniu representantes do Norte e Nordeste do Brasil para articulação das redes de Pontos de Memória. No final deste encontro foi realizada uma visita ao bairro, em que o grupo saiu no final da tarde acompanhado à distância por uma viatura da polícia, para conhecer um pouco do bairro através de suas ruas. Nesta visita, passamos pelo jardim comunitário, as áreas onde jogavam lixo, o posto de saúde, enfim, nos locais que faziam parte do cotidiano e que eram mostrados pelos seus próprios atores. Ali, eu era uma visitante como os outros. Esta caminhada pelas ruas foi interessante, pois na ocasião pude ter um olhar distanciado, para além das fronteiras de minha pesquisa, e um micro olhar, como propus na oficina, como também pude ouvir o que os outros participantes comentavam sobre o “passeio”.

A partir desta experiência, surgiu a ideia de se elaborar um roteiro interpretativo do/no bairro na Terra Firme. Iniciamos a conversa com o Ponto de Memória, sugerindo que fosse elaborado um roteiro que fosse oferecido para os que quisessem conhecer o bairro. Confesso

que no início pensei: Será que alguém vai querer conhecer este roteiro que interessa apenas para eles? No entanto, depois comecei a compreender que para eles não importava se as pessoas quisessem conhecer ou não, mas importava que eles queriam mostrar o seu cotidiano, no sentido que trata De Certeau (1996, p. 31), como “aquilo que nos é dado cada dia”; de mostrar como consumiam ou praticavam o seu espaço e, ao fazê-lo, reafirmavam o seu pertencimento ao bairro e articulavam novas versões da sua memória coletiva.

Enfim, junto com eles, continuei a elaboração do roteiro, que acabou sendo inserido na programação da Semana do Meio Ambiente do Museu Goeldi, como forma de divulgar a atividade, visto que eles não teriam como fazer a divulgação em grande escala, mas também para aproveitar as possibilidades oferecidas para a execução da sua ação proposta. Sendo assim, o roteiro/percurso foi incluído na programação, realizada no sábado, dia 6 de junho de 2016, agora com uma outra roupagem. Foi definido um tempo, um começo e uma delimitação dos lugares que seriam incluídos, ou seja, tornou-se algo formal e institucionalizado, mas o meu objetivo com este percurso foi captar e perceber como este espaço é praticado e produzido no contexto cotidiano do bairro e como os “caminhantes” veriam estas práticas.

O percurso iniciou-se no Campus de Pesquisa do Museu Emilio Goeldi (MPEG) localizado na Av. Perimetral (Figura 14). Desde a década de 1980 o Museu Goeldi desenvolve projetos integrados com o bairro da Terra Firme e é um dos parceiros do Ponto de Memória no bairro. O Campus de Pesquisa do MPEG é uma referência para os comunitários devido à historicidade e parceria institucional, principalmente com o Centro Comunitário Bom Jesus, partir do projeto “Museu Goeldi leva Educação e Ciência à Comunidade”, que foi lançado em 1985, ampliando os objetivos comunitários ao participar de diversas ações de educação em ciências promovidas por esta instituição (Da Silva Brito, 2014).

Este projeto atualmente se articula com o Ponto de memória na realização das ações do Museu Goeldi que se voltam para o bairro. Algumas ações especificas continuam sendo realizadas com os moradores, como visitas ao campus de pesquisa do Museu; Visita ao parque Zoobotânico; oficinas realizadas com alunos e professores sobre temas pesquisados pelo Museu Goeldi; Festival de gastronomia inteligente.58

58 O Festival de Gastronomia Inteligente é uma ação promovida pelo Museu Goeldi juntamente com moradores

do bairro da Terra Firme. Esta ação teve início na década de 1980, em parceria com o Centro Comunitário Bom Jesus, então nomeada de Alimentação Alternativa, tendo como objetivo introduzir uma alimentação que reaproveitasse restos de alimentos considerados saudáveis, mas que iam para o lixo, como cascas de banana, de ovo, entre outros, tudo isso com a finalidade de enriquecer a alimentação das crianças. Atualmente, o Festival de Gastronomia Inteligente é realizado no Parque Zoobotânico do MPEG, onde se realizam exposições e oficinas sobre alimentação saudável, contando com a colaboração de diversas instituições no âmbito municipal, estadual e federal, além de pequenos e médios empreendedores do ramo de alimentação.

