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Quando pensamos na formação de professores, nem sempre nos perguntamos qual é a concepção de sujeito que nos orienta no que denominamos de formação inicial, pós-graduada ou continuada. Um dos desafios parece ser o seguinte: enquanto não se conceber os professores como um adulto em formação, uma pessoa plena de experiências, com capacidade para refletir sobre si, e que tem muito mais para nos contar sobre a escola do que a produção científica atual dispõe sobre o tema, não se avançará, suficientemente, quanto à compreensão das relações que se estabelecem entre formandos e seu processo de formação (PASSEGGI, 2016, p. 68).

Esta citação de Passeggi nos faz refletir sobre uma questão muito importante: o sujeito traz consigo as marcas das suas experiências e que é de suma relevância a consideração destas marcas para o processo de formação humana e profissional dos professores e/ou futuros professores.

Refletindo sobre isso, chamo a atenção neste trabalho para o que os autores Marinho, Feliciano e Araújo, ao fazer uma reflexão, me disseram outro dia, acerca da importância que se tenha, na formação inicial, o que eles chamam de um “momento significativo para problematizar a profissão por meio de uma reflexão crítica acerca das crenças na profissão docente”2. E ainda afirmam que encarar a formação inicial numa perspectiva problematizadora implica uma reflexão acerca da constituição do professor, pensando nas suas experiências objetivando o autoconhecimento sobre a sua trajetória de vida e formação3.

Entretanto, embora este seja o momento significativo para tal reflexão e problematização acerca da prática docente, nos cursos de licenciatura, os futuros professores não têm abertura para refletir sobre as suas experiências, aspecto que afeta de forma significativa a sua prática docente.

2MARINHO CRUZ, L. DE C.; FELICIANO DE LIMA, L.; ARAÚJO BARROS, R, 2020, p. 2.

3 MARINHO CRUZ, L. DE C.; FELICIANO DE LIMA, L.; ARAÚJO BARROS, R, 2020, p. 3

Como os próprios autores destacam: “a formação acadêmica tem conseguido pouco sucesso em desconstruí-las ou, ao menos, abalá-las”4 Dessa forma, os futuros professores ao não desconstruírem crenças e/ou experiências que possam refletir negativamente no seu ensino, acabam por reproduzir as mesmas práticas e comportamentos que antes repudiavam, criando um círculo vicioso.

É válido salientar que tratamos neste trabalho de refletir sobre como essa falta de reflexão da prática docente pelos próprios professores é convergente com o cotidiano profissional do professor. Mais precisamente destacamos os profissionais que ensinam Matemática, em especial os pedagogos, campo profissional em que estou inserida. E por que levantar esta bandeira especificamente para os professores de Matemática?

Porque, em primeiro lugar, a questão por mim levantada em pesquisar como se dá a formação inicial dos professores surgiu quando eu estava na minha graduação de Pedagogia e eu observei o contexto encontrado da relação dos futuros pedagogos que lá estudavam e que ensinariam esse componente com a Matemática. Apenas ao ouvir ou falar no nome desse componente alguns já temiam o peso que estava por trás dessa ciência, surgindo aí a minha inquietação.

E em segundo lugar, levanto essa bandeira pelo fato de que, ao se enquadrar nos parâmetros da ciência, a partir do conceito de razão lógica, assim como Rache, ao dialogar citando Luckesi, expõe, como já mencionei, e ainda que seja considerada uma ciência exata e absoluta tal qual é a ciência, a Matemática sofre o que já chamamos aqui de fragmentação do conhecimento, pois através do método de Descartes, “[...] que constitui em decompor o todo em fragmentos e distribuí-los em ordem lógica [...]”5, e ao se dissociar muitas vezes não responde aos porquês dos alunos terem de aprender coisas sem sentido e sem significado.

4 TARDIF, 2014; GHEDIN; OLIVEIRA; ALMEIDA, 2015, apud MARINHO CRUZ, L. DE C.; FELICIANO

DE LIMA, L.; ARAÚJO BARROS, R, 2020, p. 2 .

5 CAPRA, 2002, p.55 apud, RECHE, 2020, p. 80.

Dada essa falta de reflexão na formação inicial e continuada, proponho neste trabalho, justamente, refletir sobre a prática docente tomando por base a minha própria narrativa autobiográfica tanto pessoal, com foco na vida escolar, quanto profissional, enquanto professora de educação infantil. Isso porque, ao pesquisar me ancorando no método autobiográfico, percebo que o método me coloca em duas posições diferentes, ou melhor, eu passo a ser dois sujeitos: um que narra o vivido, que descreve tintim por tintim o que aconteceu em dada realidade, e outro que emerge ao ler e relembrar tal realidade, passando a questioná-la criticamente, a refletir sobre todo o processo decorrido. E isso pode ser afirmado com veemência pela autora Passeggi ao assegurar que a dimensão autopoiética da reflexão biográfica é um dos princípios fundadores das escritas de si, pois é no ato de narrar sua própria história que a pessoa se reinventa, ao fazer um movimento de dar sentido às suas próprias experiências6.

