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“ A corrente de cura exige total concentração e atenção no objetivo do trabalho para que os doentes possam se entregar com toda confiança no destrinchamento espiritual de suas visões sobre a doença, a compreensão de suas causas kármicas e às transformações exigidas para que a cura possa ocorrer e se manter.” (ALVERGA, Alex Polari. 1997, p.22)

Embora em todos os trabalhos do Santo Daime esteja presente o contexto da cura, existem aqueles direcionados especificamente para este objetivo. São os chamados “Trabalhos de Cura”, que podem se subdividir em vários tipos, sendo os mais conhecidos : o Trabalho de Cura propriamente dito, o Trabalho de Estrela, o Trabalho de São Miguel, o Pronto-Socorro do Daime e o Trabalho de Cruzes.

Nesses trabalhos se cantam hinos como o descrito abaixo:

QUANDO TU ESTIVER DOENTE Quando tu estiver doente

Que o Daime for tomar Te lembra do ser divino Que tu tomou para te curar Te lembrando do Ser Divino O Universo estremeceu A Floresta se embalou

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Por que tudo aqui é meu Eu já te entreguei Agora vou realizar

Se fizeres como eu te mando Nunca há de fracassar Tu já viste o meu brilho E já sabes que eu sou Agora eu te convido Para ires aonde estou

O Trabalho de São Miguel é um ritual mais específico, que ocorre aproximadamente de três em três meses no Céu de Midam, onde se exercita a mediunidade de cada fiel. Nesta cerimônia é permitida e até estimulada a incorporação dos chamados “guias espirituais”. Lê- se, na abertura , preces kardecistas solicitando a presença de bons espíritos e o afastamento de entidades sem luz. Acompanhei um desses encontros no dia 17 de março de 2007, e , pude perceber que um dos momentos de maior envolvimento dos fiéis ocorria na “Chamada de São Miguel”, quando se canta repetidas vezes o seguinte hino :

COM O PODER DO CÉU Com o poder do Céu Da terra e também do mar Ordeno a São Miguel A força Deus é quem dá A força Deus é quem dá Para quem tem conhecimento Reconhecendo os primores E não tirar do pensamento Só Deus, só Deus, só Deus É quem pode nos segurar Para nós vencer a batalha Para adiante se alcançar Para adiante se alcançar

O que custa grande sofrimento Que é amar com firmeza À Deus Pai do firmamento

Oh Deus do firmamento É o sol e a lua

No firmamento está o carreiro O cruzeiro caminhada sua A constelação chegou

Bem juntinho da Virgem Maria No cruzeiro está o rosário Dos pedidos em agonia A força que tem é o Rei

Jesus Cristo o Mestre de sempre Tudo no coração de Maria Na terra e em todo firmamento.

Lembro também, que neste momento, todos os participantes do trabalho posicionam as mãos à altura dos ombros, da seguinte forma: a esquerda totalmente espalmada e a direita com apenas os dedos polegar, indicador e médio levantados .

Durante toda a execução desse hino, o Comandante do Trabalho – na ocasião Kelmir Jones – segura cinco velas acesas. Em seu êxtase sagrado, ele parece não se incomodar com a cera quente das velas escorrendo em sua mão esquerda. Depois de várias repetições do mesmo hino, o Comandante coloca as velas em formato de cruz, embaixo da mesa central da Casa de Cura. O objetivo desta performance ritual é pedir a permissão e a proteção de São Miguel, para a chegada dos espíritos que poderão ser recebidos pelos “aparelhos”, ou seja, os fiéis que procuram desenvolver sua mediunidade neste trabalho.

Já o trabalho de Cruzes – uma cerimônia de exorcismo e desobsessão - é mais raro de ocorrer65. Este ritual foi criado na época do Mestre Irineu, na maioria das vezes para tratar pessoas com desequilíbrio mental.

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Desde o início de 2003, quando passei a acompanhar o dia a dia no Céu de Midam, só houve um caso em que se necessitou realizar o Trabalho de Cruzes, cuja paciente era uma moradora da Comunidade, que, conforme ela mesma me narrou, estava profundamente afetada em seu sistema nervoso.

O Comandante da Igreja quando percebe a necessidade desta cerimônia , convoca alguns fiéis para dela participarem, mas apenas na ocasião em que há um membro da Comunidade que se encontre visivelmente perturbado, desviando da normalidade de seus comportamentos e ações, e que se diagnostique este mal como um caso de espírito obsessor. Se for este o caso, serão feitos no mínimo três e no máximo nove trabalhos em dias consecutivos. O número de participantes pode variar de três, cinco, sete ou nove pessoas. Quem participa do primeiro trabalho da série deve participar de todos os outros. Na cerimônia, os fiéis seguram uma vela em sua mão direita e um pequeno cruzeiro na mão esquerda. Além de uma seleção de hinos – com temáticas específicas para afastar os males espirituais que o paciente passa – lê-se uma oração denominada “Oração para Conjurar os Malefícios dos Maus Espíritos e dos Demônios Infernais”.

A concepção de doença e cura encontrada no Santo Daime envolve – como podemos perceber até aqui - questões de cunho espiritual . Podemos ter uma visão do que seja a cura para os daimistas a partir do depoimento de Padrinho Eduardo :

Tem Daime próprio para cura, e tem Daime para você tomar nos hinários, na concentração, mas pra cura é diferente, né ?! Mas o melhor Daime é o de cura ... o melhor Daime ... é o Daime que disciplina, o Daime puro... O Daime bom, que cura mesmo ... Beleza, ele cura mesmo... Conheci muitas (pessoas curadas pelo Daime). Eu dei Daime que curou , eu dei Daime para ele e ele se curou , ficou bonzinho... Mas o Daime ele cura, ele corta, ele tira ... O espírito está aqui, a matéria está lá na faca. Você vê tudo, do mesmo jeito que tem aqui na medicina dos médicos , é do mesmo jeito lá, aquela mesma coisa, o espiritual é mesma coisa. O Daime ele cura, ele corta também, ele opera, faz tudo... Tem muita doença perigosa, que ...eu lembro do Daime com o negócio de câncer... nós curamos , câncer, curamos com o Daime. E tanto a gente cura, como amansa as coisas lá de fora, aquelas coisas que vem atrás de luz, que vem no aparelho , é uma coisa que desce, que precisa de luz, precisa de Daime para tomar , e vem no aparelho, o sujeito não aguenta , cai e grita, mas a gente segura...

Padrinho Eduardo

Neste depoimento percebemos em primeiro lugar a particularidade do trabalho de cura em relação a outros rituais com o Daime. Além dos hinos serem selecionados pela temática da cura, o próprio Daime é mais concentrado que nos demais trabalhos. A pessoa, ou paciente, se vê em suas mirações no mundo astral, e pode destrinchar para si o porquê de sua moléstia. Existem aquelas pessoas que se vêem sendo operadas espiritualmente, ou que vomitam para expelir todas as impurezas e males que estão em seu organismo. É um processo que pode ser difícil para o “aparelho” , ou seja, o nosso corpo, que para os daimistas , é matéria e, portanto instrumento guiado ou influenciado pelo mundo espiritual .