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O Santo Daime em São Paulo: Igrejas, Símbolos e Personagens.

2.1 Definições Teóricas

Pretendemos traçar uma análise do Santo Daime, do sentido daimista de ser, a partir do que Geertz considera uma descrição densa da cultura desses indivíduos sociais. Procura-se entender como os daimistas - como atores do jogo social - interpretam os significados mostrados pelo daime nas mirações, nos rituais, no dia-a-dia e na vida em comunidade.

Considerando a cultura – metaforicamente falando - como um conjunto de textos que demandam interpretação, a etnografia mostra-se um meio eficaz de compreendê-los a partir do ponto de vista dos fiéis do Santo Daime. Estudaremos um caso local, uma comunidade

particular do Santo Daime, buscando compreender as especificidades ali presentes, sem a pretensão de esgotar totalmente o assunto ou chegar a grandes generalizações etnológicas.

Em um primeiro momento , estaremos tratando o Santo Daime como religião, embora como veremos mais adiante, os fiéis entrevistados na pesquisa podem defini-lo de outras maneiras15 . Dessa maneira, o primeiro passo que realizaremos é definir o que se compreende como religião. Em afinidade com nossa linha teórica, adotaremos a definição de Geertz, para quem religião é:

(...) um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações dos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas .16

Preocupando-se com a dimensão cultural da análise religiosa, Geertz afirma ser necessário à Antropologia Social alargar seus conhecimentos sobre Religião, para além da contribuição deixada por Weber, Durkheim, Malinowski e Freud, pensadores clássicos do tema. Faltaria, segundo o autor, uma análise que desvende como “a religião ajuste as ações humanas a uma ordem cósmica imaginada e projeta imagens da ordem cósmica no plano da experiência humana.”17. Conforme Geertz, sabe-se muito que isso ocorre mas não a maneira como este processo se dá. Ao longo deste trabalho me guiarei por esta interrogação, procurando construir uma explicação possível para esta experiência religiosa particular.

A partir da pesquisa participante no Céu de Midam, procurei apreender as estruturas de significado através de observações, conversas, entrevistas, fotografias e pretendo apresentar o resultado desta etnografia, tal como uma interpretação, um olhar sobre o ombro do “nativo”, como diria Geertz..

15

Escola de Magia, Santa Doutrina , Escola de Conhecimento entre outras definições forma encontradas nas entrevistas realizadas na comunidade Céu de Midam.

16

Para esse objetivo, observo que há personagens, igrejas e símbolos do Santo Daime em São Paulo, e nessa tríade me detenho para construi um mapeamento dos significados culturais desta Religião Ayahuasqueira em um contexto urbano de fragmentação e ausência de sentido próprios deste momento de aprofundamento da modernidade que vivenciamos. Os significados nos remetem a símbolos, no caso, símbolos sagrados que, na perspectiva de Geertz , existem para sintetizar o ethos - tom, caráter , estilo, disposições morais ou estéticas - de um povo:

Os símbolos religiosos formulam uma congruência básica entre um estilo de vida particular e um metafísica específica (implícita, no mais das vezes) e, ao fazê-lo, sustentam cada uma delas com a autoridade emprestada ao outro. (GEERTZ, 1989, p. 67)

Nesta perspectiva os fiéis do Santo Daime adotam este universo simbólico religioso, não necessariamente para vencer o sofrimento – nem sempre algo possível – mas para fazer deste um fardo que se possa compreender:

Para aqueles capazes de adotá-los, e enquanto forem capazes de adotá-los, os símbolos religiosos oferecem uma garantia cósmica não apenas para sua capacidade de compreender o mundo, mas também para que, compreendendo-o, dêem precisão a seu sentimento, uma definição à suas emoções que lhes permita suportá-lo, soturna ou alegremente, implacável ou cavalheirescamente.18

Em toda religião - e no nosso estudo de caso não poderia ser diferente – para conhecer é necessário primeiramente acreditar, ter fé. A visão de mundo dos daimistas em geral, e, particularmente em São Paulo, e mais especificamente no Céu de Midam acaba se delineando como uma perspectiva entre outras, como uma forma específica de se ver a vida.

17

Ibidem. p. 67.

18

Esse modo particular – que a religião oferece - de se ver o mundo e a vida, se distinguem dos campos da ciência, da arte e do senso comum, conforme Geertz.

Os rituais, enquanto “comportamentos consagrados” tornam vívidos os modelos de interpretação e ordenamento do mundo . No ritual:

(...) as disposições e motivações induzidas pelos símbolos sagrados nos homens e as concepções gerais da ordem de existência que eles formulam para os homens se encontram e se reforçam umas às outras.19

Nele fundem-se o mundo vivido e o mundo imaginado, mediados por “um único conjunto de formas simbólicas, tornando-se um mundo único.”

Segundo Geertz o grande desafio da religião é tornar compreensível a experiência do caos . A existência humana seria insuportável sem a premissa de que a vida é compreensível e de que – através do pensamento – podemos nos orientar dentro dela.

