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O pensamento de Vigotsky na base da Teoria da Subjetividade

3 DIDÁTICA DESENVOLVIMENTAL: ANTECEDENTES E FUNDAMENTOS A Didática Desenvolvimental teve sua origem e projeção nas repúblicas soviéticas,

4 NA SEARA DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL, O TEMA DA SUBJETIVIDADE DESENVOLVIDO POR GONZÁLEZ REY

4.2 O SUJEITO À RIBALTA NA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL: ANTECEDENTES À TEORIA DA SUBJETIVIDADE

4.2.1 O pensamento de Vigotsky na base da Teoria da Subjetividade

A teorização de González Rey parte do princípio de que o ser humano é criador, ativo em seu meio social, produzindo cultura e sendo por ela constituído. Nesse movimento dialético, o autor traz à baila a condição do sujeito de produtor de sentidos em superação à de reprodutor de realidades, com o que supera lógicas dicotômicas predominantes na Psicologia soviética, como a do externo-interno e do cognitivo-afetivo.

Pensar o sujeito como ser ativo, é entender que o humano não se trata de uma matéria esponjosa a absorver aquilo que lhe fora outorgado por um corpo social, até mesmo porque tal corpo constitui-se por sujeitos com suas vivências e intervenções em seus espaços sociais. Tomar o sujeito como ativo significa entendê-lo como ser concreto, que, provido de história de vida, atua cotidianamente em seu meio, criando alternativas nas variadas situações de sua existência social, e, de forma concomitante, desenvolvendo sua personalidade.

González Rey reconhece a dimensão biológica da psique humana, por um lado, mas, por outro, tem por certa a sua qualidade diferenciada ao considerar as condições histórico- culturais do desenvolvimento dos indivíduos, conforme enunciado por Vigotsky em sua principal tese. Assim, os fenômenos psicológicos não se traduzem como produtos da natureza humana, como se compreendessem uma essência universal. Mas também não consistem em “cópia” do social ou reflexo alterado da realidade, nem são constituídos de forma unidimensional, em seus aspectos cognitivos, para, daí, originarem os aspectos de cunho afetivo-emocionais (os sentimentos, a fantasia, a imaginação e a criatividade). Na concepção de González Rey o sujeito é ativo, é social, é singular e é indivisível em suas dimensões simbólica e emocional. O autor analisa que Vigotsky, no primeiro e terceiro momento de sua obra, já apresentara as bases desse pensamento ao evidenciar o potencial criativo e gerador da psique, bem como a unidade dos processos simbólicos e emocionais e a representação da psique como sistema integral.

Em sua obra Psicologia da Arte (1925), produzida no afã de desvelar a especificidade de processos psíquicos relacionados às expressões e vivências artísticas, Vigotsky vê nas emoções uma esfera da psique humana especialmente mobilizada pela arte. Os processos emocionais são ali tratados de forma inter-relacionada aos de caráter simbólico, sobretudo ao versar sobre a produção da fantasia. Desse modo, o psicólogo bielorrusso admite o caráter gerador da psique, com seu potencial de criar realidades subjetivas independentemente de influências objetivas imediatas. Dentre as várias ponderações do autor a esse respeito, seu pensamento pode ser exemplificado com a seguinte situação por ele colocada: se, ao chegarmos em casa à noite, deparamo-nos com um agasalho pendurado e, na escuridão, temos a ideia de haver uma pessoa desconhecida, indesejada em nosso lar, nos assustamos, sentimos pânico, horror, ou seja, passamos por uma experiência falsa, mas com conteúdo real (VIGOTSKY, 2006 p. 258). Em palavras de Vigotsky,

Isto significa, essencialmente, que todas as nossas experiências fantasiosas se produzem sobre uma base emocional absolutamente real. Vemos, por conseguinte, que emoção e imaginação não são dois processos separados; são, pelo contrário, um mesmo processo. Podemos considerar uma fantasia como a expressão central de uma reação emocional (VIGOTSKY, 2006, p. 258, tradução nossa).

Ao versar sobre a produção da fantasia como resultante da articulação entre o simbólico e o emocional, além de Vigotsky ser imperativo quanto à indissociabilidade das duas dimensões, admite a realidade da emoção reconhecendo “o status objetivo dos fenômenos subjetivos”, o que, para González Rey (2013b, p. 39) confere legitimidade ao pensamento e ao sentimento das pessoas, bem como à independência de tais processos frente à aparência objetiva.