Figura 14 - Parada do percurso Museu Paraense Emílio Goeldi.

Foto: Silva, 2016.

Na Av. Perimetral existe o Jardim Comunitário (Figura 15), que demontra a resistência dos moradores em relação ao descaso do poder público, quanto à coleta de lixo no bairro. O movimento começou com duas moradoras (Fátima e Madalena) em uma área onde era jogado lixo, localizada entre o Museu Goeldi e a escola Mario Barbosa. Elas começaram a fazer o Jardim e solicitaram o apoio do Museu, mas houve algumas tensões nesta relação, como visto anteriormente.

Figura 15 - Jardim Comunitário na Av. Perimetral.

Foto: Ana Silva, 2016.

Saindo da Av. Perimetral entrando na Rua São Domingos, temos o terceiro ponto a ser apresentado no percurso será a escola estadual Brigadeiro Fontenelle que está no bairro há mais de quarenta anos, que é uma das representações de luta pela educação no bairro e, referência em mobilização comunitária. A escola oferece uma programação à comunidade com atividades culturais de cinema, dança e teatro (Figura 16).

Figura 16 - Parada Escola Brigadeiro Fontenelle.

Foto: Ana Silva, 2016.

Seguindo o trajeto, no final da rua São Domingos, encontra-se a Igreja de São Domingos Gusmão, em frente a ela existe uma das únicas praças do bairro, a praça Olavo Bilac, que foi cenário para diversas manifestações, luta e reivindicações. Este espaço público é referência para os moradores, pois além das diversas manifestações culturais que aconteceram e acontecem no bairro, pela parte da manhã funciona o chamado “shopping chão” onde são vendidas diversas mercadorias e serviços que são expostos no chão, por cima de lonas e matérias improvisados de onde provem o seu sustento (Figura 17).

Figura 17 - Parada Praça Olavo Bilac.

Neste local percebe-se uma confluência de pessoas que trabalham, batem papo, passeiam, ou seja, é um dos principais espaços de sociabilidade do bairro, e ponto de referência para quem não é do bairro. Segundo relato de um antigo morador, a praça era um local totalmente diferente alguns anos atrás, pois era aberta e possuía bancos onde as pessoas sentavam para conversar, “uma pequena piscina” onde as crianças tomavam banho e a venda no local ocorria livremente, com pessoas de fora do bairro geralmente estudantes universitários em busca de recursos para viagens ou formatura. Hoje, a praça é gradeada e não há mais bancos e para a venda no shop chão paga-se uma taxa simbólica de R$ 1,00 (um real) para a Paróquia de São Domingos Gusmão.

O quarto ponto de parada foi a Feira da rua Celso Malcher, que é outro local de muita representatividade no bairro. Assim como em outras feiras, a Feira da Terra Firme é um local de sociabilidade entre os moradores e faz parte da identidade cultural do bairro, também um espaço de intenso fluxo de pessoas. A maioria dos feirantes mora no bairro e herdou o ofício e os saberes de seus pais, avós e familiares. Nesta feira existe uma grande diversidade de produtos e, segundo os moradores, funciona inclusive à noite com a venda de pescado (Figura 18). Figura 18 - Parada da Feira e Hortomercado.

Foto: Karol Santos, 2016.

Para o próximo ponto de parada foi escolhida o Igarapé do Tucunduba, que era utilizado como espaço de lazer onde as crianças brincavam e tomavam banho. Porém, devido à expansão do bairro, as margens do Igarapé foram ocupadas e adotou-se uma nova dinâmica. Hoje, nas margens deste igarapé existe uma feira, com a peculiaridade de que nela é possível comprar produtos diretamente dos ribeirinhos que vêm das ilhas próximas a Belém. No entanto, pelo horário não se chegou a este ponto pela distância da caminhada até lá. Este trajeto tem cerca de 6,3 km, como apresentado no mapa do percurso (Figura 19).

Em cada parada, os próprios moradores que apresentaram o ponto de parada, o histórico, a representatividade e, principalmente, relataram sua relação com o lugar e suas memórias sobre ele. O percurso foi totalmente interativo para que não houvesse apenas uma exposição sobre alguns espaços de vivencia e memória dos moradores do bairro da Terra Firme, mas para que houvesse momentos de sociabilidade e interação entre participantes e moradores.

