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Escreveremos agora sobre a vivência de Ray em uma cerimônia de feitio28 de daime no Céu de Midam, em que nos relata sobre os personagens desta igreja e sobre seu papel como pintor da doutrina:

O feitio estava marcado para julho no Céu de Midam, uma comunidade que cresceu ali em Piedade, uma montanha farta e forte,um berçário que era exemplo ... Eu conhecera os filhos do Padrinho Jonas, no feitio do Flor das Águas: O Kelmir seu primeiro filho, verdadeiro guerreiro de Juramidam, ele em sua armadura brilhava no trabalho, era um feitor determinado; o segundo Demétrius era mais calmo e contido;e o Jonas

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Cerimônia de produção da bebida sagrada, o daime, em que cipó (jagube), folha (rainha), água e fogo juntos formarão o vinho das almas.

adotara um outro, este tornou-se o jardineiro do berçário, e ali deveria dar amor,dali receberia amor... Apoiado neste triptico : irmãos fortes, a comunidade e a doutrina, o reinado pode crescer.

Ray fez suas malas, pediu a seu filho Rafael que emprestasse uma barraca, e foram para Piedade, deixando sua esposa Hiromi – também artista plástica – cuidando de seu lar:

Era meu segundo feitio no Céu de Midam. Falei com meu filho, que nós vamos viajar; perguntou Hiromi de nosso destino, falei que era uma montanha,onde nada se move,se não é onde quer ir (e ela queria um Comandatuba da vida, não o frio em uma cidade de interior)e ficou ela de guardiã de nosso castelo; eu e meu filho caimos na estrada, cantando meu refrão: “Só nois ! Só nóis! Que aguenta Nóis, Chapado!

Vinte quatro horas

Viajando A semana inteira Só nóis! Só nóis! Que agüenta Nóis”

Chegando no sítio onde se localiza a Igreja e a Comunidade Céu de Midam, Ray e Rafael - após enfrentaram o gélido frio que está presente naquela localização em Piedade - organizaram-se para pintar o feitio:

O frio nos cortava, três graus, as cinco da manhã, o gelo se formava em meu pára-brisa,e a cada posto parávamos para derreter o gelo,e continuar a viajem. Os campos estavam ueimados de geada, o branco neve tomou

conta de meu verde,mas lá chegamos,e meu filho foi montar barraca,peguei meu material de pintura,e fui para a casa de feitio, no meio da mata,montar tela, e pintar magia. Fazíamos ali uma transmutação. Diziam meus irmãos que fazíamos seres divinos, portanto respeito e silêncio,era nossa disciplina.

A pintura no Santo Daime , para Ray, era uma forma de fazer magia, pois tratava-se de retratar as divindades e os momentos divinos da Cerimônia Sagrada do Feitio. Dessa forma, o artista se prepara para sua missão, primeiramente consagrando o Santo Daime:

O Orlandinho me serviu meu primeiro Daime. Ainda sem um café da manhã entrei em trabalho, e ali estava quando a panela emperrou,eram duzentos e cinqüenta quilos aproximadamente seu peso,e não havia homens que a retirassem do lugar. Aproximei-me para ajudar, pedi que se retirassem da proximidade desta, e, com uma alavanca de cinco metros,arranquei dali aquela panela,para escoar o daime

E brincando contei a historia do velho grego, “Arquimedes” e voltei aos meus afazeres, pintar um feitio é difícil por ser ele um espelho de vaidades, nossos caciques aparecem, todos eles, e nós, os índios, rachamos lenha, alimentamos a fornalha, e desfibramos jagube, por dias e noites adentro; a fornalha não apaga, não se tem tempo de pousar na terra,é no ar, e é no Daime, é na água. Respirei vapor por horas seguidas, botei minhas mãos na fornalha para ver seu grau, mirei dentro da panela a ferver, um vulcão a soltar fogo e vapor, simbiose de duas plantas.

Ray relata que cada Daime é único pois cada feitor imprime sua personalidade no Daime.Ele nos fala das características do Daime que tomara no Céu de Midam, de sua leveza, de seu sabor alquímico, que não era um sabor disponível na natureza,era algo produzido, de maneira diferente,por cada feitor. O feitor é aquela pessoa com pleno conhecimento de como preparar o Daime, saber este que recebeu de outro feitor experiente, dentro da hierarquia de feitores existentes na doutrina daimista.

Ao se dirigir para os restos do material utilizado no feitio, Ray mirava e meditava:

Caminhei até os restos de jagubes, e rainhas que depois de cozidos eram depositados em uma área a isto destinada, próximo da casa de feitio, coloquei minhas mãos naquela massa ainda quente, soltei meu ser,

abandonei o cavalo e deixei-me ali a vibrar em busca de uma sintonia,transferi-me para aquele calor,era uma coisa profunda,quente e úmida,fui sintonizando meu ser, reduzi meu tamanho, e desci em seu coração, em busca de arquivos. Em êxtase, busquei mais uma vez respostas, às minhas formulações, ao destino de nossa confraria ... Que podia eu ensinar-lhes, senão Cabala? Os secretos meios de ler as letras invisíveis, ou ver o rastro de seu Deus, o nosso Juramidam, quantas gotas deste conhecimento podia eu despejar, discretamente a ouvidos selecionados, quanto podia eu?

Passados alguns dias, Ray se preparava para partir quando Alexandre, um dos filhos de Jonas Frederico fez um último pedido ao artista do daime:

“Ray, tem um quadro que nós queremos, o da colheita das folhas da rainha,você pode pintar?” Disse que teria até o fim do dia,como marcara com meu filho,combinamos e foi ele convocar umas vinte princesas para colher meio saco de folhas, chamei o Rafael (meu filho) e disse-lhe nossa missão,eu e ele pintaríamos uma colheita de rainhas, subimos a montanha em rumo ao berçário. De tela e lápis na mão, discorri sobre a Kundalini, dei minha versão,e o Rafael tomou então seu segundo Daime, e ali no berçário,disse-lhes da energia feminina necessária no feitio, enquanto ele desenhava nosso quadro.

Ao descrever um pouco da história e dos depoimentos de Ray, procurei exemplificar com um caso específico, como os indivíduos no Santo Daime podem construir seus próprios entendimentos do que seja participar de um ritual sagrado. Ao negociar – de forma às vezes pacífica mas por vezes conflituosa – seu espaço de liberdade como artista dentro das regras ritualísticas da doutrina daimista, Ray acredita exercer seu direito ao “ecletismo” presente na sigla de sua Instituição Religiosa – Centro Eclético – e por isso torna evidente os caminhos e descaminhos que o Santo Daime tomou ao partir do Acre e Amazonas para São Paulo.