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CAPÍTULO II – A noção de património paleontológico: definição e legislação

II. 3 – Definições de património paleontológico

Em termos da definição do fóssil como património, a sua assunção como parte do património cultural ou natural é complexa e, como já referido, a sua aceitação depende da formação académica dos investigadores. Como ponto de partida podemos usar uma noção de património com que muitos investigadores convivem próxima daquela que se encontra num dicionário comum:

Património (substantivo masculino): (…) bem, ou conjunto de bens, de natureza

material ou imaterial, de reconhecido interesse (cultural, histórico, ambiental, etc.) para determinada região, país, etc.23

Esta definição, generalista, pode ser usada como ponto de partida para nos aproximarmos da ideia de património com que os paleontólogos trabalham.

Muitos dos textos sobre o conceito de património são profundamente antropocêntricos, quem sabe se fruto da área de onde vêm os investigadores, das ciências sociais. Partem de exemplos de bens históricos, etnográficos, arquitetónicos ou artísticos, entre outros de criação humana e neles se baseiam para a defesa de uma definição de património como unicamente cultural, nunca abordando exemplos de bens não antropogénicos, como geológicos ou genéticos (Kaplan, 2006, Peralta & Anico, 2006, Torrico, 2006,).

23Retirado de Dicionário infopédia da Língua Portuguesa. Porto: Porto Editora, 2003-2018. Em

Voltando à questão do fóssil enquanto património, Peralta e Anico (2006) abordam o património como conceito com uma forte ligação à identidade e, por sua vez, com a cultura, mas não sendo o mesmo que cultura. Durante a exposição, apesar das autoras defenderem o património como algo «sempre cultural, pois faz parte de uma cultura enquanto representação

metonímica da mesma», pois o património implica a seleção e atribuição de valor a alguns

elementos culturais. Durante o seu texto, Peralta e Anico (2006) não abordam outras possibilidades de conceitos de património, como alguns exemplos de património natural, mas defendem que o património é plural e não pode estar preso a uma definição de "textos culturais" e de "instituições que reclamem monopólios de significado", dando abertura a diferentes interpretações, atendendo ao contexto da atribuição de significado.

«No contexto das sociedades contemporâneas, não é possível conceber que a atribuição de significado dependa da oficialização de "textos" culturais ou de qualquer instituição que reclame o monopólio de significado. Neste sentido, o património, enquanto "texto" cultural, tem de ser hoje conceptualizado como um campo onde se articulam os mais variados interesses, um espaço de confluência entre valores e aspirações e um lugar de contestação entre versões identitárias. Não há, portanto, um património único e unívoco. Existe uma pluralidade de patrimónios, em permanente reconfiguração, tal como são múltiplas e plurais as identidades por eles veiculadas» (Peralta & Anico, 2006, 4)

Alguns autores trabalham com definições de património mais dirigidas aos museus de ciência (Granato & Lourenço, 2011, Kunzlet et al., 2014b) usando a expressão património cultural da ciência e tecnologia ou “simplesmente” o património científico (Lourenço & Wilson, 2013).

Mencionando objetos naturais, assim como antropológicos, como os instrumentos científicos, Granato e Lourenço (2011) já vão incluir os fósseis numa secção do património que se encontra descrita como património cultural da ciência e tecnologia (C&T). Esta acaba por ser uma noção mais próxima, e útil, à paleontologia e aos seus fósseis, olhando-os, no essencial, como meios de investigação.

«Incluem-se no conjunto de bens do património cultural de C&T todos aqueles conjuntos de itens que foram utilizados em pesquisa científica ou de desenvolvimento tecnológico. Assim, devem ser consideradas como parte desse património as coleções arqueológicas, etnográficas e das ciências biológicas e da

terra, nomeadamente mineralógicas, geológicas, botânicas, zoológicas e paleontológicas utilizadas para esse fim.» (Granato & Lourenço, 2011, 89).

Estes autores acabam por ir mais além do que somente as coleções paleontológicas, focando-nos no nosso tema específico, eles vão incluir todos os objetos da investigação científica, sejam eles produzidos pelo ser humano e com influência cultural, ou não, como é o caso dos fósseis.

«O património cultural da C&T inclui o conhecimento científico e tecnológico produzido pelo homem, além de todos aqueles objetos (inclusive documentos em suporte de papel), utilizados em laboratórios, as coleções arqueológicas, etnográficas e espécimes das coleções biológicas e da terra, que são testemunhos dos processos científicos e do desenvolvimento tecnológico» (Granato & Lourenço,

2011, 90).

