• Nenhum resultado encontrado

Alguns antropólogos e outros pesquisadores se utilizaram do termo “xamanismo” para interpretar as crenças e rituais no Santo Daime. Como exemplo citamos Couto (1989) que escreve sobre a existência de um “xamanismo coletivo” nos grupos daimistas, pois todos os participantes do ritual seiram, potencialmente , xamãs quando ingerem a bebida sagrada e realizam o “vôo da alma”, entrando assim em contato com o mundo espiritual e com as entidades e seres desta dimensão .Já o antropólogo Groisman 1991) propõe o conceito de “práxis xamânica”, pois haveria elementos dentro do ritual e cosmologia daimistas que remeteriam ao xamanismo, sem necessariamente formar um sistema xamânico. Entre estes elementos podemos citar o uso de substâncias expansoras de consciência, a concepção de um

mundo dual – o mundo espiritual verdadeiro (chamado também de mundo astral) em contraposição ao mundo real (ilusório), a idéia de batalha espiritual , etc.

Dentro desta perspectiva de identificação do xamanismo com o Santo Daime , podemos contar com algumas reflexões trazidas por Jussara Araújo, que estudou uma comunidade daimista no município de Aiuruoca, sul de Minas Gerais:

Nem todas as pessoas que participam de rituais de yagé participam, necessariamente, de um ritual de iniciação xamânica . Muitos participam para obter curas de doenças físicas ou psicológicas, como a dependência do álcool ou das drogas químicas. Muitas entram e saem de um ritual xamânico do mesmo modo, sem passar por nenhuma experiência.

( ARAÚJO, 1999, p.28)

Entretanto, todos que participam dos trabalhos espirituais do Santo Daime e são, segundo Araújo, sensibilizados para a auto-cura, acabam por encontrar seu caminho de renascimento. Se aceitarem que precisam renascer, deixar, abandonar a velha vida e mudar em 180º suas atitudes e valores, então é como se tivessem passado por uma iniciação xamânica de morte e renascimento :

Tradicionalmente excluída e cotidianamente violentada, a grande maioria das pessoas que procuram o Santo Daime na região amazônica, obtêm com a oaska seus raros momentos de consolo emocional, momentos de religação com o sagrado, de busca de equilíbrio. (idem , p. 31)

De toda forma, podemos dizer que o xamanismo existente em São Paulo, nos rituais daimistas, é uma reelaboração do que seria o xamanismo das populações indígenas, podendo ser definida como “neo-xamanismo”. Isto, entre outras razões, porque no processo histórico de constituição das religiões, grupos e linhas que fazem uso da bebida sagrada – a ayahuasca – os sujeitos acabam por construir novas dinâmicas sociais, culturais e simbólicas. O Santo

Daime é hoje procurado por pessoas de diferentes classes sociais e também por indivíduos das mais diversas nacionalidades.:

A mundialização cultural do Santo Daime é real. Para os oasqueiros , o Santo Daime é um convite da floresta amazônica para vermos o ser universal que temos dentro de nós”. (ibidem, p. 31)

As novas visões de mundo desses personagens das classes médias urbanas do Sul do Brasil acabam por dar novos contornos à doutrina, cosmologia e rituais do Santo Daime. Podemos perceber também, uma diferenciação – dentro desta perspectiva xamanística - entre a salvação individual no catolicismo e a salvação coletiva, contida nos rituais do Santo Daime :

Nem o advento do catolicismo e a adoção de seus arquétipos modificou a idéia da salvação coletiva, presente nos rituais xamânicos. A redenção no catolicismo é pessoal. No daimismo é coletiva. Por isso, o daimista é um guerreiro. Seus irmãos também tem que estar bem. Esse é o significado do vôo xamânico. É o vôo da águia não porque o guerreiro passa a ver mais, como a águia. Não apenas isto. Mas porque, como a águia tem o poder de fazer com que todos vejam do alto. É o pensamento que se eleva a Deus. (op. cit , p 126-127)

Jussara Araújo nos fala também sobre o paralelo existente entre as culturas pré- colombianas e a especificidade do xamanismo existente no CEFLURIS e sobre como ocorre esta troca entre Deus e os pedidos que são feitos numa cerimônia daimista :

No Santo Daime de Irineu Serra, de Sebastião Mota e de Alfredo Gregório há um resgate das normas e regras presentes nas culturas ameríndias pré-portuguesa/espanhola. A diferença é que o ritual do sangue foi substituído pelo ritual do amor. O sacrifício do daimista é o amor. Ele baila, canta, toca instrumentos musicais e faz um exercício sobre o amor divino. E assim oferece sua energia para a cura daqueles que vão às igrejas daimistas em busca de uma cura física ou emocional. Por isso, ser daimista é um ato de coragem. O daimista oferece sua ação cinestésica/seu amor, para curar os doentes. Ele sofre mais é feliz, por que trabalha para a cura do irmão. (op. cit. , p 127)

De toda forma o Santo Daime é definido por alguns de seus membros como Xamanismo Cristão, uma doutrina e prática religiosa que agrega ocidente e oriente, construindo – portanto – uma ponte entre estas duas tradições. Léo Artése, comandante da Igreja Céu da Lua Cheia , em Itapecerica da Serra-SP, assim estabelece uma comparação entre o Santo Daime e o Xamanismo :

A semelhança entre os trabalhos, são o vôo da alma, a jornada de auto-conhecimento. O Daime é uma Doutrina Xamânica, por excelência. Desde o sacramento (ayahuasca) até a farda (traje de poder), hinos (canção de poder/ícaros) o bailado(dança ritual), as defumações (purificação e limpeza), os instrumentos (maracá, tambores) e por aí vai. O xamanismo pode ser subdividido atualmente em dois . O xamanismo tradicional : que segue as tradições nativas. O neo-xamanismo : que adapta a essência, com práticas terapêuticas, numa realidade urbana etc.. Eu não consigo me classificar em nenhuma das duas linhas, eu prefiro dizer que xamanismo para mim é Universal. Atualmente, muitos xamãs, inclusive no Peru, rezam para Cristo. E, que Jesus, foi o Xamã Iluminado, e encarnou nesta Terra. Podemos, numa abordagem mais abrangente dizer que Santo Daime é um Xamanismo Cristão, a Umbanda também, a UDV, a Barquinha, o Catimbó, os cerimoniais com cogumelos de Maria Sabina, e outros. Existem traços do xamanismo em todas as religiões : no Budismo Tibetano, no Judaísmo, no Tantrismo e até no Cristianismo.Quando uma pessoa diz que eu misturo, eu respondo que não....Eu apenas não separo ! Pois tudo está conectado ! E esta é a essência do Xamanismo.

Léo Artése, que pode ser considerado um xamã urbano, realiza um ritual denominado “Trabalho de Lua Cheia” que se caracteriza – como ele próprio afirma - pelos princípios do chamado “ Xamanismo Cristão” e por um forte ecletismo envolvendo vários elementos – afro-brasileiro, esoterismo, budismo, religiosidade oriental, etc – como fica claro no ritual, onde se canta e baila para a Lua Cheia, para Oxossi, Krishna, Buda, Cristo, Saint Germain, a Águia e ao Leão – tudo num único dia, numa mesma cerimônia.

Figura IV – Trabalho Espiritual no Céu da Lua Cheia. Com o violão, Léo Artése, comandante desta Igreja.

Figura V – Mesa Central do Céu da Lua Cheia (Itapecerica da Serra – SP) Elementos: Cristais, sino tibetano, Virgem da Conceição, Mestre Irineu,etc.