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Capítulo IX Coligação Democrática Unitária

9.1. O Avante

No seu jornal O Avante, o PCP demonstrou, logo em Março de 1998, preocupação pela situação no Kosovo. Após atentados perpetrados pelo UÇK, os comunistas receavam que o conflito destabilizasse os Balcãs. Mencionou igualmente a posição de Slobodan Milosevic contra a internacionalização do problema217.

Duas semanas depois, no mesmo órgão de comunicação, o militante Domingos Lopes afirmou que não era possível analisar o conflito, tendo somente em conta a avassaladora maioria da população, que era albanesa. Relembrou que nem sempre foi assim e que uma das razões para o aumento dos albaneses na região teria sido a política de Josip Broz Tito. Não esquece que os sérvios consideravam – e consideram – o Kosovo o berço da sua pátria. Domingos Lopes defendeu que eram os separatistas que não desejavam negociações pacíficas, preferindo atacar não só militares, mas também civis. Difere, porém, dos grupos armados separatistas, as organizações políticas que pretendiam um novo estatuto para o Kosovo, que o autor considerava legítimo, pois os albaneses constituíam quase a totalidade da população. Contudo, via como igualmente natural a defesa sérvia das suas fronteiras internas, reconhecidas internacionalmente218.

Criticou ainda a atuação da comunidade internacional, em especial dos Estados Unidos da América, que considerava criadores de crises, devido à sua propaganda anti- Jugoslávia, controlo dos órgãos de comunicação social e dualidade de critérios, visto que não reagia face ao que acontecia em Timor-Leste ou na Palestina. Discordou da tática

215 COMISSÃO NACIONAL DE ELEIÇÕES. Resultados eleitorais. Consultado a 07/05/2015. in

<http://eleicoes.cne.pt/vector/index.cfm?dia=01&mes=10&ano=1995&eleicao=ar>.; PARTIDO ECOLOGISTA «OS VERDES». VII legislatura 1995/1999 – Balanço da atividade parlamentar. Consultado a 23/06/2015. in <http://www.osverdes.pt/pages/grupo-parlamentar---vii-legislatura- 19951999---balanco-da-atividade-parlamentar.php>.

216 Henrique MONTEIRO, “A bomba de Cunhal”. Expresso, 20/09/2015. in

<http://expresso.sapo.pt/politica/2015-09-20-A-bomba-de-Cunhal> (Consultado a 21/09/2015).

217 “Kosovo em pé de guerra”. Avante!, 05/03/1998. in <http://avante.pt/arquivo/20030327/fr-

arquivo.html> (Consultado a 21/06/2015).

218 Domingos LOPES, “Os xerifes do mundo”. Avante!, 19/03/1998. in

95 norte-americana de retirar a racionalidade ao conflito kosovar, para lhe emprestar um caráter puramente emocional, mais fácil de manipular219.

Em Maio, Carlos Aboim Inglez mostrou acreditar que seriam os ímpetos imperialistas da NATO e dos EUA que estariam a acender os nacionalismos balcânicos e a criar o conflito do Kosovo, tentando tornar os estados da região economicamente dependentes de si. No seu entender, os estados europeus seriam subservientes aos EUA. Inglez via Ibrahim Rugova como o único interlocutor albano-kosovar legítimo para encetar negociações com os sérvios. Neste artigo, desculpou as ações de Milosevic por compreender que todos os intervenientes cometeram os mesmos erros e via os sérvios como sendo a parte que mais tentava resolver a questão, através de conversações. A exceção, do lado albano-kosovar, seria apenas Rugova220.

No artigo «Jogos de guerra em nome da paz»221, denota-se o receio do PCP em que o poder efetivo do movimento albano-kosovar tenha sido transferido de Ibrahim Rugova para o UÇK.

Quando, em Janeiro de 1999, William Walker, chefe da missão da OSCE, denunciou a ação das forças sérvias no massacre de Raçak e, subsequentemente, ter sido quase considerado persona non grata por Belgrado, O Avante alegou contradições nas suas declarações. Contestou que as vítimas fossem todas civis, visto que o próprio UÇK declarou que alguns dos mortos eram combatentes das suas fileiras. Também considerou estranho que os corpos tenham sido encontrados juntos e alinhados, com um tiro na nuca, coincidente com execução, tendo a missão de verificação da OSCE conhecimento da operação policial sérvia que iria ocorrer na zona222. Em Março, os médicos legistas responsáveis por investigar as mortes concluíram que não houve execuções e que as vítimas foram atingidas à distância. Através do seu jornal partidário, o PCP denunciou imediatamente estas conclusões223.

