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5. O Quadro da Defesa contra o Tráfico Internacional no Brasil 124

5.4. Legislação Referente ao Tráfico de Pessoas 137

O primeiro documento internacional contra o tráfico (1904) mostrou-se ineficaz não somente porque não era propriamente universal, como também porque revelava uma visão do fato centrada na Europa. O segundo documento, de 1910, complementou o primeiro, na medida em que incluía provisões para punir aliciadores, mas obteve apenas 13 ratificações. Os instrumentos seguintes de 1921 e 1933, que foram elaborados no contexto da Liga das Nações, eram mais abrangentes, mas definiam o tráfico independentemente do consentimento da mulher. Esses quatro instrumentos foram consolidados pela Convenção de 1949, que permaneceu como o único instrumento especificamente voltado ao problema do tráfico de pessoas até a adoção da Convenção de Palermo e de seus Protocolos. (JESUS, 2003, p.27).

A Convenção e Protocolo Final para a Supressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio foi ratificada pelo Brasil em 1958. De acordo com Jesus (2003) e Massula e Melo (2003), essa convenção estava centrada na questão da prostituição e procurou criminalizar os atos com ela relacionados, embora excluísse a própria prostituição da criminalização. O instrumento ainda vigora e iguala tráfico à exploração da prostituição. O mais grave era que a Convenção permitia a expulsão de mulheres que tinham sido submetidas ao tráfico e que viviam da prostituição. (MASSULA; MELO, 2003).

A próxima menção a essa atividade está contida na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, ratificada pelo Brasil. O artigo 6° da CEDAW estabelece que os Estados-partes tomem medidas

apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para suprimir todas as formas de tráfico de mulheres e exploração de prostituição da mulher. Essa Convenção foi fortalecida pela ratificação pelo Brasil, em 28 de junho de 2002, de seu Protocolo Facultativo que permite a apresentação de denúncias de sua violação ante o Comitê da ONU que monitora a Convenção.

Mas, é a Convenção da ONU contra o Crime Organizado Transnacional que foi adotada em novembro de 2000, que vai tratou de maneira específica do tráfico de pessoas, ao incluir o Protocolo para Prevenir, Punir e Erradicar o Tráfico de Pessoas, especialmente de Mulheres e Crianças.

O Protocolo de Palermo divide-se em três grandes seções. São vinte artigos no total. A primeira parte preocupa-se com a definição de tráfico de pessoas, que já foi endereçada anteriormente no trabalho. A segunda parte do Protocolo tenta padronizar a proteção e assistência às vítimas. O conteúdo desses artigos (6º-8º) é complementar à Convenção para a proteção de vítimas e testemunhas. A idéia é que sejam providenciados serviços de suporte à pessoa em situação de tráfico, principalmente no caso de repatriação. Além desse atendimento, o protocolo prevê uma compensação pelos danos causados à pessoa.

É requerido aos países que providenciem suporte para a pessoa traficada: alimentação, alojamento, aconselhamento psicológico, hospitalar, etc. O repatriamento, quando for feito, deve levar em conta a segurança da pessoa e os procedimento legais que estão sendo feitos no país, devido ao resgate da pessoa. A importância desse procedimento é possibilitar que a vítima testemunhe, aumentando a quantidade de condenações dos traficantes e intermediários. O Protocolo invoca o principio da não-discriminação para as pessoas em situação de tráfico, numa tentativa de evitar a revitimização das pessoas que passaram por este tipo de exploração devido às crenças sociais. Pede, também, que medidas legislativas sejam adotadas nos Estados-partes, para que as vítimas de tráfico possam permanecer se possível, permanentemente; caso contrário, temporariamente.

A terceira parte do Protocolo está relacionada a mecanismos de prevenção e à cooperação internacional. As agências policiais dos países que ratificam o Protocolo devem cooperar entre si, trocando informações, realizando treinamentos de pessoal em conjunto e. Além disso, o diploma prevê que o controle de fronteiras seja realizado de tal maneira a controlar as atividades de tráfico. Campanhas públicas de informação são consideradas como importantes neste Protocolo. Prevê-

se, também, que os Estados-partes adotem medidas legislativas internas necessárias à efetivação do Protocolo, inclusive em matéria penal.