Figura 19 - Mapa do Percurso Interativo no Bairro da Terra Firme, Belém-PA.

Fonte: Google Maps, adaptado por Karol Santos, 2016.

Após o percurso realizou-se uma avaliação sobre o perfil dos participantes. Neste sentido foram feitas algumas perguntas a estes indivíduos sobre o que vivenciaram durante a caminhada, para isto, foi utilizado um formulário (Anexo), que foi respondido pelos próprios participantes. Esta avaliação serviu para perceber o movimento do bairro, pois o percurso foi no sábado pela manhã, devido neste dia as ruas estarem mais movimentadas e poder se perceber a efervescência do Bairro. Participaram deste percurso interpretativo 12 pessoas e, destas, 30% (4 pessoas) moram no Bairro e 70% (9 pessoas) são de outros bairros de Belém (Jurunas,

Cremação, Pedreira, Souza, Fátima, Reduto, Canudos). A maioria soube do roteiro pelo ponto de Memória, pelo Museu Goeldi e por pessoas conhecidas do bairro. A faixa etária dos participantes foi bem diversificada, variando dos 20 aos 60 anos, sendo que 50% eram estudantes de nível superior, 20 % professores, 10% técnicos de instituições museais e 30% donas de casas e profissionais informais e desempregados.

Quanto à questão principal: O que lhe chamou a atenção no Percurso? Os participantes destacaram vários aspectos que lhes chamaram a atenção durante o roteiro:

• A diversidade e dinâmica social da feira da Terra Firme;

• O compartilhamento de memórias entre os moradores e os de fora do bairro; • A luta histórica que os moradores travam cotidianamente;

• As maravilhas do bairro; • A escola Brigadeiro Fontenelle;

• O jardim construído em frente ao Museu Goeldi; • A receptividade dos moradores;

• Dinâmica comercial do Bairro;

• O trabalho educativo com a comunidade;

• A fala dos moradores sobre a importância do Bairro.

Quanto aos pontos visitados, perguntou-se o que destacariam nesses pontos, os participantes declararam que esses lugares eram de grande importância para a comunidade, que representam as peculiaridades do bairro e que poderiam ser considerados estruturantes em relação à construção do lugar e de sua funcionalidade. Também acharam que o roteiro foi propositivo e educativo, com foco nas memórias compartilhadas com os moradores e que foram estrategicamente escolhidos, levando em consideração o histórico social e o acervo cultural e social do bairro. Por fim, destacaram a atitude dos moradores em “não apenas querer melhorias, mas, fazerem estas melhorias por meio de iniciativas criativas”.

O percurso serviu para observação “de perto e de dentro” (MAGNANI, 2002), podendo- se identificar, descrever e refletir sobre aspectos peculiares vistos durante a caminhada pelas ruas do bairro através do olhar não só do pesquisador, mas também pelo olhar dos outros, do caminhante, do praticante dos espaços do bairro (CERTEAU,1994) e dos provindos de fora. Agora, como pesquisadora, detive-me em alguns aspectos que se apresentaram durante o percurso, dentre estes a presença de uma viatura da polícia59 acompanhando o grupo, o mesmo

59 Um fato que ocorreu na caminhada que participei em 2015 foi quando o grupo havia parado para ver o Jardim

que ocorreu na caminhada que fiz em 2015, percebi que a presença dos policias trazia uma sensação de segurança para eles, visto que andavam despreocupados, fotografando e observando a rua. Por outro lado, isto mostra a preocupação dos próprios moradores em relação à segurança nas ruas, mas ao mesmo tempo, ressalto que a permanência deste poder no bairro através da Unidade de Polícia Pacificadora (UIPP) aparece para uns como um benefício, pois para estes moradores, a redução da violência no bairro é atribuída à chegada deste órgão no bairro, além de promoverem ações socioculturais desenvolvidas com crianças e jovens, envolvendo esporte e arte como formas de capacitação para a inclusão social, além de ser uma alternativa de lazer para um bairro que não possui espaços para este fim.