Constato que essa assertiva está presente nas pesquisas que abordam sobre o método biográfico. O sujeito que narra a sua história de vida – e eu me ponho no lugar desse sujeito – ressignifica as suas experiências à medida em que mantém a prática de escrever e ler a sua narrativa. E ao ressignificar, como a própria Passeggi destaca, reinventa-se.

Como já mencionei neste trabalho, optei por ser uma professora reflexiva devido às experiências que tive com os meus professores que não pensavam sobre as suas práticas pedagógicas e, por isso, diferentemente deles eu tenho um desejo em melhorar a cada dia o meu trabalho por meio da pesquisa e da reflexão. Tive o primeiro contato com o conceito de práxis ao cursar as disciplinas de ensinos da matemática, durante a formação inicial, e vi que era possível mudar a realidade da educação matemática de modo que alunos e professores pudessem trabalhar e aprender juntos. Assim como diz Larrosa, “é experiência aquilo que ‘nos passa’, ou nos toca, ou que

6 PASSEGGI, 2011, p. 147.

nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma”7. À medida que fui vivenciando cada nova experiência, a minha visão de um ensino de matemática abstrato, sem sentido e sem significado foi desaparecendo e eu fui metamorfoseando a professora que nascia e crescia dentro de mim.

Durante a graduação, senti a necessidade de relatar de algum modo as minhas ressignificações e foi por meio de uma narrativa autobiográfica que eu estruturei o meu Trabalho de Conclusão de Curso, o TCC. E agora, durante o mestrado, não está sendo muito diferente, pois, ao escrever a presente narrativa, eu descobri o meu real objeto de pesquisa, como também os meus objetivos. E tudo isso acontece porque a narrativa me proporciona estar em um lugar de reflexão.

Ao desenvolver a minha pesquisa, procurei uma metodologia que pudesse se unir ao meu propósito, que visava fazer uma reflexão sobre as minhas experiências obtidas na formação inicial e ao exercer os meus primeiros dois anos como professora de uma turma de educação infantil. Foi então que tomei a pesquisa de natureza qualitativa para compor o meu trabalho. Para isso, busquei conversar com o professor Fredy González sobre a natureza dessa pesquisa, e ele me esclareceu que, por ser de natureza ontológica, ela se refere aos conhecimentos sobre assuntos sociais e educacionais.

A narrativa como um dos métodos da pesquisa qualitativa atribui ao pesquisador o centro da pesquisa ou, como González sugere, como sendo

“o principal Dispositivo da Pesquisa Qualitativa” 8 e por constituir este dispositivo, o pesquisador se assume como “[...] alguém que tem disposição, que está disposto para gerar conhecimentos, desenvolvendo pesquisa, sobre algum assunto de seu interesse”9.

Assim como descreve o trecho acima, desenvolver uma pesquisa qualitativa e ser um pesquisador qualitativo é um processo bastante desafiante para o sujeito, pois, ao passo que ele deve descrever a sua

7 LARROSA, 2002, p. 25.

8 GONZÁLEZ, 2020, p. 161.

9 GONZÁLEZ, 2011, p. 162.

prática individual, como meio de obter os registros para a sua pesquisa, concomitantemente, deve gerar interpretações sobre os materiais por ele mesmo escrito e por ele mesmo levantado. Pode até parecer um processo confuso, pois o pesquisador deve manter uma sintonia entre os propósitos e objetivos da pesquisa e os movimentos de imersão e contemplação hermenêutica.10

Apesar da aparência de confuso, esse processo torna o pesquisador um sujeito fortemente reflexivo e demanda um grande aprendizado estar fazendo o tempo todo essa autoavaliação sobre a própria prática, enquanto sujeito professor.

Enquanto conversávamos, professor González me falou de alguns outros assuntos que tratam da pesquisa qualitativa e que chamou muito minha a atenção, pois, do ponto de vista do meu trabalho, seriam essenciais para a sua concretização. Assim, ao lembrar de uma conversa que ele teve com o teórico Gunther, ele discorre sobre o fato de uma construção baseada na realidade social para a atribuição de significados estar se tornando o ponto de partida para a pesquisa; destaca também o seu caráter processual e de reflexão, além do importante significado subjetivo.