Esta visão de património cultural, ainda que da ciência e tecnologia, onde os fósseis se encontram incluidos e mencionados, é bastante mais próxima dos investigadores das ciências naturais. Não fazendo uma distinção entre itens naturais e objetos de produção humana, justifica, pelo uso científico das coleções naturais e dos objetos que as trabalham, a sua aglutinação no património cultural da ciência e tecnologia.

Outras definições de património, com investigadores não pertencentes às ciências sociais, e mais próximas da paleontologia, como da ProGEO, Associação Europeia para a Conservação do Património Geológico, definem o património independentemente da questão cultural:

«O património geológico compreende as ocorrências naturais de elementos da geodiversidade – os geossítios – que possuem excepcional valor científico.24»

Esta definição não quer dizer que a ideia de património não possa ser uma construção simbólica, mas a sua origem não é definida como tendo de ser cultural, ligada ao ser humano, afastando-o, portanto, de uma visão antropocêntrica.

No seio da paleontologia vemos a palavra de património usada em associação com diversos adjetivos para referir várias tipologias de património, como por exemplo património geológico, património mineralógico, património arqueológico, património natural, além do próprio património paleontológico (Bruno et al., 2014, Cabrol & Mangin, 2008, Carcavilla et

al., 2009, Fuertes-Gutiérrez, Fernández-Martínez, 2010, Fuertes-Gutiérrez et al., 2015,

Henrique & Reis, 2015, Nazaruddin & Othman, 2014, Percival, 2014, Popa et al., 2010, Santos

et al., 1998, Stevanović, 2014, Sallam et al., 2018).

A utilização do termo património em associação às ciências da terra, como património natural, é recorrente, como mostram algumas da bibliografias exemplificativas: Austrália (Percival, 2014), Egipto (Sallam et al., 2018), Espanha (Carcavilla et al., 2009, Fuertes- Gutiérrez, Fernández-Martínez, 2010, Fuertes-Gutiérrez et al., 2015), França (Cabrol & Mangin, 2008), Malasia (Nazaruddin & Othman, 2014), Portugal (Santos et al., 1998), Roménia (Popa et al., 2010), Sérvia (Stevanović, 2014). Já outros artigos estabelecem uma distinção entre o património natural e o património cultural (Cabrol & Mangin, 2008, Fuertes- Gutiérrez, Fernández-Martínez, 2010, Fuertes-Gutiérrez et al., 2015, Nazaruddin & Othman, 2014, Popa et al., 2010). Em concreto, Cabrol e Mangin (2008), num artigo sobre o património cársico de França referem a distinção na lei entre o património natural e o património cultural. Se é verdade que todos estes autores são técnicos nas suas áreas de especialidade e que trabalham com os objetos do património paleontológico, não é menos verdade que não costumam teorizar sobre o conceito de património per se. De um modo geral, estes autores parecem usar o termo património enquanto património natural e apenas abordar a noção de património cultural quando a propósito de comentários referentes à legislação e à proteção do património.

Ao nível da noção de património cultural, cada vez mais é criticada a posição de ver o património como algo essencializado, automaticamente existente, ganhando relevo a ideia do património ser algo que precisa de ser atribuído. Ora a noção de património natural não atende a esta atribuição, vê o património como algo inerente aos próprios bens.

Aceitando então a possibilidade de que o conceito de património pode ser plural, muito dependendo da origem deste e da função a que se quer atender através dele, quando, nesta tese, nos referimos a património, este não tem de ser necessariamente cultural. Estaremo-nos a referir um conjunto de bens, de origem natural ou humana, de reconhecido interesse e valor (científico, histórico, cultural, social, etc).

A maioria dos paleontólogos trabalha com métodos de verificação, procurando identificar o objeto de estudo. Que características possui ou não possui, o que ele é, ou não é, tentando definir o que se pode concluir do fóssil e o que não se pode pressupor deste. Partem da génese do fóssil como algo acultural e assumem esse estado durante todo o estudo. É uma

abordagem à luz do paradigma positivista ou pós-positivista. O investigador assume-se como uma entidade independente do fóssil, incapaz de o influenciar e capaz de o avaliar objetivamente. A sua pretenção é extrair a "verdade" do fóssil, ou “descobrir” o que não se pode concluir a partir do objeto de estudo (Guba & Lincoln, 2013).