Em Fevereiro, Carlos Aboim Inglez defendeu que o conflito do Kosovo seria alimentado por pretensões imperialistas da NATO e dos EUA, que desejavam destroçar

219 Domingos LOPES, “Os xerifes do mundo”. Avante!, 19/03/1998. in

<http://avante.pt/arquivo/20030327/fr-arquivo.html> (Consultado a 23/06/2015).

220 Carlos Aboim INGLEZ, “Mãos fora!”. Avante!, 21/05/1998. in <http://avante.pt/arquivo/20030327/fr-

arquivo.html> (Consultado a 25/06/2015).

221 “Jogos de guerra no Kosovo”. Avante!, 09/06/1998. in <http://avante.pt/arquivo/20030327/fr-

arquivo.html> (Consultado a 24/06/2015).

222 “NATO acusa Belgrado de alegado massacre”. Avante!, 21/011999. in

<http://avante.pt/arquivo/20030327/fr-arquivo.html> (Consultado a 27/06/2015).

223 “O «massacre» que não existiu”. Avante!, 04/03/1999. in <http://avante.pt/arquivo/20030327/fr-

96 e separar a República Federal da Jugoslávia, por esta não se sujeitar, nem se juntar à aliança atlântica. A subjugação da RFJ seria uma forma de cercar a Rússia. Para atingir o seu objetivo, a NATO recorria a ameaças, sanções, chantagens e força militar, escudando- se no dever de proteger o Direito, que Inglez considerou autoimposto. Retomou a ideia de que a NATO, juntamente com os meios de comunicação social, estaria a lançar uma campanha contra a RFJ e a colocar a emoção da comunidade internacional acima da razão, com imagens chocantes. A organização utilizaria também o UÇK no terreno para escalar o conflito, enquanto este se mantinha como o maior entrave a uma solução pacífica.224

Inglez propôs o desarmamento e fim das organizações militares e que Portugal se distanciasse dos propósitos bélicos da NATO e dos EUA225.

Na edição de 25 de Março, o Secretariado do Comité Central do Partido Comunista Português descreveu a sua visão sobre a ofensiva no Kosovo. O Secretariado via no ataque à RFJ uma destabilização da região balcânica, que não seria coincidente com os pressupostos do Direito Internacional, por atacar um estado soberano e não ter autorização do Conselho de Segurança da ONU. O PCP também não acreditava na sua razão humanitária, crendo ser apenas um pretexto para uma guerra de agressão226.

O Secretariado não acompanhava a ideia de que, naquele momento, a guerra era a melhor solução para o conflito. Defendeu uma negociação pacífica, que aumentasse a autonomia do Kosovo, protegesse os direitos de todos os povos da região, inclusive o albanês, mantivesse a soberania e as fronteiras da RFJ e não incluísse a entrada de tropas estrangeiras em solo kosovar227.

As verdadeiras causas da guerra, para o Secretariado, seriam as ideias imperialistas dos EUA e o consentimento europeu. A intenção seria transformar a NATO no braço armado dos EUA, que, com o novo conceito estratégico mais amplo e agressivo, estabeleceria uma nova ordem mundial. O PCP mostrou-se incrédulo por os estados europeus não se terem manifestado frontalmente contra os objetivos norte-americanos e o ataque à RFJ. Mais uma vez, foi apontado o papel da comunicação social na aceitação

224 Carlos Aboim INGLEZ, “Balcãs – Luta pela paz”. Avante!, 04/02/1999. in

<http://avante.pt/arquivo/20030327/fr-arquivo.html> (Consultado a 28/06/2015).

225 Carlos Aboim INGLEZ, “Balcãs – Luta pela paz”. Avante!, 04/02/1999. in

<http://avante.pt/arquivo/20030327/fr-arquivo.html> (Consultado a 28/06/2015).

226 “PCP condena decisão da NATO”. Avante!, 25/03/1999. in <http://avante.pt/arquivo/20030327/fr-

arquivo.html> (Consultado a 30/06/2015).

227 “PCP condena decisão da NATO”. Avante!, 25/03/1999. in <http://avante.pt/arquivo/20030327/fr-

97 da guerra e diabolização dos sérvios e a diferença de atuação, perante violações dos Direitos Humanos no Kosovo e em outras regiões, como Timor, Angola e Palestina228.

