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CAPÍTULO V – A potestade normativa das agências reguladoras brasileiras

5.9. A delegação normativa e a deslegalização

Segundo Carlos Mário da Silva Velloso, o poder de expedir regulamentos

não deve ser tomado como atividade de natureza administrativa, inconfundível, no

sistema constitucional brasileiro, com a técnica de delegação legislativa.

Assinala que a Constituição Brasileira adota várias formas de delegação

legislativa, quer acolhendo a participação do Executivo, pela iniciativa geral das leis,

quer pela delegação propriamente dita de editar leis delegadas.

Assinala que a delegação não é atentatória ao sistema democrático, desde

que esteja o Executivo sujeito ao rígido controle por parte dos outros Poderes; o

legislativo, exercitando o controle político; o Judiciário, o de constitucionalidade.

Se a delegação ocorre via constituinte, desaparece a questão de

legitimidade, passando a questão ao domínio da competência, no sentido de ela ter

sido repartida pelo poder constituinte, o povo.

Ao concluir, afirma que a legislatura não pode delegar os poderes que lhe

são inerentes para fazer uma lei; mas pode fazer uma lei para delegar um poder

“com o objetivo de determinar um dado de fato ou um estado de coisas do qual a lei

faz ou tem a intenção de fazer depender a sua ação” (VELLOSO, 1994, p. 428-429).

Ernest Gellhorn e Ronald M. Levin, ao sintetizarem a apreciação do

problema da delegação de poderes às agências reguladoras dos EUA, destacam

que a ênfase contemporânea no controle desses organismos, mais que colocar o

conjunto dos programas regulatórios sob controle da doutrina da delegação, também

representa um esforço de ajuste das necessidades da complexa economia

moderna (1997, p. 27).

A insistência nas especificações legislativas de normas detalhadas é fadada ao fracasso. As legislações não podem prever que ações deverão ser tomadas pelas agências, como também não podem revisar constantemente os marcos regulatórios. Mesmo quando as alternativas políticas estão razoavelmente claras, a atenção minuciosa e detalhada na elaboração das normas da legislação pode atrasar o seu trânsito ou atrapalhar suas chances de positivação101 (GELLHORN ; LEVIN, 1997, p. 27).

Aduzem que a mais imediata – e mais pragmática – tarefa do Direito

Administrativo de hoje é a avaliação e o aperfeiçoamento das doutrinas e técnicas

para tornar responsável o poder burocrático sem prejudicar a eficácia das agências

consideradas necessárias (GELLHORN ; LEVIN, 1997, p. 27).

101

Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao analisar a competência das entidades reguladoras, destaca sua importância na outorga de competência normativa, sobre os respectivos setores

regulados.

Segundo ele, tal competência traz como fator de relevo, afastar das escolhas técnicas, no

Parlamento, as disputas partidarizadas e os debates congressuais, em que preponderam as escolhas abstratas, político administrativas, e, na própria Administração, a ação dos órgãos burocráticos da

Administração Direta e suas escolhas discricionárias.

Eduardo Garcia de Enterria e Tomás-Ramón Fernández aduzem que, não obstante a

supremacia da lei – o princípio da reserva legal dentre outros –, há a possibilidade de alteração em tal sistema por meio da técnica de delegação legislativa.

Tal técnica pode supor uma renúncia da lei a sua primazia, uma abertura ao regulamento às matérias reservadas inicialmente à lei ou uma extensão da potestade regulamentar, além de seu

campo ordinário. O que releva salientar é que tal alteração é ocasional, com vistas a um caso concreto, deixando incólume o sistema geral constitucional (ENTERRIA; FERNÁNDEZ, 1991, p.270-

271).

A lei de delegação opera sobre a relação lei / regulamento, uma extensão tão-somente

referida a um tema e matérias concretos. Não se trata de uma transferência do poder legislativo à Administração. É apenas um apelo da lei ao regulamento para que ele seja um instrumento jurídico

que a desenvolva e complemente (ENTERRIA; FERNÁNDEZ, 1991, p.271-272).

Distinguem os autores três hipóteses de delegação legislativa: a delegação receptícia, a

remissão normativa e a deslegalização.

A delegação receptícia ocorre quando o legislador, por determinação adicional expressa,

delega ao Executivo a elaboração de norma a que será atribuída categoria de lei. Consiste em uma assunção antecipada que o legislador faz da norma elaborada pelo Administrador, em virtude de

delegação, emprestando-lhe sua própria categoria.

Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a delegação receptícia é tratada na atual

Constituição Brasileira no inciso IV do artigo 59 c/c o artigo 68, que cuida das Leis Delegadas. Consiste na transferência da função legislativa ao Executivo, limitada, todavia, ao que estiver

determinado na delegação, normalmente quanto ao tempo e à matéria, uma vez que o Poder Legislativo assume o próprio conteúdo da norma delegada (1999, p. 75).

A delegação remissiva, ou remissão, segundo Eduardo Garcia de Enterria e Tomás-Ramón Fernández, consiste em a própria lei remeter normatividade posterior por parte da Administração,

sem força de lei, dentro do quadro emoldurado pela própria norma remetente.

Assinalam que sua finalidade é a de ampliar o campo de normalização que, em princípio,

corresponde ao regulamento, mas que não chega a alterá-lo – por não elevá-lo à categoria própria da norma delegada – permanecendo simples norma regulamentária. As normas editadas pela

Administração em execução da remissão contida em uma lei têm valor de simples regulamentos. Sua diferença da delegação receptícia está no fato de esta se consumir em uma só norma,

ao passo que a remissão não se esgota enquanto não for derrogada a lei remissiva, o que dá à Administração uma possibilidade de substituir ilimitadamente a norma remetida, invocando a

delegação inicial que permanece aberta (ENTERRIA; FERNÁNDEZ, 1991, p.288-289).

Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, tal delegação consiste no poder regulamentar

de que trata o inciso IV do artigo 84 da Constituição Brasileira em vigor.

Percebe-se claramente que essa possibilidade de substituição ilimitada da norma remetida

não se ajusta à competência normativa das agências reguladoras, que não dispõem dessa atribuição constitucional. No caso do Chefe do Poder Executivo, em face de sua competência de gerir a

Administração Pública, ela está claramente presente.

Quanto ao regulador, o fato de ele não dispor de discricionariedade política, posto a dele

ser técnica, aliado aos estritos limites de sua área de especialização, afastam, a nosso ver, a possibilidade de ele substituir de forma ilimitada a norma remetida, como faz o Chefe do Executivo.

Saliente-se que são serem administrativos os atos por ele expedidos, diferentemente do regulamento, que é editado em razão da competência constitucional do inciso IV do artigo 84 da

Constituição Federal e tem outra teleologia.

A substituição da norma editada em face de comando legal pelo regulador poderá ser por

ele afastada, contudo, preponderantemente, por razões técnicas, diversas de condicionantes ditadas por discricionariedade política.

A deslegalização, segundo Eduardo Garcia de Enterria e Tomás-Ramón Fernández, é a operação efetuada por uma lei que, sem entrar na regulação material de um assunto, até então

Administração. Desse modo, simples regulamentos poderão inovar e, portanto derrogar leis anteriores.

Sua diferença da remissão é que esta é uma lei de regulação material e, nesse sentido, diretamente aplicável pelos destinatários, contudo não é completa e, portanto, necessita de ser

integralizada por meio da regulação material.

A deslegalização não tem conteúdo normativo algum, sendo seu único escopo manipular as

categorias para abrir a possibilidade aos regulamentos de entrarem em uma matéria até então regulada por lei (ENTERRIA; FERNÁNDEZ, 1991, p. 296-297).

Tal técnica origina-se, segundo Diogo de Figueiredo, em conceito desenvolvido na doutrina francesa da délégation de matières, adotado na jurisprudência do Conselho de Estado em 1907.

Resume-se na possibilidade de o legislador retirar certas matérias do domínio da lei, passando-as ao domínio do regulamento. Basta à lei de deslegalização o exercício de controle

político sobre as possíveis exorbitâncias; ela não necessita adentrar na matéria objeto de deslegalização, basta apenas “abrir a possibilidade a outras fontes normativas, estatais ou não, de

regulá-las por atos próprios que, por óbvio, não serão de responsabilidade do Poder legislativo [...]” (MOREIRA NETO, 1999, p. 76).

O autor apresenta, por fim, conceituação de Gianmario Demuro, que entende a deslegalização como “a transferência da função normativa (sobre matérias determinadas) da sede

legislativa estatal para outra sede normativa” (MOREIRA NETO, 1999, p. 78).

Mostra exemplos constantes na Constituição Brasileira de expressa deslegalização, no que

se refere à transferência para o setor privado da regulação da matéria de desportos, nos termos do artigo 217, e à própria criação de órgãos reguladores nas áreas de petróleo e telecomunicações.

Além dessa hipótese existente no corpo constitucional, afirma existir amparo à deslegalização por força de lei ordinária, citando, como exemplo, as leis que instituíram algumas das

atuais agências reguladoras em atividade hoje.

Sustenta seu ponto de vista no fato de não haver proibição genérica de delegação no atual

texto constitucional, logo, “há de se entender que o legislador constituinte pretendeu reestruturar, a partir da nova ordem jurídica do País, todas as hipóteses de deslegalização, o que efetivamente vem

ocorrendo, a partir de então, tanto em nível constitucional quanto em nível legal” (MOREIRA NETO, 1999, p. 78).

Por fim, na esteira do que denominou tendência flexibilizadora do Direito Público, entende ser sempre possível a deslegalização pela via legal, somente excepcionando tal possibilidade a

existência de vedação expressa da Constituição, posto que negá-la implicaria admitir redução dos poderes do Congresso para dispor, de acordo com a matéria e as circunstâncias, sobre o exercício de

sua própria competência (MOREIRA NETO, 1999, p. 79).

Os argumentos utilizados pelo autor, ao sustentar seu ponto de vista, não nos parecem

estar em concerto com os próprios exemplos citados por ele sobre a deslegalização, tidos como expressamente previstos na Constituição Brasileira.

Eles parecem-nos mais voltados à regulamentação e não à regulação, quando vista sob o prisma normativo, posto a limitação da especialização implícita à última.

Tampouco existiria razão lógica em ser editada emenda à Constituição para, expressamente, atribuir competência aos órgãos de regulação de telecomunicações e petróleo, v.g.,

se ela já estivesse implícita, mais ainda, implicaria aceitar o agir em Direito Administrativo, com base em ausência de norma.

Por fim, ante toda a argumentação até aqui exposta, não nos parece razoável que o legislador constitucional fosse adotar de forma genérica a deslegalização, nela incluindo as agências

reguladoras, fato que implicaria abrir à Administração o retorno aos poderes monárquicos absolutistas, caracterizados na edição de regulamentos autônomos, que inovam o ordenamento

jurídico e atingem direitos indisponíveis para o Administrador.