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CAPÍTULO V – A potestade normativa das agências reguladoras brasileiras

5.4. Dos Regulamentos jurídicos e administrativos

O modelo liberal de Estado distinguia as proposições jurídicas (Rechtssätze)

e outras disposições que, não obstante emanadas do Estado, destinavam-se a ter

eficácia interna corporis, limitadas ao interior do próprio Estado, tais como regras

pertinentes à sua organização, suas relações com os servidores e usuários de

estabelecimentos públicos (SILVA, 1987, p. 50).

Nessa linha, Almiro do Couto e Silva afirma que as proposições jurídicas (Rechtssätze) só são evidenciadas e têm espaço quando a vontade do Estado entra em contato com qualquer outra

esfera de vontade reconhecida pelo Direito86. Portanto, somente quando a ação do Estado entrar em colisão com a liberdade ou a propriedade dos indivíduos é que seria necessária uma lei (1987, p. 50).

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Segundo Carlos Ari Sundfeld, a interferência da administração pública no campo privado existe em três modalidades distintas: “(a) através de estímulos à iniciativa privada, para induzi-la em certa direção; b) quando assume a atividade dos particulares, passando a atuar em substituição a eles; c) pela ordenação de seus comportamentos, através de comandos com cogentes, derivados do poder de autoridade (administração ordenadora)” (1997, p. 25).

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“[...] as regras de comportamento que o indivíduo dá a si próprio nunca podem ser preceitos jurídicos. Isto é igualmente certo no que respeita ao Estado.” (LABAND apud SILVA, 1987, p. 50)

Via de conseqüência, haveria no universo normativo do Estado duas esferas distintas: a do Direito, integrada por regras que interfiram na liberdade e propriedade dos indivíduos, e a do não

direito, composta de regras de organização do Estado e daquelas referentes às relações de poder (SILVA, 1987, p. 50).

Decorre daí a distinção entre dois tipos de regulamentos defendidos pela dogmática alemã, que, a partir de meados do século XIX, sustentou a ilimitada liberdade da Administração, quando

edita os denominados regulamentos administrativos e sua limitação ao editar os denominados regulamentos de direito.

Os regulamentos, de acordo com a concepção alemã, dividem-se em jurídicos (Rechtsverordnungen) e regulamentos meramente administrativos (Verwaltungsverordnungen).

Apenas os primeiros, por disporem sobre relações gerais de poder, integrariam o Direito Positivo; os demais, porquanto constituam normas internas, estariam despidos de juridicidade (BLANQUER,

1999, p. 56-57).

Eduardo Garcia de Enterria e Tomás-Ramón Fernández destacam que os regulamentos

jurídicos ou propriamente normativos, segundo a terminologia do direito alemão, se referem às relações de supremacia geral, enquanto os regulamentos administrativos ou são de caráter orgânico

ou se referem aos administrados quando eles estão incursos nas denominadas relações de supremacia especial.

As relações de supremacia geral são aquelas que unem o Estado com qualquer cidadão, como, v.g., a sujeição deste ao poder de polícia e ao poder tributário. Em outros casos, a relação é

muito mais intensa e especializada. Há um plus de supremacia, ou de submissão, dependendo da ótica, nascido de um título específico. Aqui, a Administração conta com poderes adicionais, limitados

ao âmbito concreto do título do qual surgem tais relações especiais.

São posições que não derivam do título geral que relaciona a Administração aos

administrados, mas de uma situação peculiar, que implica poderes especiais. A utilização de um serviço público e a própria gestão por concessão do serviço se enquadram nessa órbita (ENTERRIA;

FERNÁNDEZ, 1991, p. 226-227).

A intensidade característica da relação de supremacia, ou submissão especial, tem reflexo

na potestade regulamentar da Administração, que se exerce no âmbito organizativo e de sujeição especial. A potestade de auto-disposição que a Administração exerce, ao operar sobre sua própria

organização e com relação àqueles que estão com ela conectados por relações especiais – como os entes regulados, acrescente-se –, traduz-se em uma liberdade ampla de tal exercício, apenas com

as limitações intrínsecas ao poder regulamentar (ENTERRIA; FERNÁNDEZ, 1991, p.227).

Por outro lado, afirmam ao editar um regulamento jurídico, ou normativo ad extra, a

Administração não opera sob seu campo interno, mas sobre a liberdade e direitos dos particulares, com base na pura relação formal que estabelece com seus administrados, sem outro título especial. A

doutrina alemã pretende que, nessa hipótese, haja verdadeira norma jurídica, sendo aqui o ponto nodal da legitimação do poder normativo da Administração.

Esses regulamentos não poderão, portanto, por si sós, originar obrigações ou deveres de supremacia geral para os administrados, necessitando lei especial para tanto. É aqui, afirmam, que o

regulamento aparece em seu perfil tradicional como norma de execução da lei (ENTERRIA; FERNÁNDEZ, p. 228).

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ao comentar os regulamentos jurídicos, ressalta ser o poder regulamentar, nesse caso, menor, com reduzida discricionariedade, posto dizer respeito à liberdade e

à propriedade dos particulares sem qualquer vínculo específico com a Administração. Portanto, tais regulamentos são obrigatoriamente complementares à lei. Assinala que nos sistemas que admitem o

regulamento autônomo, este só pode existir em matéria organizativa ou de sujeição, nunca de supremacia geral (2000, p. 88).

Da análise até aqui realizada, observa-se que as concepções refletem um modelo de organização de Estado em que a ação normativa era dividida em dois pólos: o democrático, com o

legislador, e o administrativo, com o monarca.

A noção da contraposição do princípio monárquico e do democrático não deixa dúvidas a

respeito disso. Parece-nos claro, do exposto, que a intervenção do Chefe da Administração Pública na elaboração jurídica regulamentar englobaria toda a produção normativa administrativa,

esquecendo-se os estudiosos de que há uma diferença sutil entre o regulamento editado pelo Chefe do Poder Executivo – no exercício do dito Poder Regulamentar – para “explicar” a lei e os atos

administrativos em geral, editados pela Administração, não apenas pelo Chefe do Executivo, com relevo especial para os normativos, tema que se desenvolve na seqüência.