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Debate na Assembleia da República

No documento A reação portuguesa à guerra do Kosovo (páginas 52-57)

Capítulo IV – «Novo» conceito estratégico e alargamento da NATO

4.1. Debate na Assembleia da República

Para representar o governo, estavam presentes o ministro dos Negócios Estrangeiros Jaime Gama, o ministro da Defesa Nacional José Veiga Simão e o ministro dos Assuntos Parlamentares António Costa, embora este último não tenha feito nenhuma contribuição de registo neste tema61.

O primeiro a tomar a palavra foi o ministro dos Negócios Estrangeiros. Começou por informar que o novo Conceito Estratégico não configurava uma alteração aos acordos já estabelecidos e que, por isso, não era necessário a ratificação do mesmo pela Assembleia da República. Segundo Jaime Gama, o CE não ignorava a Carta das Nações Unidas, demostrando a persecução da luta pela democracia, do Estado de direito e Direitos Humanos. A NATO continuaria a agir conforme os preceitos da ONU e da OSCE para missões de paz ou gestão de crises, continuando a não poder utilizar a força militar fora do espaço dos seus membros sem mandato da ONU, exceto quando a segurança das regiões onde estes se encontravam estivesse em causa. O CE expressava – e expressa – o papel importante que os membros europeus iam ter em matéria de segurança e defesa, conjugando-as com a ação da União Europeia. Na sua visão, a NATO garantia a segurança da região, como o tinha feito até então62.

Sendo que o novo CE permitia a intervenção militar no Kosovo – que já estava a decorrer desde 24 de Março –, o ministro defendeu esta posição, afirmando que o Conselho de Segurança da ONU já tinha aprovado três resoluções que denunciavam o conflito como fator de destabilização e de insegurança da região e o comportamento do governo jugoslavo. Para si e para a NATO, o melhor seria atuar mediante mandato da

61 PARLAMENTO. Diário da Assembleia da República – VII Legislatura, 4ª Sessão Legislativa, I Série,

Nº85. Consultado entre Janeiro e Setembro de 2015. in <http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/07/04/085/1999-05-13/3051?pgs=3071-

3072&org=PLC&plcdf=true>.

62 Jaime GAMA, NATO: alteração do conceito estratégico. 13 de Maio de 1999. in

<http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/07/04/085/1999-05-14/3054?pgs=3054-3057,3081- 3082&org=PLC> (Consultado entre Janeiro e Setembro de 2015).

53 ONU, mas, visto que essa possibilidade estava bloqueada, devido ao poder de veto de países não-membros da aliança, como a Rússia, não era possível fazê-lo63.

De seguida, foi a vez de Veiga Simão de discursar. Para si, a defesa da Europa não podia ser desligada da defesa da América do Norte. Embora a aliança e o novo CE determinassem ações militares em conjunto, essas ações também poderia ser realizadas separadamente pelos parceiros europeus. Assim, a identidade europeia seria mantida e reforçada, aumentando a conjugação de esforços entre a NATO, a UEO e a União Europeia. Neste panorama, os membros europeus teriam de ampliar a sua participação nas missões da aliança, embora o ministro considerasse natural que esta dependesse dos Estados Unidos da América, pois estes possuíam um poder militar maior e mais avançado. A NATO reforçaria a segurança da região euro-atlântica e preveniria a proliferação de armas biológicas, químicas e nucleares. Veiga Simão defendeu igualmente que a Rússia tinha um lugar fundamental no esquema de segurança mundial, assim como, embora em menor grau, a Ucrânia. Neste contexto, para Portugal, o Mediterrâneo seria uma das regiões mais importantes64.

José Medeiros Ferreira e Eduardo Pereira foram os deputados do Partido Socialista que participaram no debate mais ativamente. A intervenção de Eduardo Pereira centrou-se nas alterações ocorridas no panorama internacional depois do fim da União Soviética. Para ele, com estas modificações, as dificuldades da ONU, em zelar pela segurança, tornavam-se evidentes. A questão bósnia teria demonstrado isso mesmo. Também não teria sido possível criar uma PESC que abrangesse todas as questões centrais de segurança europeia. Face a estes obstáculos e devido à boa relação entre a NATO, a ONU e as instituições europeias, a aliança teria um papel fundamental na manutenção de segurança na zona euro-atlântica. Ao contrário da ONU, para Eduardo Pereira, a NATO tinha iniciado a sua adaptação, em 1992, e era importante para a prossecução da paz na Bósnia. Embora a NATO continuasse a respeitar a necessidade de mandato da ONU, o Tratado de Washington não restringia as ações da aliança a nenhuma área geográfica, sendo esta imprescindível, no contexto de segurança europeia65.

63 Jaime GAMA, NATO: alteração do conceito estratégico. 13 de Maio de 1999. in

<http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/07/04/085/1999-05-14/3054?pgs=3054-3057,3081- 3082&org=PLC> (Consultado entre Janeiro e Setembro de 2015).