Diferentemente de negar a base materialista, essa perspectiva vigotskyana indica que os sentimentos e as emoções suscitados por uma obra de arte, por exemplo – seu caráter e efeito – são socialmente condicionados, porém, de forma indireta (VIGOTSKY, 2006, p. 43). Daí a afirmação do autor de que os métodos experimentais, objetivos, que se limitam à análise do comportamento aparente são insuficientes para o trabalho do psicólogo, cabendo-lhe mais uma postura interpretativa. Considerando aspectos metodológicos quando da compreensão dos processos psíquicos relacionados à experiência artística, diz Vigotsky:

[...] seguramente não encontraremos uma solução aos grandes problemas da psicologia da arte se nos limitamos à análise de processos que somente acontecem no plano consciente. Não descobriremos a essência dessa emoção

que vincula o poeta e o leitor com a arte. Um dos traços mais característicos da arte é que os processos envolvidos em sua criação e seu uso parecem obscuros, inexplicáveis e inacessíveis ao pensamento consciente [...] Não é necessário muita perspicácia psicológica para ver que as razões mais evidentes de um efeito artístico se escondem no subconsciente, de modo que somente poderemos abordar os problemas da arte se adentrarmos nessa área (VIGOTSKY, 2006, p. 99, tradução nossa).

González Rey (2013b, p. 40) se apercebe de que essa perspectiva de Vigotsky em relação ao caráter inconsciente envolvido na experiência artística tem a ver com o potencial criativo e imaginativo do humano e com uma visão da psique como sistema dinâmico complexo, que, dialeticamente, “expressa uma complementação e flexibilidade entre o consciente e o inconsciente”. Em dizeres do próprio Vigotsky:

[...] para um psicólogo o inconsciente não se converte em objeto de estudo em si senão indiretamente através da análise dos traços que deixa em nossa psique. Não há uma barreira impenetrável que o separe do consciente. Os processos gerados no subconsciente têm continuação em nossa consciência; e reciprocamente, muitos atos conscientes são convergidos ao subconsciente. Em nossas mentes existe uma conexão contínua, vívida e dinâmica entre as duas áreas. O subconsciente afeta nossas ações e se manifesta em nosso comportamento; começamos assim a entendê-lo e a apreender coisas a seu respeito, bem como sobre as leis que o regem (VIGOTSKY, 2006, p. 100, tradução nossa).

Ainda em seu primeiro momento teórico, Vigotsky também aborda o potencial gerador da psique ao tratar dos recursos psicológicos desenvolvidos por crianças face às deficiências sensoriais. O autor observa que os efeitos do defeito se produzem socialmente na relação entre os aspectos simbólicos e emocionais, portanto, no âmbito da organização subjetiva do sujeito ao compensar a função afetada mediante os próprios recursos do sistema psíquico em sua integralidade. Essa visão expressa a relevância das vivências dos sujeitos em sua singularidade, em seus espaços sociais de relacionamentos e o dinamismo das estruturas psíquicas, discrepando da concepção de reflexo linear do defeito e das condições objetivas sobre a psique da criança como consequência inequívoca.

Apesar da atenção dispensada à compreensão da psique em termos da unidade entre o simbólico e o emocional, abrindo espaço para o desenvolvimento da temática da subjetividade, González Rey (2013b) analisa que Vigotsky não chega a fazê-lo, conduzindo suas elaborações em seu segundo momento teórico à relação entre o social e a psique por uma via operacional-instrumental. Baseado no princípio da relação imediata e linear entre o externo e o interno, o autor passa a enfocar o desenvolvimento das funções psíquicas

mediadas pelos signos de caráter cultural, enfatizando as operações do pensamento e o controle da conduta. Em contrapartida, negligencia a dimensão das emoções e os processos de fantasia e imaginação, abdicando temporariamente da ideia de psique como sistema gerador e integral.

A despeito desse momento teórico de Vigotsky e de toda a produção da Psicologia soviética que se sucedeu às suas formulações objetivistas, tomando-as como fundamento, ele próprio pôde, em seu terceiro momento, retomar elaborações anteriores que trouxeram à baila novas contribuições quanto à concepção da psique em seu caráter ativo, e, por conseguinte, ao caráter subjetivo dos fenômenos psicológicos em uma visão histórico-cultural.

Segundo González Rey (2013b), o terceiro momento de Vigotsky é marcado pelo caráter vivo, criativo e contraditório de uma teorização em processo. Ao retomar a ideia de unidade do cognitivo e do afetivo e lançar luz sobre a temática das emoções, o autor se reaproxima das questões da subjetividade humana superando a posição cognitivista e objetiva por ele mesmo definida em seu segundo momento de elaborações teóricas. Contudo, ainda que sinalizando o intento de definir novas unidades psíquicas capazes de expressar a psique como um sistema integrado no que tangia aos processos cognitivos e afetivos, González Rey entende que Vigotsky não chegou a desenvolvê-las plenamente, talvez pelo pouco tempo que teve para as reelaborações dado ao precoce findar de sua vida.

