• Nenhum resultado encontrado

Delineando o ensino para o desenvolvimento: a primazia pela formação dos conceitos científicos e a noção de área de desenvolvimento potencial

3 DIDÁTICA DESENVOLVIMENTAL: ANTECEDENTES E FUNDAMENTOS A Didática Desenvolvimental teve sua origem e projeção nas repúblicas soviéticas,

3.1 SITUANDO O PENSAMENTO DE VIGOTSKY E A TEORIA HISTÓRICO CULTURAL

3.1.2 Delineando o ensino para o desenvolvimento: a primazia pela formação dos conceitos científicos e a noção de área de desenvolvimento potencial

De acordo com Vigotsky (2004), o desenvolvimento dos conceitos no pensamento da criança ocorre sob a forma de “espontâneos”, tendo seu início muito antes de ingressar na escola, e também sob a forma de conceitos “científicos”. Os conceitos espontâneos são aqueles cotidianos, relacionados à experiência do dia a dia da criança. Já os científicos dizem respeito ao estabelecimento de relações lógicas e causais, demandando operações conscientes e a definição verbal. Embora os dois tipos de conceitos sejam desenvolvidos por distintas vias, mantêm proximidades. Se, por um lado, os conceitos espontâneos se desenvolvem na experiência, constituindo-se de “baixo para cima”, também requerem a intervenção do adulto, com seus ensinamentos na vida prática e na resposta às perguntas comumente lançadas pelas crianças. Sendo assim, os conceitos espontâneos, assim como os científicos, também têm sua constituição de “cima para baixo”.

Vigotky (2004, p. 528), considera além dessa proximidade observada entre os dois tipos de conceitos, a importante precedência dos conceitos espontâneos para que a criança possa assimilar, de forma geral, os científicos, podendo se dizer que há uma profunda interligação entre eles. Um exemplo está na aprendizagem de língua estrangeira na escola, sendo necessário o conhecimento prévio da língua materna para que se estude a outra conscientemente. Nesse sentido, a idade representa um elemento importante.

Mas, os conceitos espontâneo e científico também perfazem o seu caminho por vias opostas, podendo se observar que onde há a maturidade de um conceito, reside a fraqueza do outro. Isso porque há fenômenos que estão intimamente ligados à experiência de vida das crianças, sobre os quais elas ainda não conseguem tecer conexões internas, verbalizar, conceituar. Aí está a força do conhecimento espontâneo versus o científico. Por outro lado, os conhecimentos difundidos na escola permitem a apropriação pelas crianças sem que elas,

necessariamente, tenham vivenciado os fenômenos na vida cotidiana, como por exemplo, ao estudarem sobre eventos históricos ocorridos em épocas e lugares remotos. No que tange a esses conhecimentos, as crianças tomam parte em um processo de aprendizagem em que têm acesso às relações causais dos acontecimentos, configurando-se a força do conhecimento científico no contexto de fragilidade do conhecimento espontâneo, onde a conscientização é limitada. É, pois, no campo dos conhecimentos científicos que o pensamento se desenvolve em níveis mais elevados.

Apesar da formação dos conceitos espontâneos também se valer da interferência de adultos, é na constituição dos conceitos científicos que a atuação desse sujeito se faz imprescindível, materializando-se na escola pela ação do professor. Com o auxílio desse profissional, a criança consegue agir no âmbito de suas possibilidades aproximadas, o que se faz importante indicativo de seu desenvolvimento. Nessa ótica, “o desenvolvimento mental da criança não se caracteriza só por aquilo que ela conhece mas também pelo que ela pode aprender” (VIGOTSKY, 2004, p. 537). A visão de Vigotsky é por ele sintetizada da seguinte maneira:

O surgimento dos conceitos científicos não se torna possível se não em certo nível de desenvolvimento dos conceitos espontâneos. Suponho que uma parte do desenvolvimento de onde começou o desenvolvimento dos conceitos científicos seja a zona de desenvolvimento imediato. Sob orientação do pedagogo tornam-se possíveis operações que são impossíveis na solução relativamente autônoma da criança. As operações e formas que surgem na criança sob orientação, posteriormente propiciam o desenvolvimento da sua atividade independente (VIGOTSKY, 2004, p. 539).