Pelo contrário, os especialistas em património cultural incorporam noções e metodologias assentes nos paradigmas sociocrítico e construtivista. A realidade do objeto é moldada e afetada pelos valores sociais e culturais, assim como por fatores económicos ou de género. O investigador e o objeto de estudo estão intimamente ligados e influenciam-se mutuamente (Guba & Lincoln, 2013).

Assim, é a assunção de diferentes paradigmas epistemológicos, por parte de diferentes investigadores, que determina a que património o fóssil "pertence". Antes de avançar nesta questão é necessário conhecermos as atuais definições de património usadas em documentos estruturantes e nas leis portuguesas.

Entre as definições de património usadas pelo ICOMOS, o Documento de Nara sobre a Autenticidade25 (ICOMOS, 1994) aborda o património cultural do seguinte modo:

«A responsabilidade pelo património cultural e pela sua gestão pertence, em

primeiro lugar, à comunidade cultural que o gerou e a cujo cuidado ficou»

(ICOMOS, 1994, 2).

Ora, a hominização desenvolveu-se no Pleistoceno, dando lugar no Holoceno ao único descendente do género Homo que conhecemos hoje: nós próprios. Durante todo este período, que à escala geológica é muito reduzido, o ser humano pouco interagiu com a maioria das espécies que fossilizaram, tendo ele próprio fossilizado muito rara e esparsamente. Por outro lado, o Pleistoceno, que começou à 2,58 milhões de anos, corresponde cronologicamente a menos 0,5% do Fanerozoico, o Eon do qual obtemos fósseis, existente desde à 541 milhões de anos. O que quer dizer que a capacidade do ser humano ter gerado e criado fósseis ronda valores muito baixos, além de que os próprio fósseis resultaram, 99,99% dos casos, de situações onde o ser humano não existia. Isto quer dizer que dificilmente se pode associar comunidades culturais a restos fossilíferos.

O documento Nara+20 (ICOMOS, 2014) não expande a conceção de património para áreas fora do conceito de cultura humana definida 20 anos antes.

Em 2008, a Resolução da Assembleia da República (Diário da República, 2008) define o Valor do Património Cultural, no seu Artigo 2º, Definições, alínea a):

«O património cultural constitui um conjunto de recursos herdados do

passado que as pessoas identificam (…) como um reflexo e expressão dos seus valores, crenças, saberes e tradições em permanente evolução. Inclui todos os aspectos do meio ambiente resultantes da interacção entre as pessoas e os lugares através do tempo.»

Mais uma vez, "99,99%" dos fósseis não resultam da interação humana. Como já mencionado, a larga maioria dos fósseis resultam da morte de seres anteriores à existência de humanos e, logo, não podem ser expressões de valores, crenças, saberes e tradições. Sob uma prespectiva positivista, os fósseis são, objectivamente, itens não culturais.

Mas essa não é a posição da resolução da Assembleia da República e dos diversos documentos do Conselho Europeu a que se reporta, nomeadamente a Convenção Cultural da Europa (1954), Convenção Para a Proteção do Património Arquitetónico Europeu (1985), Convenção Europeia Para a Proteção do Património Arqueológico (1992, review) e a Convenção Europeia da Paisagem (2000) (Diário da República, 2008). Todos estes documentos26 têm subjacentes a noção de património cultural.

Há, contudo, outra documentação em que a paleontologia é atendida. Na ProGEO, Associação Europeia para a Conservação do Património Geológico, este é definido nos seguintes termos:

«O património geológico compreende as ocorrências naturais de elementos

da geodiversidade – os geossítios – que possuem excepcional valor científico. Trata-se de locais onde os minerais, as rochas, os fósseis, os solos ou as geoformas possuem características próprias que nos permitem conhecer a história geológica do nosso planeta. Os geossítios, para além de terem um valor científico, podem

26 European Cultural Convention, Convention for the Protection of the Architectural Heritage of Europe,

European Convention on the Protection of the Archaeological Heritage e European Landscape Convention, respetivamente.

igualmente ter um valor educativo e turístico, cujo uso sustentado deve ser promovido para usufruto da sociedade.27»

Neste caso a inclusão dos fósseis como fazendo parte de património geológico já faz sentido à luz da leitura clássica da paleontologia como um ramo da geologia.