O consentimento da vítima não é importante para aplicação do Protocolo de Palermo. Caso ele tenha sido dado, o Protocolo considera esse consentimento viciado, seja pela fraude, seja pelo uso de violência no convencimento, seja pelo ato violento de obrigar a outra pessoa a fazer aquilo que se deseja dela, seja pela coerção (de cobrança pagamento de dívidas, por exemplo), seja pela vantagem auferida pela vulnerabilidade da pessoa (discriminação, problemas de saúde, etc.).

Na opinião de LEAL (2002), a tipificação jurídica do tráfico, expressa no Protocolo de Palermo, demonstra seu enfoque restrito, caracterizado pelo uso da violência, pelo abuso de autoridade e pela coação. Não permite uma descrição mais detalhada das pressões estruturais e das estratégias de ações subjetivas, inerentes ao fenômeno. É muito genérico, preso ao texto da violência criminal e deslocado de uma análise macro social e cultural do fenômeno. Entretanto, o aspecto genérico da lei torna-se estratégico uma vez que, ao ampliar o objeto, inclui todas as formas de tráfico humano (exploração sexual comercial e outras formas de trabalho forçado e escravo) e descarta idade e sexo.

5.4.2 O Marco Legal Nacional74

São os artigos 231 (tráfico internacional de mulheres para fins de prostituição), 227, 228 e 229 (as diversas formas de lenocínio) do Código Penal Brasileiro; e o artigo 244-A (submissão de crianças e adolescentes à prostituição e à exploração sexual) do Estatuto da Criança e do Adolescente. O Tráfico de homens ou de transexuais adultos não é considerado crime, nem o tráfico interno de pessoas pelo Código Penal. A competência para a Investigação de tráfico internacional de pessoas é da Polícia Federal e para julgar, do Judiciário Federal.

O diagnóstico do Ministério da Justiça, a respeito de processos e inquéritos que têm como escopo o tráfico de pessoas não é animador. O preconceito ainda é um grande inimigo do combate ao tráfico de seres humanos.

De acordo com o Ministério da Justiça,

Durante a pesquisa ficou evidente a visão preconceituosa de parte dos policiais responsáveis pela investigação com relação às vítimas. Muitos acreditam que as mulheres foram aliciadas por serem prostitutas e, logo, carregariam uma parcela

de culpa pela sua situação. Uma visão absolutamente equivocada do ponto de vista legal uma vez que, em nenhum momento, a legislação menciona a conduta da vítima como relevante para o crime de tráfico. As estatísticas apresentadas nesse diagnóstico mostram ainda que o tráfico não faz vítimas apenas entre as profissionais do sexo. (COLLARES, 2004).

Outra tendência comum dos agentes responsáveis pelo combate ao tráfico, de acordo com o Ministério da Justiça, é considerar este crime menos relevante que outras ações, como o tráfico de drogas e de armas. Mesmo assim, a pesquisa revela que há um crescimento considerável no número de casos investigados em 2003 em relação aos anos anteriores. Dos 36 casos instaurados nos quatro estados, nos últimos quatro anos, mais da metade (51%) são de 2003. O maior número de processos e inquérito em andamento estão no estado de Goiás. Para o consultor do Ministério da Justiça, isso se dá porque as goianas levadas ao exterior não costumam ter experiência prévia com a prostituição.

A grande maioria dos casos somente chega às autoridades devido a denúncias anônimas ou depoimentos de parentes, amigos ou da própria vítima. Apenas 30% dos casos chegaram ao conhecimento das autoridades depois de investigação policial ou prisão em flagrante do réu. A pesquisa de Collares (2004) mostrou que Esse dado indica que uma campanha de esclarecimento da sociedade sobre o tráfico, que ensine a população a identificar o crime, pode ajudar num combate mais efetivo.