Assim, pode se dizer que a aprendizagem dos conceitos científicos desempenha seu importante papel no desenvolvimento da criança quando se opera em uma instância ainda em amadurecimento, proporcionando a ampliação do pensamento, do círculo de ideias na criança, o que os conceitos espontâneos não dão conta de satisfazer.

Atento à relação entre desenvolvimento e aprendizagem na criança, Vigotsky (VIGOTSKII, 1988) aborda três grupos teóricos frequentemente empregados nessa análise, os quais lhe parecem inadequados e ou insuficientes, apresentando, então, sua teoria acerca da “área de desenvolvimento potencial”. A primeira perspectiva analisada pelo autor toma os processos de desenvolvimento e de aprendizagem como independentes, em que o segundo não afeta o primeiro, mas vale-se das condições já definidas por este para se efetivar. O principal exemplo desse pensamento está na concepção de Piaget, a quem Vigotsky rende sua admiração, mas com a qual não pode concordar, tanto no que tange ao princípio quanto ao

método de investigação para estudar o desenvolvimento mental. O pressuposto de Piaget, de separação do processo de aprendizagem do processo de desenvolvimento, leva a considerar que na escola a criança desenvolve dois processos independentes e que “o fato de a criança estudar e o fato de a criança desenvolver-se não têm nenhuma relação entre si” (VIGOTSKY, 2004, p. 523). Metodologicamente, a perspectiva piagetiana coloca a criança frente a problemas novos, afastando suas possibilidades de lançar mão da experiência de vida e de sua cultura. Nessa perspectiva teórica,

o desenvolvimento deve atingir uma determinada etapa, com a consequente maturação de determinadas funções, antes de a escola fazer a criança adquirir determinados conhecimentos e hábitos. O curso de desenvolvimento precede sempre o da aprendizagem. A aprendizagem segue sempre o desenvolvimento. Semelhante concepção não permite sequer colocar o problema do papel que podem desempenhar, no desenvolvimento, a aprendizagem e a maturação das funções ativadas no curso da aprendizagem. O desenvolvimento e a maturação destas funções representam um pressuposto e não um resultado da aprendizagem [...] (VIGOTSKII, 1988, p. 104).

Distinguindo-se dessa abordagem, o segundo grupo teórico aludido por Vigotsky não separa os processos de aprendizagem e desenvolvimento, considerando que aprendizagem é desenvolvimento. Sendo assim, as etapas de aprendizagens teriam seus correspondentes níveis de desenvolvimento, sem se definir o processo precedente e o consequente, como se essa relação fosse automática, exata e imutável. O terceiro grupo de teorias parte da relativa independência dos processos de desenvolvimento e aprendizagem, configurando-se numa concepção dualista de desenvolvimento que também não contempla a visão do autor.

Buscando superar as concepções apreciadas acerca da relação entre aprendizagem e desenvolvimento, Vigotsky defende a “teoria da área de desenvolvimento potencial”, partindo de determinados pressupostos, dentre eles, de que a aprendizagem da criança se inicia anteriormente à aprendizagem escolar, como o aprendizado da língua materna e de determinados hábitos, conforme já referido. Essa observação permite-lhe compreender que aprendizagem e desenvolvimento relacionam-se desde os primeiros dias de vida da criança, havendo, no entanto, características específicas quando essa relação envolve a aprendizagem propriamente escolar. Tal especificidade refere-se ao fato deste tipo de aprendizagem fomentar algo diferenciado e novo ao desenvolvimento da criança, não tão somente por se tratar de um processo sistematizado, distintamente do processo de aprendizagem produzido antes da idade escolar.

Na elaboração de seu pensamento acerca da “área de desenvolvimento potencial”, Vigotsky toma como ponto pacífico o entendimento de que a maturação do desenvolvimento das funções psíquicas da criança influencia em sua capacidade potencial de aprendizagem. Nesse sentido, considera a existência do nível do desenvolvimento efetivo (real), definido como “o nível de desenvolvimento das funções psicointelectuais da criança que se conseguiu como resultado de um específico processo de desenvolvimento já realizado” (VIGOTSKII, 1988, p. 111). Embora tal nível de desenvolvimento possa ser indicado por meio de testes, seus resultados são insuficientes para representar o estado de desenvolvimento da criança, haja vista a existência de outra instância do desenvolvimento, a das futuras potencialidades. Daí, a possibilidade de crianças da mesma idade situarem-se em um mesmo nível de desenvolvimento efetivo, mas diferirem-se enormemente quando considerada esta outra instância.