A mesma Associação define a geoconservação inserindo nela a protecção dos fósseis. «A geoconservação consiste na protecção do património geológico

promovendo, simultaneamente, o uso racional desta componente não viva do património natural. Os exemplos excepcionais de elementos da geodiversidade podem enfrentar diversos tipos de ameaças resultantes, quer de processos naturais, quer de intervenções humanas (como por exemplo o roubo e comércio ilegal de minerais e fósseis; vandalismo; mineração; ausência de legislação adequada; etc.). A geoconservação constitui, hoje, uma das especialidades emergentes que se desenvolve no âmbito das Ciências da Terra. Ela compreende diversas etapas que passam pela inventariação, caracterização, classificação, conservação e divulgação dos geossítios.28»

A lei 107/2001, a vulgarmente conhecida como Lei de Base do Património Cultural, considera a paleontologia como uma ciência que cabe no “conceito e âmbito de património cultural”:

«Artº 2º – Conceito e âmbito de património cultural

3. O interesse cultural relevante, designadamente histórico, paleontológico, arqueológico, arquitectónico, linguístico, documental, artístico, etnográfico, científico, social, industrial ou técnico, dos bens que integram o património cultural refletirá valores de memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplariedade.29»

Como vimos, adotando uma abordagem positivista, a mais usada pelos paleontólogos e outros investigadores das ciências naturais, deixa de ser pertinente atender ao processo de

27 Retirado de <http://geossitios.progeo.pt/simple.php?menuID=2>. [consulta realizada em 8/12/2016]. Destaque

nosso.

28 Idem. Destaque nosso. 29 Idem. Destaque nosso.

construção social do património paleontológico, se bem que seja essa a ideia subjacente à noção de património cultural.

A expressão "património paleontológico" volta a aparecer, agora ao lado do património arqueológico, no capítulo II:

«Artº 74º – Conceito e âmbito do património arqueológico e paleontológico

1 – Integram o património arqueológico e paleontológico todos os vestígios, bens e outros indícios da evolução do planeta, da vida e dos seres humanos:

b) Cuja principal fonte de informação seja constituída por escavações, prospecções, descobertas ou outros métodos de pesquisa relacionados com o ser humano e o ambiente que o rodeia.» (Diário da República, 2001)

Percebemos então que as definições de património, usadas na discussão do conceito per

si, procuram referir como bens patrimoniais em exclusivo os resultantes da dimensão humana,

o que chega a impossibilitar que seja incluido na definição o chamado património natural, embora a própria definição pretenda ser abrangente.

Uma definição de património que não imponha uma origem humana a todo o bem patrimonial, e aceite o património natural como um seu componente igualmente válido, poderá vir a ser mais útil para os investigadores dos bens que constituem esse património, neste caso, os fósseis, o que contribuiria para a construção de legislação mais correta e eficaz, como veremos de seguida.

Face ao debatido, propomos a seguinte definição para património paleontológico: O património paleontológico é o conjunto de bens ligados à paleontologia que possuem reconhecido valor científico, histórico, cultural, turístico, etc, para determinada região ou país.

Podem-se considerar como elementos primários do património paleontológico, os fósseis, elementos naturais que constituem vestígios e indícios da evolução da vida no planeta e, como elementos secundários do património paleontológico, o conjunto de bens associados à pesquisa científica paleontológica, como os objetos utilizados em prospeção, escavações, laboratório, preparação, incluindo notas de campo, ilustrações, amostras e todos os demais itens que tenham servido para a construção do conhecimento científico.

Pode também considerar-se património paleontológico locais onde os fósseis possuem características próprias que nos permitem conhecer acontecimentos particulares da história geológica do nosso planeta, como trilhos de icnofósseis, mortandades em massa, extinções, limites estratigráficos, preservações excepcionais, entre outros.

O património paleontológico de excepção é o conjunto de bens que, pela sua natureza e raridade, se destacam possuindo um valor científico excepcional, muitas vezes únicos, como fósseis descritores de espécies (fósseis tipo), preservações raras ou fósseis com um grau de completude inigualáveis.

Compreende-se como património paleontológico português os fósseis descobertos no território português – composto pelo continente, ilhas e águas territoriais – independentemente de quem detenha a posse e/ou propriedade dos fósseis e independentemente de estes se encontrarem ou não presentes em Portugal.