64 José Veiga SIMÃO, NATO: alteração do conceito estratégico. 13 de Maio de 1999. in

<http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/07/04/085/1999-05-14/3057?pgs=3057-3058,3075- 3077&org=PLC> (Consultado entre Janeiro e Setembro de 2015).

65 Eduardo PEREIRA, NATO: alteração do conceito estratégico. 13 de Maio de 1999. in

<http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/07/04/085/1999-05-14/3069?pgs=3069- 3071&org=PLC> (Consultado entre Janeiro e Setembro de 2015).

54 No entender de Medeiros Ferreira, ao fazer parte da aliança, Portugal tinha o seu território seguro. Também o facto de esta defender os Direitos Humanos e os valores democráticos se coadunava com o estado português. A presença de um contingente europeu na NATO e o seu alargamento para leste ampliaria o nível de segurança vivido no continente66.

Já o deputado João Amaral do PCP atacou frontalmente o novo CE, acusando o primeiro-ministro de não querer comparecer no debate por ter receio de ser confrontado com questões fraturantes. De igual forma, acusou a NATO de ter posto em prática o conceito antes de este ser aprovado e até discutido, com os bombardeamentos na Jugoslávia67.

Para o PCP, antes da implosão da União Soviética e do fim do Pacto de Varsóvia, a aliança teria uma autojustificação para existir: travar o Pacto de Varsóvia. Contudo, nesta altura, a NATO teria deixado de ter razões para continuar ativa. O caminho certo seria o desarmamento e a dissolução, seguido por uma cooperação internacional. Ao contrário do que desejaria o Partido Comunista, a aliança não se desfez e até se tornou mais forte. Para além destes factos, teria deixado de ser uma aliança defensiva para passar a ser ofensiva. Criticou todos quantos pensavam que os membros europeus teriam, desde a entrada em vigor do novo CE, mais autonomia e peso. Na sua opinião, os Estados Unidos manteriam sempre a sua posição dominante e usariam os restantes parceiros para atingir os seus interesses, devido ao seu nível e sofisticação de armamento, o que era visível em todas as negociações efetuadas pela aliança. Um dos problemas do alargamento seria a sensação de cerco da Rússia, que a via a NATO chegar às suas fronteiras, o que levaria a um recrudescimento da tensão e da insegurança na zona. O PCP reprovava a criação de um exército europeu, pois considerava que era o caminho para uma Europa federal68.

Os comunistas basearam parte das suas críticas tanto no Direito Constitucional, como no Internacional, afirmando que o novo CE infringia artigos da Constituição Portuguesa, da Carta das Nações Unidas, da Carta de Paris, da Ata Final de Helsínquia,

66 José Medeiros FERREIRA, NATO: alteração do conceito estratégico. 13 de Maio de 1999. in

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67 João AMARAL, NATO: alteração do conceito estratégico. 13 de Maio de 1999. in

<http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/07/04/085/1999-05-14/3058?pgs=3058- 3062&org=PLC> (Consultado entre Janeiro e Setembro de 2015).

68 João AMARAL, NATO: alteração do conceito estratégico. 13 de Maio de 1999. in

<http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/07/04/085/1999-05-14/3058?pgs=3058- 3062&org=PLC> (Consultado entre Janeiro e Setembro de 2015).

55 bem como documentos da OSCE e até o Tratado de Washington de 1949. O CE significaria o repúdio pelo princípio de soberania e pelo limite do recurso à ação militar ofensiva, instituídos na Carta da ONU. A admissão da possibilidade – entretanto, já consumada – de agir unilateralmente sem o mandato da ONU não era só uma infração do Direito Internacional, como também demonstrava o caráter belicoso assumido pela NATO69.

Além disto, o PCP tentou apontar as infrações do CE no campo constitucional português, pois iria contra o artigo 7º da Constituição da República Portuguesa, que proibia a ingerência em assuntos internos de Estados soberanos e soluções bélicas de conflitos. O novo conceito entraria também em contradição com os artigos 5º, 6º e 7º do Tratado de Washington, que circunscreviam a área de ação militar da aliança, introduziam a condição de legítima defesa e postulavam que a NATO tinha de acatar e seguir a Carta das Nações Unidas. Estes artigos seriam violados com a ação da aliança fora dos territórios dos estados membros, sem ser em legítima defesa e sem o mandato do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A estas violações estaria subjacente a arrogância imperialista dos Estados Unidos da América, que desejavam utilizar a NATO como instrumento para obtenção dos seus objetivos e interesses em todo o mundo. O PCP considerava o novo CE como uma “chocante e brutal regressão no Direito Internacional”70.

Através de Carlos Encarnação, o PSD iniciou a sua participação no debate com críticas à forma de atuar do primeiro-ministro. De facto, António Guterres não se encontrava presente na Assembleia da República, mesmo estando em Portugal, além de não ter informado atempadamente a população e a AR sobre a presença de militares portugueses na ofensiva contra a Jugoslávia71.