Ao passo em que o diagnóstico do nível de desenvolvimento efetivo leva em conta a capacidade das crianças em responderem autonomamente a testes, dentro dos limites de sua própria capacidade já amadurecida, para a apreensão do nível de desenvolvimento potencial lança-se mão do auxílio do adulto, por meio da demonstração, da condução de atividades coletivas, da proposição de perguntas-guia, levando a criança a superar os limites de sua capacidade de ação independente naquele momento de seu desenvolvimento efetivo. Assim, para Vigotsky, “a diferença entre o nível das tarefas realizáveis com o auxílio dos adultos e o nível das tarefas que podem desenvolver-se com uma atividade independente define a área de desenvolvimento potencial da criança” (Ibid., p. 112). Conhecer a área de desenvolvimento potencial permite conhecer tanto o processo de desenvolvimento já trilhado pela criança, quanto aquele que está em plena maturação, tendo em vista que aquilo que “pode fazer hoje com o auxilio dos adultos poderá fazê-lo amanhã por si só” (Ibid., p.113).

Para Vigotsky, a compreensão sobre os dois níveis de desenvolvimento mental da criança tem grande impacto sobre as teorias referentes à relação entre os processos de aprendizagem e o desenvolvimento. Basicamente, pode se dizer que a atenção à área de desenvolvimento potencial inverte a orientação do ensino baseada no desenvolvimento já produzido, passando a direcionar o ensino ao desenvolvimento daquilo que ainda falta à criança no que concerne às funções psicointelectuais superiores especificamente humanas. Nessa perspectiva, “o único bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento” (Ibid. p.114).

Considerando-se ainda a tese de Vigotsky de que o pensamento e os processos volitivos da criança têm sua origem nas relações estabelecidas com as pessoas que a rodeiam, em seu meio social, a aprendizagem dirigida à área de desenvolvimento potencial “estimula e

ativa na criança um grupo de processos internos de desenvolvimento no âmbito das inter- relações com outros, que, na continuação, são absorvidos pelo curso interior de desenvolvimento e se convertem em aquisições internas da criança” (VIGOTSKII, 1988, p. 115). Desse modo, diferentemente das concepções teóricas analisadas por Vigotsky no que tange à relação entre aprendizagem e desenvolvimento, para ele uma dimensão não corresponde à outra, mas é a partir da adequada organização da aprendizagem, especialmente na fase da vida da criança em escolarização, que processos de desenvolvimento são ativados, produzindo-se novas e complexas formações ao invés de, tão somente, se aproveitar o desenvolvimento já sedimentado.

A aprendizagem escolar estimula, assim, os processos internos de modo que, articulada ao desenvolvimento do sistema nervoso central, são desenvolvidas as características humanas não-naturais, determinadas historicamente. Daí a importância de se verificar os traços de desenvolvimento interno que segue, assimetricamente, a aprendizagem escolar quando esta cria a área de desenvolvimento potencial. Nesse processo dialético entre a tomada de consciência e domínio do conhecimento e o desenvolvimento psicointelectual geral da criança, as matérias escolares têm distintos papéis e relevância, sendo a “tomada de consciência a progressiva compreensão do sistema de conhecimento, das generalizações próprias das disciplinas escolares [...]” (NASCIMENTO, 2017, p. 153).

As ideias de Vigotsky sobre a área de desenvolvimento potencial e o papel da formação e desenvolvimento dos conceitos científicos, ressaltando-se a função da escola, além de sua tese fundamental de que o princípio do caráter sócio-histórico da psique está na transformação do interpsíquico em intrapsíquico, foram precursoras da Teoria da Atividade desenvolvida por Leontiev e seus colaboradores, as quais foram sistematizadas no campo pedagógico.

3.2 TEORIA DA ATIVIDADE E A CONCEPÇÃO DO ENSINO-APRENDIZAGEM

Documentos relacionados