O último momento vigotskyano, tomado como objeto de estudo por A. A. Leontiev38, é delimitado por González Rey a partir da obra Sobre as questões da psicologia do ator criativo (1932), quando o autor volta às questões da arte e da emoção relacionadas à vida social e à compreensão já apresentada em Psicologia da Arte sobre os aspectos inconscientes envolvidos na expressão artística. Nesse momento há a expressão da ideia de “sistemas dinâmicos de sentidos” (pontualmente no livro Pensamento e linguagem), em que combinações de funções psíquicas, incluindo as emoções, originam novos sistemas integrando intelecto e afeto. É também retomada a questão da imaginação e são elaboradas as importantes categorias de “sentido” e de “situação social do desenvolvimento”, as quais abrem novos caminhos para o trato do tema da subjetividade.

Para González Rey (2013b), é em Pensamento e palavra, o último capítulo do livro Pensamento e linguagem, que melhor se apresenta o posicionamento de Vigotsky em seu terceiro momento, muito embora haja outras produções extremamente relevantes nessa fase. O texto expõe a categoria de sentido em distinção à de significado. Com a fundamentação em

Paulhan, Vigotsky concebe uma nova unidade da vida psíquica em que cognição e afeto são processos constituídos em uma unidade dinâmica sem que uma esfera preceda a outra, motivando-a. É, então ao discorrer sobre a “fala interior”, aquela “fala quase sem palavras”, quando se conversa consigo mesmo, que Vigotsky apresenta seu entendimento acerca do que seja sentido e significado:

[...] o sentido de uma palavra é a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência. É um todo complexo, fluido e dinâmico, que tem várias zonas de estabilidade desigual. O significado é apenas uma das zonas de sentido, a mais estável e precisa. Uma palavra adquire o seu sentido no contexto em que surge; em contextos diferentes, altera o seu sentido. O significado permanece estável ao longo de todas as alterações do sentido. O significado dicionarizado de uma palavra nada mais é do que uma pedra no edifício do sentido, não passa de uma potencialidade que se realiza de formas diversas na fala (VIGOTSKY, 2008, p. 181).

Ainda elucidando o entendimento de Paulhan sobre o sentido e o significado, Vigotsky observa que o “sentido” enriquece o “significado” conferindo-lhe novo conteúdo por ser relacionado ao contexto, isso porque, “[...] o sentido de uma palavra é um fenômeno complexo, móvel e variável; modifica-se de acordo com as situações e a mente que o utiliza, sendo quase ilimitado. Uma palavra deriva o seu sentido do parágrafo; o parágrafo, do livro; o livro, do conjunto das obras do autor” (Ibid., p. 182).

Com sua análise próxima à de A. A. Leontiev em relação ao último momento teórico de Vigotsky, González Rey vê na categoria sentido o intento do psicólogo bielorrusso de representar a psique em uma unidade entre os processos cognitivos e afetivos, haja vista a definição da categoria como a “soma de todos os eventos psicológicos”39. A perspectiva de

Paulhan adotada por Vigotsky evidencia ainda o dinamismo e o movimento da linguagem, admitindo-se o papel ativo do sujeito no processo da fala, uma vez que o sentido depende de situações, do contexto e da “mente que o utiliza”. Ademais, González Rey chama a atenção para a abordagem por Vigotsky da categoria “personalidade”, ao tratar do sentido. O psicólogo cubano lembra que, embora Vigotsky não tenha chegado a desenvolver com profundidade o tema da personalidade, sempre que o abordou o fez em associação à consciência e à espiritualidade, num esforço em explicitar a ideia de um sistema psíquico integrador da cognição e dos afetos na consciência (GONZÁLEZ REY, 2013b, p. 94-99).

39 A palavra “soma”, apresentada na citação destacada da publicação de Pensamento e Palavra pela editora Martins Fontes (4ª. edição, 2008), obra aqui referenciada, é traduzida por González Rey (2013b, p. 96) do original como “agregado”. Essa consideração se faz importante para que fique claro que a palavra “soma”, nesse caso, não deve ser interpretada como junção de partes separadas e perfeitamente definidas em sua gênese, pretendendo-se expressar exatamente o contrário.