Por outro lado, há os moradores que contestam o espaço da UIPP, não como negação de suas ações e de seus benefícios para o bairro. Segundo estas pessoas o espaço agride e oprime os moradores, pois acham que o bairro não precisa somente de segurança, mas também precisa de saúde, saneamento básico, pois os moradores ficam à mingua, segundo as palavras dos próprios moradores. Neste sentido, percebi uma certa tensão, que é velada devido ao uso dos equipamentos e serviços oferecidos, uma forma de driblar a normatização do espaço.

Cada ponto do percurso foi indicado como um espaço praticado por estes moradores, que demonstram os laços tradicionais com o bairro. A perspectiva proposta por Magnani (2002), pode fazer perceber, mesmo que superficialmente, os padrões de comportamento dos atores sociais, cuja vida cotidiana transcorre na paisagem da cidade e depende de seus equipamentos.

Durante a caminhada pude perceber as ruas do bairro com intenso movimento tanto de veículos quanto de pessoas. No sábado, percebia-se uma sociabilidade festiva (RODRIGUES, 2013), característica de bairros periféricos, nas casas, bares e outros espaços festivos encontrados neste trajeto. Nos bares, os sons automotivos anunciando festas ou algum produto comercializado, com músicas em alto volume. Ao longo da rua São Domingos podia- se se ouvir e ver de tudo um pouco, principalmente no horário que por ali passava-se já se via um movimento em torno de compras entre as casas e a rua, a maioria estavam fechadas em função do risco de assaltos. Esta é uma característica dos bairros populares, onde as ruas são

jovem morador do bairro me abordou junto com um grupo participante do evento e perguntou se havia morrido alguém. Nós ficamos surpresos com o questionamento e perguntei por quê? Ela respondeu: “Aqui na Terra Firme se você vê um carro de polícia parado e um aglomerado de pessoas ou é assalto ou alguém que morreu”.

espaços praticados e palco de representações da vida cotidiana, isto é, elas têm alma, como diz João do Rio (2007).

Desta forma, ao longo do percurso pude identificar, além dos pontos anteriormente definidos, as manchas (MAGNANI, 1992) no bairro. Estas categorias apresentadas pelo autor caracterizam-se como áreas existentes no espaço urbano, que são dotadas de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam uma atividade ou prática predominante (MAGNANI,1992, p. 22). No caso da Terra Firme, identifiquei no caminho manchas ligadas ao comércio, principalmente com vendas contíguas às casas: bares, lanchonetes, venda de verduras, de água, gás, farmácias, salão de beleza, sobretudo porque esta rua cruza com a Celso Malcher, culminando na parte central do bairro. Mas, além da mancha comercial, podia- se ver escolas, posto de saúde, igreja evangélicas, entre ouras.

Ao longo da Rua São Domingos via-se também as passagens que traspassavam a rua e que não foram adentradas naquele momento por questões práticas, como a questão do tempo, mas na visita realizada em 2015, quando adentrei pela Passagem São João para ver o Posto de Saúde, quando inclusive foi mencionada nos relatos a invasão do terreno onde seria o posto de saúde, além dos jardins comunitários e o Centro Comunitário Bom Jesus, que fez parte da história do bairro. Chamo a atenção para a inclusão do posto de saúde em outro trajeto do percurso, que mostra umas das maiores dificuldades da população pobre do Pará e do Brasil na atualidade. Na conjuntura política atual do país, vê-se cada vez mais o povo sendo humilhado e desprezado pelo poder público. Este posto de saúde foi conquistado pela luta dos moradores, como foi lembrado pelos moradores, pelo exercício democrático do orçamento participativo realizados na gestão do Prefeito Edmilson Rodrigues (1998-2006), quando era definida a aplicação do dinheiro público, como relatou o sr. Zé Maria, morador do bairro e um dos condutores do percurso.

A escola Brigadeiro Fontenele foi outro espaço conquistado pela luta dos moradores do bairro, onde não havia escolas de ensino médio (antigo 2º grau), agora possui várias, como contou Madalena em seu relato, agora essa escola é considerada uma referência de ensino público no bairro, segundo moradores. Enfim, o simples ato de fazer o percurso é uma forma de resistência e de visibilidade; uma maneira de dizer para os que são de fora – como eu e os outros que passam por ali: “Ei nós estamos aqui, conquistando nosso espaço, mas queremos dignidade”.

5 - O CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL DO BAIRRO DA TERRA FIRME EM