No que concerne a Portugal, o Secretariado não aceitava a participação nacional no esforço de guerra e pretendia uma clarificação da situação pelo Presidente da República. Estava contra a substituição de uma política de defesa autónoma por uma subserviência face aos interesses das grandes potências da NATO, pondo em causa a paz e atacando um estado com o qual Portugal mantinha boas relações. Por fim, pedia à sociedade portuguesa que mostrasse discordância sobre o ataque à RFJ229

Domingos Lopes demonstrou novamente a sua oposição à guerra. Atentou que os bombardeamentos eram uma imposição dos EUA. O ataque seria contrário ao Direito Internacional, por não ter um mandato da ONU, e poderia mesmo modifica-lo, marginalizando os preceitos da Carta das Nações Unidas. Na verdade, a guerra e a própria NATO seriam instrumentos dos EUA para obter hegemonia e isolar a Rússia. Os bombardeamentos no Kosovo seriam, então, um ensaio para confirmar se os norte- americanos poderiam ser hegemónicos, através da força militar, podendo depois substituir a ONU pela NATO, o seu braço armado. Para Lopes, isso estaria visível na imposição de Madeleine Albright de um acordo que sabia levar à rutura e à guerra. Denunciou, outra vez, que não era a catástrofe humanitária kosovar que tinha feito os EUA e a NATO a bombardear a RFJ, mas sim os interesses norte-americanos. Só isso explicaria a dualidade de critérios perante falhas nos Direitos Humanos no Kosovo e em outros locais, como Timor, como os comunistas diversas vezes referiram. A falta de mandato da ONU seria outra razão para este pensamento, com agravante de ser um ataque contra um estado soberano, que pretendia estabelecer as ideias de uma minoria – neste caso, o UÇK. No fundo, para Domingos Lopes, o novo conceito estratégico da aliança e a guerra no Kosovo eram uma forma de dominação dos estados europeus, que, com a sua concordância com as ideias norte-americanas, ficaram a eles ligados e dependentes. Os EUA procurariam a dependência dos europeus, pois viam neles o maior obstáculo a uma hegemonia e nova ordem mundial230.

228 “PCP condena decisão da NATO”. Avante!, 25/03/1999. in <http://avante.pt/arquivo/20030327/fr-

arquivo.html> (Consultado a 30/06/2015).

229 “PCP condena decisão da NATO”. Avante!, 25/03/1999. in <http://avante.pt/arquivo/20030327/fr-

arquivo.html> (Consultado a 30/06/2015).

230 Domingos LOPES, “A guerra da «nova» NATO contra a Jugoslávia”. Avante!, 01/04/1999. in

98 Devido a esta posição, Lopes pediu que Portugal se afastasse da ofensiva militar e retirasse os seus militares, visto não estarem a participar numa ação humanitária e a entrada da guerra ter sido efetuada sem a consulta devida à Assembleia da República. Proclamou que as dificuldades presentes nos Balcãs não seriam resolvidas com guerra231. Nos meses seguintes da guerra, os artigos presentes n’O Avante seguiram esta posição e ordem de ideias.

No fim da guerra e conhecido o acordo de paz, Miguel Urbano Rodrigues regozijou-se pelo fracasso da estratégia norte-americana em alguns pontos fulcrais, afirmando que os EUA simplesmente conseguiram uma pequena vitória, mesmo perante um estado com 11 milhões habitantes. Um dos malogros do estratagema dos EUA foi a colocação da NATO em segundo plano, tendo ficado a ONU com a responsabilidade de edificação da sociedade e da economia e da preservação da segurança do Kosovo. A NATO foi somente uma vez referida no acordo. Outros falhanços foram a tentativa de destruição do exército jugoslavo e da própria República Federal da Jugoslávia, assim como o afastamento de Slobodan Milosevic. Os primeiros mantiveram-se virtualmente intactos, enquanto o último se manteve no poder. O englobamento do exército jugoslavo nos contingentes do KFOR foi aceite no acordo, o que não tinha sido previsto em Rambouillet. A desmilitarização do UÇK também foi algo que Rodrigues considerou ter ido contra as expectativas da NATO e dos EUA. A alínea de Rambouillet que vaticinava um referendo sobre o futuro do Kosovo, após três anos, também não foi incluída no acordo. Contudo, Rodrigues apontou que o comandante do KFOR era o general Michael Jackson da NATO, o que o fazia acreditar que a aliança não ia respeitar o acordo232.

No documento A reação portuguesa à guerra do Kosovo (páginas 94-98)