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5. O Quadro da Defesa contra o Tráfico Internacional no Brasil 124

5.2. Definições para o Trabalho de Análise 127

Adotaremos para este trabalho, a definição internacional de tráfico de pessoas que é encontrada no Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres e Crianças (Protocolo de Palermo), que

complementa a Convenção contra o Crime Organizado Transnacional, de 2000, ambos instrumentos emanados pela ONU.

Define-se tráfico de pessoas como: o recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, de abusa de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sabre outra pessoa, para a propósito de exploração. Sendo que o mesmo documento define que exploração: inclui, no mínimo, a exploração da prostituição ou outras formas de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão ou práticas análogas à escravidão, servidão ou a remoção de órgãos.

Para facilitar o entendimento, adicionalmente, pensamos que é importante definir alguns termos, de maneira a evitar ambigüidades com os termos utilizados e práticas citadas no decorrer do trabalho.

Prostituição: a prostituição e exploração sexual não são definidas no Protocolo de Palermo. Organizações não governamentais, ativistas, acadêmicos e políticos criaram diferentes definições, mas falta um consenso internacional sobre o que a prostituição envolve. Diferentes posições acerca de questões morais atinentes à prostituição e se deve ser reconhecida como um emprego legítimo têm contribuído para o dissenso sobre essa questão. De acordo com a IOM (IOM, 2004), prostituição abarca situações de escravidão sexual, ou sexo para a sobrevivência – venda de serviços sexuais por pessoas que não têm alternativas à sobrevivência, como jovens sem-teto e mulheres em situação de pobreza – passando por situações de venda de serviços sexuais de “classe média”, incluindo algumas formas de venda de serviços sexuais nas ruas, nas quais os dois adultos consentem, ainda que essa relação seja marcada pelo gênero, ocupação, etnia, status sócio-econômico, e valores culturais.

Prostituição Infantil: utilização de uma criança em atividades sexuais em troca de remuneração ou outra forma de pagamento; definição encontrada no Protocolo sobre Venda de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil; complementar à Convenção sobre Direitos da Criança.

Trabalho Forçado: significa todo trabalho ou serviço que é extraído de uma pessoa sob ameaça de punição ou para o qual a pessoa não se ofereceu voluntariamente. Definição encontrada na Convenção sobre Trabalho Forçado (1930, modificada pela revisão de 1946).

Exploração do Trabalho Infantil: todas as formas de escravidão ou práticas assemelhadas, como a venda e o tráfico de crianças, escravidão ou servidão por dívidas, e trabalho forçado ou obrigatório, incluindo recrutamento compulsório de crianças para participação em conflito armado. Definição da Convenção da Organização Internacional do Trabalho, sobre Trabalho Infantil, de 1999.

Escravidão: estado ou condição de uma pessoa sobre a qual alguém exerce todos os poderes de propriedade. Definição da Convenção sobre Escravidão, que entrou em vigor em 1927.

Instituições e Práticas Assemelhadas à Escravidão:

1. escravidão por dívida – estado ou condição que advém da constrição do credor para serviços pessoais do devedor ou de pessoa que esteja sob a autoridade do credor como pagamento ou caução de dívida, se o valor desses serviços não forem destinados ao pagamento da dívida ou se a duração e natureza desses serviços não são, respectivamente delimitados e definidos.

2. Qualquer instituição ou prática na qual i) a mulher, sem direito à recusa, é obrigada a se casar ou é dada em pagamento por divida de seus pais, guardiões, familiares ou de outra pessoa de sua comunidade; ou ii) o marido, a família do marido, ou seu clã, tem o direito de transferir a esposa para outra pessoa pelo valor recebido, ou situação semelhante ou iii) com a morte do marido, a esposa é herdada por outra pessoa.

3. Qualquer instituição ou prática na qual os pais ou os guardiões entregam uma criança ou adolescente com menos de 18 anos a outra, para pagamento ou não, com o propósito de explorar a criança/ adolescente ou seu trabalho.

As definições sobre instituições e práticas assemelhadas à escravidão são encontradas no artigo 1º da Convenção sobre a Abolição da Escravidão, do Tráfico de Escravos e das Instituições ou Práticas Assemelhadas à Escravidão.

Servidão: estado ou condição no qual a pessoa se encontra nas situações descritas no artigo 1º da Convenção sobre a Abolição da Escravidão, do Tráfico de Escravos e das Instituições ou Práticas Assemelhadas à Escravidão.

Desigualdades de gênero: diferenças entre sexos socialmente construídas. Piscitelli (2003) coloca que o termo gênero remete a uma não fixidez, não universalidade no caráter das relações entre características consideradas masculinas e femininas e na maneira como elas atravessam as relações sociais, incluindo as relações entre homens e mulheres.

Assim sendo, são consideradas atividades de tráfico de pessoas situações de abuso explicitadas no Protocolo de Palermo (exploração da prostituição ou outras formas de exploração sexual; trabalho ou serviços forçados; escravidão ou formas assemelhadas de escravidão; servidão e remoção de órgãos) E a ocorrência dos métodos (a pessoa foi recrutada, transportada, acolhida ou recebida?) E a ocorrência dos meios (o indivíduo foi coagido, enganado, raptado, ameaçado, forçado? Houve abuso de poder ou abuso da posição de vulnerabilidade do indivíduo? Pagamentos ou benefícios foram dados ou recebidos?).