Agora, se relembrarmos os argumentos teóricos de Durkheim (1989) como parte dos estudos clássicos da religião, perceberemos que esta pode ser considerada como um “universo cognitivo” e que a vida social só é possível graças a ela, através de um vasto simbolismo que teria a função de unir os indivíduos , ou seja, a religião poderia possuir o papel de “cimento social”:

Na verdade, postulado essencial da sociologia é que uma instituição humana não poderia repousar sobre o erro e a mentira: sem isso ela não poderia durar. Se não tivesse por base a natureza das coisas, encontraria nas coisas resistências que não conseguiria vencer .

( DURKHEIM, 1989, p.30)

Não há, pois, no fundo, religiões que sejam falsas. Todas são verdadeiras à sua maneira: todas respondem, ainda que de maneiras diferentes, a determinadas condições da vida humana.

19

Nas Formas Elementares da Vida Religiosa , Durkheim conceitua a religião da seguinte forma :

(...) uma religião é um sistema solidário de crenças seguintes e práticas relativas a coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas : crenças e práticas que unem na mesma comunidade moral, chamada igreja, todos o que a ela aderem. 20

Dessa forma, Durkheim destaca a importância dos fiéis, da comunidade – a igreja – para a constituição do que se denomina religião; ela não é apenas crenças e rituais, mas é algo “eminentemente coletivo”. Este fato se revelou de forma evidente na etnografia no Céu de Midam, onde a vida simbólica e as crenças da Igreja só faziam sentido e ganhavam força, vivacidade, nos momentos de ação coletiva, seja nos rituais, onde os trabalhos espirituais demandavam a participação e dedicação de toda a irmandade, como nos mutirões para manutenção do espaço da comunidade.

Como os significados simbólicos presentes na religião ganham vida nos rituais, este trabalho contará também em sua estrutura teórica com a contribuição do antropólogo Victor Turner. Turner (1974) que distingue – ao falar dos ritos de passagem – os conceitos de

estrutura e communitas , dois “modelos” de correlacionamento humano justapostos e

alternantes:

O primeiro é o da sociedade tomada como um sistema estruturado, diferenciado e freqüentemente hierárquico de posições político-jurídico- econômicas, com muitos tipos de avaliação, separando os homens de acordo com as noções de “mais” ou “menos” . O segundo, que surge de maneira evidente no período liminar, é o da sociedade considerada como um “comitatus” não estruturado, ou rudimentarmente estruturado e relativamente indiferenciado, uma comunidade, ou mesmo comunhão de indivíduos iguais que se submetem em conjunto à autoridade geral dos anciãos rituais. ( TURNER, 1974, p. 119)

20

Dessa maneira, a “communitas” indicaria a vida em comum diferenciando-se das distinções de posição hierárquicas presentes na estrutura. Ainda segundo Turner:

A “communitas” pertence ao momento atual; a estrutura está enraigada no passado e se estende para o futuro pela linguagem, a lei e os costumes.

(. . .)

De tudo isso, concluo que, para os indivíduos ou para os grupos, a vida social é um tipo de processo dialético que abrange a experiência sucessiva do alto e do baixo, de communitas e estrutura, homogeneidade e diferenciação, igualdade e desigualdade. (idem, p. 138)

Este autor, à semelhança de Geertz, procura compreender os significados dos símbolos de uma determinada cultura – “o outro” – em sua alteridade , ou seja, na perspectiva do “nativo” – olhando sobre seu ombro - , tomando precauções para que a análise etnológica não se torne apenas uma projeção do antropólogo e de seu universo cultural.

Acredita-se que os processos rituais podem nos ensinar muito sobre as peculiaridades de diferentes povos e sociedades , desde que o antropólogo se dedique a conhecer como os participantes do ritual vêem internamente a cerimônia, o modo como sentem e percebem-na. Em uma de suas principais obras, O Processo Ritual (1974) , Turner nos mostra que não basta apenas observar as pessoas realizando gestos estilizados ou cantando enigmáticas canções, mas faz-se necessário um tremendo esforço para alcançar os significados que estas palavras e movimentos possuem para elas. No caso dos rituais do Santo Daime isto também se configura como uma grande verdade, o que determinou uma profunda atenção aos trabalhos espirituais realizados na Igreja Céu de Midam, ouvindo as falas dos fiéis que participaram do ritual, seus hinos, a dança ritual, e outros momentos e performances no interior do salão sagrado.

Este autor afirma ainda que os símbolos dentro de um ritual são dinâmicos e múltiplos em significados, onde compreendê-los exige que enxerguemos a totalidade do rito, sua semântica , seu contexto.

Torna-se de grande relevância registrar aqui a forma que Turner conceitua o símbolo, que, segundo o autor, teria a função de intermediar as relações entre “estrutura” e “communitas”. O símbolo possui um caráter polissêmico, dinâmico e é investido de um grande valor real para aquele que o vivencia em um ritual.

Dito isso, vejamos agora como se configura o Santo Daime como religião e como cada daimista percebe-se no contexto destes símbolos sagrados , como cada indivíduo – a partir daí - organiza sua experiência de vida .