De forma a esclarecer a sua posição, o PSD afirmou que o novo CE não alterava o Tratado de Washington, indo mais longe, ao defender que este pecava por tardio. Após a queda do Muro de Berlim, o mundo havia-se alterado e a aliança atlântica teria necessariamente de o acompanhar. Citando Alain Minc, Encarnação asseverou que havia

69 João AMARAL, NATO: alteração do conceito estratégico. 13 de Maio de 1999. in

<http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/07/04/085/1999-05-14/3058?pgs=3058- 3062&org=PLC> (Consultado entre Janeiro e Setembro de 2015).

70 João AMARAL, NATO: alteração do conceito estratégico. 13 de Maio de 1999. in

<http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/07/04/085/1999-05-14/3058?pgs=3058- 3062&org=PLC> (Consultado entre Janeiro e Setembro de 2015).

71 Carlos ENCARNAÇÃO, NATO: alteração do conceito estratégico. 13 de Maio de 1999. in

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56 três razões para a não atuação da NATO fora do território dos seus membros: o conceito de não-ingerência, o poder de veto dos membros integrantes do Conselho de Segurança da ONU e a inviolabilidade das fronteiras dos estados. Visto que a aliança era a única com o perfil e meios de atuação militar, a sua não intervenção em conflitos internacionais, possibilitava a violação de Direitos Humanos, como ficou patente nos casos de Timor e do Ruanda. Referiu, ainda, que o caso da Bósnia fora sintomático e que a comunidade internacional e a NATO tinham agido tarde72.

Carlos Encarnação garantiu que a NATO, durante o decurso da guerra do Golfo e da crise jugoslava, ao dispor-se a ajudar em missões de manutenção da paz no âmbito da ONU e da CSCE, deixou de ser uma aliança puramente defensiva, colocado a tónica de cooperação, no campo da segurança internacional. Para esta organização conseguir atingir os seus objetivos de defesa de todos os seus aliados e promover a paz, a democracia e os Direitos Humanos, teria de participar na estabilização de toda a zona euro-atlântica. Para isso, teria de utilizar meios políticos ou militares, pois todos os conflitos que aí ocorriam afetavam a segurança dos estados membros da aliança73.

No que concerne à legitimidade de atuação fora dos territórios dos seus membros, o PSD compreendia que era necessário o mandato do Conselho de Segurança da ONU. Contudo, caso este não fosse possível, a NATO teria legitimidade de ação, se seguisse o espírito da Carta das Nações Unidas. Além disto, o Partido Social Democrata também invocou a identidade de segurança europeia no seio da NATO74.

O deputado Francisco Peixoto do CDS-PP centrou-se em críticas à atuação do governo português e em interrogações sobre as mudanças postuladas no novo CE, nos campos das forças armadas portuguesas, do orçamento de estado e do Direito Internacional. Em relação ao CE e ao papel da NATO, o partido limitou-se a afirmar que a aliança era a melhor solução para a manutenção da paz e dos valores democráticos e

72 Carlos ENCARNAÇÃO, NATO: alteração do conceito estratégico. 13 de Maio de 1999. in

<http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/07/04/085/1999-05-14/3063?pgs=3063- 3066&org=PLC> (Consultado entre Janeiro e Setembro de 2015).

73 Carlos ENCARNAÇÃO, NATO: alteração do conceito estratégico. 13 de Maio de 1999. in

<http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/07/04/085/1999-05-14/3063?pgs=3063- 3066&org=PLC> (Consultado entre Janeiro e Setembro de 2015).

74 Carlos ENCARNAÇÃO, NATO: alteração do conceito estratégico. 13 de Maio de 1999. in

<http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/07/04/085/1999-05-14/3063?pgs=3063- 3066&org=PLC> (Consultado entre Janeiro e Setembro de 2015).

57 ocidentais, pois, graças à sua existência, a Europa nunca tinha experienciado um período tão pacífico75.

Já o deputado do CDS-PP António Brochado Pedras interrogou-se sobre a falta de discussão sobre o novo CE na AR e interrogou-se sobre se a sua existência não minava a independência da Europa, em relação aos Estados Unidos, e não acicatava aversões nos países considerados de Terceiro Mundo76.

O partido «Os Verdes» demonstrou neste debate, pela voz da deputada Isabel Castro, a sua total discordância do novo CE, que, na sua opinião, direcionava a NATO para o caminho oposto ao necessário. Ao invés de ser uma garantia de segurança, para «Os Verdes», significaria exatamente o contrário, ao aumentar a probabilidade de conflito. O melhor seria a via da desmilitarização, desnuclearização e a procura da resolução de disputas, através de meios políticos e pacíficos. Isabel Castro também responsabilizou NATO, por colocar a ONU à margem das decisões bélicas, ao abandonar a necessidade de obter um mandato da organização77.

No documento A reação portuguesa à guerra do Kosovo (páginas 52-57)