González Rey observa que, também em seu terceiro momento, Vigotsky retoma a relevância dada às emoções ao discorrer sobre a relação da criança com o meio em seu processo de desenvolvimento, e assim, uma vez mais, traz à tona a ideia de uma psique com caráter ativo. É então, em sua obra Problemas da idade (1934), que o psicólogo apresenta a categoria “situação social de desenvolvimento”, propondo que se compreenda a experiência da criança a partir de sua relação interna com algum aspecto da realidade, em uma unidade da personalidade com o meio (GONZÁLEZ REY, 2013b, p. 101). Para González Rey,

Essa impossibilidade de representar-se a influência do meio como influência objetiva, dada sua inseparabilidade da organização psíquica da criança que a recebe, além de reforçar as ideias de complexidade e de sistema orienta a pensar no “sentido” dessa experiência como a unidade de análise do desenvolvimento infantil (Ibid.).

Mas, em sua análise, González Rey desvela que ao invés de Vigotsky prosseguir adotando a categoria já cunhada de “sentido” para compreender a “situação social de desenvolvimento”, passa a adotar outra categoria, a de “vivência” (perezhivanie), que é assim explicitada por Bozhovich:

Vigotsky começou a procurar a correspondente “unidade” no estudo da própria “situação social do desenvolvimento”. Como tal, distinguiu a vivência (ou a “relação afetiva” da criança com o meio). A vivência, segundo Vigotsky, é uma “unidade” na qual estão representados em um todo indivisível, por um lado, o meio, isto é, o experimentado pela criança; por outro, o que a própria criança traz a essa vivência e que, por sua vez, é determinado pelo nível anteriormente alcançado por ela (BOZHOVICH, 1981, p. 123, apud GONZÁLEZ REY, 2013b, p. 101).

Ocorre que, apesar de a “vivência” ser apresentada como possibilidade para se compreender o modo como o meio influencia o desenvolvimento psíquico, extrapolando a visão objetivista ao salientar a relação afetiva, o próprio autor ao defini-la frente à condição intelectual da criança (ao “nível alcançado por ela”), acaba por aproximar a compreensão sobre as emoções da perspectiva posta pela Psicologia cognitiva (Ibid., p. 102). Ainda assim, as categorias de sentido e vivência (perezhivanie) são vistas por González Rey como importantes referências de Vigotsky ao caráter subjetivo do psiquismo humano, por meio das quais reconhece a gênese cultural, social e histórica da psique e seu potencial gerador. Assim, verbaliza o psicólogo cubano:

[...] precisamente o conceito de perizhivanie e o conceito sentido em Vigotsky se orientam a procurar novos modelos conceituais para as categorias psicológicas - superar a taxonomia das funções por novos tipos de unidades capazes de integrar a processualidade da ação com a organização da consciência, com o caráter gerador da consciência e com a integração do cognitivo e o afetivo. Por isso, tanto o conceito do princípio da unidade da consciência em Rubinstein, quanto os conceitos de sentido e perizhivanie em Vigotsky, são conceitos que estão norteando a um novo tipo qualitativo de fenômeno psicológico irredutível [...] à soma das funções. Quando estamos falando de perizhivanie no sentido que Vigotsky introduz o termo, não estamos falando de soma de funções, estamos falando de novos sistemas em que o cognitivo, orgânico e o afetivo se organizam como uma unidade auto- reguladora que tem força sobre o comportamento e sobre a expressão subjetiva da pessoa. O conceito de perizhivanie avança a ideia de subjetividade embora Vigotsky não use explicitamente o termo [...] pela batalha entre idealismo e materialismo [...] (GONZÁLEZ REY, 2014b).

Sobre a base estabelecida por Vigotsky, e, também a partir dos aportes de teóricos como Rubinstein, os processos relacionados às emoções e à percepção sobre o social na constituição da psique humana vão sendo revistos e abertas novas possibilidades para o tratamento do tema da subjetividade à ótica histórico-cultural. Nesse sentido estão as contribuições de dois importantes teóricos soviéticos, L. I. Bozhovich e B. F. Lomov. A primeira, colaboradora de A. N. Leontiev, foi também crítica à sua teoria, avançando na compreensão das necessidades, motivações e formação da personalidade, conforme já aduzido. O segundo, seguidor de B. G. Ananiev e S. L. Rubinstein, ao teorizar sobre o papel da comunicação na representação do social e do desenvolvimento humano, superou dicotomias e limitações que figuravam na Psicologia soviética tradicional, dando continuidade ao estudo de temas iniciados por autores como Vygotsky, Rubinstein, Ananiev, Miasichev e Bozhovich (GONZÁLEZ REY, 2016, p. 262).

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