Com este painel de definições, a intenção não é apenas trazer precisão à análise, mas também evidenciar quais os direitos humanos que estão sendo violados com este tipo de atividade. Podemos identificar, de pronto, violação ao direito à liberdade (autodeterminação), à integridade física, de locomoção, de não discriminação. Também se pode apontar violação de direitos relacionados ao trabalho, o que no fim das contas reverbera no direito à liberdade – trabalho forçado e escravidão, condições dignas de trabalho. O direito à saúde, porque muitas vezes as condições de trabalho, moradia e alimentação expõem as pessoas a riscos graves de saúde. Enfim, muitos aspectos ligados à dignidade do ser humano são postos em xeque a partir deste tipo de atividade. Esse contexto de violação justifica, na nossa opinião, justifica a propositura de políticas públicas que de alguma maneira sustem essas atividades de tráfico, bem como a coordenação internacional de monitoramento e tutela dessas atividades. Como Leal (2002) coloca:

No que tange aos direitos humanos, esta forma de tráfico configura-se como relação criminosa de violação de direitos, exigindo, portanto, um enfrentamento que responsabilize não somente o agressor, mas também o Estado, o mercado e a própria sociedade. Esse enfoque desloca a compreensão do fenômeno, antes centrada na relação vítima/vitimizador, para a de sujeito portador de direitos, o que permite desmistificar, nas análises e enfrentamento da questão, a hegemônica concepção mecanicista do discurso repressivo, moralista e vitimizador. Trabalha- se, assim, o referencial dos direitos humanos, afirmando-o como marco orientador da explicitação e do enfrentamento do tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial”. (LEAL, 2002, p. )

Como apontamos no capítulo 1, acreditamos que a defesa de direitos civis é feita também através da ação positiva do Estado, sob a forma de políticas públicas. No caso em que apresentamos, o tráfico de pessoas, em que direitos civis são ameaçados, juntamente com direitos sociais, a omissão do Estado, significa um aprofundamento da violação aos direitos civis. Se, de um lado, existe esse agravamento, e não retração das atividades de tráfico e exploração, por outro lado, a

minoração de vulnerabilidade da população, através da reafirmação dos direitos sociais, e, portanto, ação do Estado através de políticas públicas sociais, serve para minorar a potencialidade de violação de direitos civis.

5.2.1 Migração e Tráfico de Pessoas

A mobilidade é um ponto-chave em ambos os casos. Mas, nem todos os migrantes encontram-se em situação de tráfico, mesmo aqueles que estão ilegais no país. Vainer (2001) recorre à teoria liberal clássica para estabelecer a diferença. Segundo Vainer (2001), para a teoria liberal, o mercado é visto como um ambiente no qual o exercício da liberdade é pleno. E o mercado de trabalho, por extensão, também: os detentores de capital e os detentores do capital humano condicionam-se livre e mutuamente no processo de busca da alocação e localização ótima. Essa teoria vê a migração como um exercício desta liberdade, ou seja, a liberdade caracteriza o trabalhador e caracteriza o migrante – que tem domínio sobre si mesmo para deslocar-se e escolher como vai viver a vida.

A situação de tráfico não se caracteriza pela liberdade, antes, caracteriza-se pela vulnerabilidade e restrição de liberdade.

A imigração ilegal é muito confundida com tráfico internacional de pessoas. Isso porque, de muitas maneiras, os eventos relacionados ao tráfico são definidos pelo resultado de um processo migratório: se o processo migratório acaba bem, quer dizer, a pessoa fica contente com o resultado, é classificado como migração; se não acaba bem, é considerado tráfico. A complexidade em distinguir uma situação de tráfico de uma situação de imigração irregular torna difícil a análise de ocorrências de tráfico. A diferença entre os dois fenômenos é quase sempre uma questão de percepção. De acordo com a IOM (2004),

Attempts to draw a clear line between migration and trafficking have been described as working in “terminological minefields”. The generalizations in identifying the differences between the two concepts can be misleading. Likewise, attempts by some to “ring-fence” trafficking as an isolated and peculiar phenomenon unconnected to migration has made it increasingly difficult to locate and understand trafficking. (IOM, 2004, p.15).

Atualmente, não há instrumentos teóricos ou legislativos que resolvam as ambigüidades e incertezas que estão relacionadas com o tráfico internacional de pessoas. A concepção de tráfico que o Protocolo de Palermo coloca hoje é ampla, e requer uma analise da situação de tráfico na sua totalidade. Para entender a violação de direitos humanos, e planejar ações de prevenção, resgate, reinserção e

reintegração, é preciso explorar o contexto de migração, padrões de migração e seus resultados. Apesar de perceber que é boa a intenção do legislador, essa abordagem da situação de tráfico impede uma aplicação fácil do protocolo internacional. A recomendação da IOM é de que: “Thus, in some respects policy

guidelines to address trafficking for adults must have provisions for subverting trafficking by enabling access to affordable and safe migration channels (note that the same statement is not applicable for children)”. (IOM, 2004, p.16). Não é papel

deste trabalho fazer este tipo de recomendação, mas pensamos que esse tipo de abordagem somente será possível quando políticas de enfrentamento ao tráfico internacional de pessoas deixarem de ser pensadas de maneira isolada pelos países, ou seja, quando houver uma política global, nos termos de Bresser-Pereira (2002) sobre o tema.