Ao falar com González, pude observar que a pesquisa qualitativa propõe a elaboração de um trabalho mais flexível, e isto não quer dizer que não seja rigorosa, em que a subjetividade, a reflexão e o contexto social, ou melhor, o lugar epistemológico, são levados em consideração no seu que-fazer. E como não podemos esquecer, a pesquisa qualitativa possibilita emersão da sensibilidade na qual surge através da figura do pesquisador que imerge em tamanha profundidade que ele se vê entrelaçado na sua própria pesquisa. Continuando a conversa com Fredy, ele ainda expõe que o lugar do pesquisador na pesquisa qualitativa tem um papel extremamente importante, pois este realiza uma prática individual, que o move e comove e ainda afirma o professor que o pesquisador qualitativo está totalmente

10 GONZÁLEZ, 2020, p. 162.

imerso, embutido, embebido e implicado na sua pesquisa, com toda a sua subjetividade.

Partindo de todas essas características explicitadas pelo professor Fredy, reconheci-me uma pesquisadora qualitativa, pois o trabalho ora desenvolvo necessita de mim como uma investigadora sempre presente, imersa e capaz de vencer os desafios que este tipo de pesquisa propõe. Não é tão fácil, como dizem muitos críticos da pesquisa qualitativa, até porque, ao se deixar envolver, o pesquisador tem que estar ciente de que a pesquisa move o nosso psicológico e nosso emocional, e não é em todo momento que estamos bem emocional e psicologicamente.

Pois bem, ao me assumir como pesquisadora qualitativista, tive que delimitar o método a ser usado para a elaboração da pesquisa e, como a minha proposta partia da minha trajetória de vida acadêmica e profissional, escolhi o caráter autobiográfico para desenvolver o meu trabalho. Nesse sentido, como forma de recuperar tal trajetória, busquei na narrativa autobiográfica narrar e descrever o que seria a fonte principal de informação para o desenrolar da pesquisa.

Ao escolher a narrativa como método, faço o exercício de refletir sobre as experiências que tive e como elas podem me ajudar a progredir, de forma que possam ser melhoradas e/ou não mais reproduzidas. Esse método trabalha muito com a subjetividade, que é inerente ao indivíduo e não pode ser deixada de lado. Desse modo, em conversa com a professora Passeggi, ela afirma ser muito importante, ao estarmos em um mundo em que há crise das identidades, desenvolver essa capacidade de reflexão crítica sobre a própria experiência, como modo de se autoconhecer e poder conhecer finalmente os deuses e o universo.

Nesse sentido, a minha narrativa autobiográfica, constituindo-se na principal fonte de informação, abre portas para que eu entenda não somente o mundo à minha volta, como também a possibilidade de me autoconhecer enquanto sujeito formativo e profissional. Ao terminar a nossa conversa, Passeggi ainda me disse que, o exercício de reflexão sobre as

nossas próprias experiências nos torna cada vez mais inseparáveis do objeto do conhecimento e prossegue dizendo que é preciso expor as nossas experiências sem medo, para podermos aprender com a vida sobre nós mesmos.

É nesse processo de se expor sem medo, que eu precisei descrever todas as minhas experiências em uma narrativa. E para isso tive que fazer um exercício de relembrar as marcas boas ou ruins que em mim ficaram durante toda a minha trajetória de vida acadêmica e na profissional. Esse exercício é o que a pesquisa qualitativa chama de imersão arqueológica11. Porém, para além de imergir em nossas experiências, nós pesquisadores qualitativos temos o trabalho de contemplar hermeneuticamente tais experiências, de modo que possam ser interpretadas, refletidas criticamente, julgadas e reinterpretadas por nós que desenvolvemos a pesquisa.

E é nesse movimento de ida e volta, entre a imersão e a contemplação, que o sujeito pesquisador começa a encontrar as unidades de sentido e a saber explicar os porquês do seu trabalho, como também passa a interpretar de acordo com o seu entendimento e o seu repertório teórico e conceitual no qual está envolvido.

Sendo assim, este trabalho abrange três grandes fontes de informação situadas no diagrama expresso na Figura 2.

No diagrama (Figura 2), as fontes de informação são: testemunhal, documental e empírica. Na fonte testemunhal, considera-se a situação do contexto da pesquisa, este se refere à própria narrativa autobiográfica; a documental representa a situação conceitual, destacada pelo Repertório de Coordenadas Teóricas Conceituais de Referência e, por último, temos a empírica, formada pelas descrições das minhas práticas em sala de aula.

Todas essas fontes estão entrelaçadas umas nas outras, tal como expressa o diagrama na Figura 2, e completam a pesquisa de forma que todas as três são indissociáveis.

11 GONZÁLEZ, 2020.

Figura 2 – Diagrama das fontes de informação da pesquisa

Fonte: Elaborado pela com base em González (2020) e Bicudo (2011).

Na seção seguinte, dou início à abordagem sobre a primeira fonte de informação, a testemunhal, fazendo uma imersão através da na minha narrativa autobiográfica.

4 A IMERSÃO ARQUEOLÓGICA NA MINHA TRAJETÓRIA DE VIDA ESCOLAR E