Collares (2004) analisou 36 processos, e coloca que o tempo médio de duração dos inquéritos é superior a 90 dias, havendo casos com mais de dois anos de duração que ainda não foram relatados. A demora no envio dos inquéritos à Justiça ou a necessidade de devolução à polícia para novas investigações explica o pequeno número de julgamentos constatado pelo pesquisador.

A contabilização da Pestraf (LEAL, 2002) dá-se de acordo com a Tabela 4.

Tabela 4: Inquéritos e Processos sobre Tráfico Internacional de Pessoas

Norte Nordeste Centro-Oeste Sull Sudeste

Inquéritos 7 13 35(32 GO) 12 20 Processos Judiciais∗ 8 1 13 (9 GO) 4 27(25RJ e 2SP) Fonte: LEAL (2002).

Já a pesquisa de Jesus (2003) aponta 22 casos de tráfico de mulheres, especificamente, no Brasil, em 2003, sendo que 10 deles são especificamente de tráfico internacional de pessoas. (JESUS, 2003, p.180).

Como se pode perceber, existe uma grande diferença entre os números: o numero de pessoas estimadas em situação de tráfico é muito maior do que o numero de inquéritos abertos, processos na justiça e o numero é ainda menor de condenações (LEAL, 2002). Esse quadro de impunidade aumenta ainda mais a dificuldade em combater essa atividade.

5.4.3. Panorama Geral do Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas Sobre o enfrentamento, Jesus (2003) pronuncia-se:

O Governo brasileiro não preenche completamente os padrões mínimos para a prevenção e repressão do tráfico de seres humanos. Não obstante estar envidando alguns esforços, há evidente restrição orçamentária e ausência de coordenação entre os níveis federal e estadual. Em nível local, o combate é prejudicado pela corrupção. Embora as vítimas não sejam tratadas como criminosos, o acesso a abrigos e a serviços legais, médicos e psicológicos é consideravelmente limitado, e seria muito pior não fosse o trabalho de algumas organizações não-governamentais nacionais. (JESUS, 2003, p. 75).

Como dificuldades para repressão e prevenção, este autor considera: 1) o fato de que esse crime não é considerado como prioritário para a Polícia Federal, que tem recursos humanos e orçamentários, bem como de infra-estrutura, escassos;75 2) a conivência da família das pessoas em situação de tráfico, o que

dificulta as investigações; 3) a incompatibilidade da legislação brasileira com a legislação dos países de destino, o que torna indispensável a cooperação internacional, e portanto, comprometimento do Ministério das Relações Exteriores; 4) a falta engajamento de um organismo internacional responsável pela tutela internacional da atividade, como por exemplo, o Tribunal Penal Internacional e finalmente, 5) a discriminação da mulher em situação de tráfico pelas autoridades públicas no Brasil.

Collares (2004), em seu diagnóstico, aponta como causas de impunidade: 1) falta de informação da vítima, seus familiares e amigos; 2) grande dificuldade para realização de prisões em flagrante, bem como para a coleta de provas, e para a localização dos mentores intelectuais e financeiros do crime; 3) preconceito dos

75 Levando-se em conta o relatório de 2004 do PPA, a Polícia Federal, em seus programas não abarca o assunto tráfico de pessoas. Ver Ministério do Planejamento (2004).

agentes de polícia e, muitas vezes, juizes e outros operadores de direito e 4) legislação interna, que não está em sintonia com o Protocolo de Palermo.

Leal (2002), além da questão da impunidade, a autora coloca a falta de visibilidade e o fato de que o debate sobre tráfico internacional de pessoas é recente na administração pública como fatores dificultadores do combate. Conselhos, coordenadorias, delegacias, não têm informações precisas sobre o tráfico em si. Os bancos de dados desses órgãos têm dados sobre atividades relacionadas, como abuso sexual, exploração sexual, desaparecimentos, etc.

Finalmente, há que se frisar que os consulados e embaixadas do Brasil no exterior também não têm nem preparo para atender às vítimas, nem tradição de coleta de dados para orientar políticas internas.