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Desafios com a nomenclatura: erotismo, sexualidade, libido

6. O CAMPO DA TRANSFERÊNCIA E SEUS IMPASSES

8.2. Desafios com a nomenclatura: erotismo, sexualidade, libido

Se por um lado Freud contextualiza os instantes tratados até aqui com suas consequências, e ilustra o seio como primeiro objeto erótico, por outro dedica toda sua obra ao campo que chamou de sexualidade. Não realizou uma discriminação particular para o termo erotismo. Holck (2011), por sua vez, cuidou de investigação similar e localizou esta brecha: “Na obra freudiana, apesar do amplo desenvolvimento de uma teoria da sexualidade, e de a erótica ser mencionada inúmeras vezes, esse termo só aparece como qualidade ou caráter de um estado. Não há uma conceituação da erótica enquanto tal” (p. 26-27).

Neste caso, portanto, caberia primeiramente averiguar em que medida há distinção entre erotismo e sexualidade para a psicanálise, ou pelo menos para Freud. Como veremos à frente, haverá autores capazes de apresentar discriminações razoáveis, mas estaremos longe de encontrar qualquer unanimidade. Interessa-nos, pelo momento, fazer mais consultas aos textos freudianos.

Entendemos que o uso do termo, para Freud, estava inicialmente atrelado à significação das zonas erógenas, as áreas sensíveis à estimulação: oral, anal e genital ou quaisquer partes que tivessem sofrido estimulação prazerosa.

Ao cunhar sua teoria da libido, entretanto, temos registro de Freud entoando sua escolha pelo termo sexualidade em detrimento do erotismo. Entendemos que, para o autor, o erotismo corresponderia a um eufemismo ou, em suas palavras, um nome mais

polido para falar da sexualidade. Não compartilharíamos de tal receio, sobretudo porque encontramos junto ao conceito uma verdadeira tormenta de eventos. De todo modo, a citação original de Freud é relatada a seguir:

A psicanálise (. . .) dá a esses instintos amorosos o nome de instintos sexuais, a potiori e em razão de sua origem. (. . .) Qualquer pessoa que considere o sexo como algo mortificante e humilhante para a natureza humana está livre para empregar as expressões mais polidas ‘Eros’ e ‘erótico’. Eu poderia ter procedido assim desde o começo e me teria poupado muita oposição. Mas não quis fazê-lo, porque me apraz evitar fazer concessões à pusilanimidade. Nunca se pode dizer até onde esse caminho nos levará; cede-se primeiro em palavras e depois, pouco a pouco, em substância também. (1921, p. 102).

Não estamos inadvertidos de que a posição de Freud leva em conta o contexto sociocultural de sua época: a Viena vitoriana. A opção pelo termo sexualidade considerava uma estratégia política para colocar em primeiro plano as motivações sexuais por detrás do sofrimento neurótico, e o termo erotismo lhe pareceria fazer uma concessão perigosa aos pudores vigentes de então. O próprio Freud assim se explica em Além do

Princípio do Prazer (1920): “O conceito de ‘sexualidade’ (…) teve, é verdade, de ser ampliado de modo a abranger muitas coisas que não podiam ser classificadas sob a função reprodutora, e isso provocou não pouco alarido num mundo austero, respeitável, ou simplesmente hipócrita” (p. 62).

Com a necessidade de ampliar o uso do termo sexualidade, ao admitir a existência de uma libido narcisista e a aplicação da energia sexual em outro âmbito que não o da relação genital, Freud propôs chamar os instintos sexuais de Eros, voltados para os objetos, como em oposição com um instinto concorrente chamado instinto de morte, o qual buscaria o retorno ao inorgânico. Seriam ambos instintos básicos, originais, frutos

da visão dualista de seu autor. Ao elencar Eros e Tânatos, pulsão de vida e pulsão de morte, Freud assinala a especificidade de sua metapsicologia. Eros busca a vida e faz ligação com os objetos. Tânatos deseja o retorno ao inorgânico e realiza rupturas.

Assim, se fizermos uma leitura atenta de alguns de seus textos dedicados a pensar a sexualidade e a agressividade – os Três ensaios (1905b), Além do princípio do prazer (1920), Psicologia de grupo e análise do ego (1921) e O mal-estar na civilização (1931) – testemunharemos Freud questionando sua escolha de terminologia e ora utilizando a expressão libido – para denominar os instintos sexuais – ora usando o nome de Eros, querendo referir-se aos instintos de vida.

De todo modo, podemos reter a ideia que Freud desejava comunicar: independentemente do nome utilizado, importa que tal força, para o autor, buscava a ligação com outros objetos, esta era sua ideia central. Em Além do princípio do prazer (1920), estabelece uma aproximação para Eros que reúne os elementos em questão, quando afirma que “a libido de nossos instintos sexuais coincidiria com o Eros dos poetas e dos filósofos, o qual mantém unidas todas as coisas vivas” (p. 61). Para Freud, Eros é ligação e investimento em um objeto no exterior, é comunhão, antagonizado por Tânatos, os instintos de morte, de natureza conservadora, que desejam o retorno ao inorgânico e, portanto, não buscam a ligação ou a produção de novas formas de vida.

No geral e a princípio, portanto, a expressão erótico estava associada a uma relação com algo externo ao sujeito. O erótico busca uma ligação, uma união com um objeto para fins de realização sexual, seja esta uma consecução carnal (a transa), seja uma manifestação inibida em sua finalidade, nas palavras de Freud, que designe relações de amizade ou o amor entre pais e filhos, por exemplo.

Entretanto, uma última nota a este respeito. Devemos observar que Freud encontrou sérias dificuldades em seu esforço para tentar depurar a libido – sexual – da agressividade. Prova disso são suas especulações sobre o sadismo e o masoquismo, e sua tentativa de pensar os dois instintos – o de vida e o de morte – como mesclados, de uma forma ou de outra. Assim, Freud daria conta de explicar a relação de ambivalência entre amor e ódio nas relações humanas. Sua elaboração em Além do Princípio do Prazer consta a seguir: “Se não quisermos abandonar a hipótese dos instintos de morte, temos de supor que estão associados, desde o início, com os instintos de vida” (1920, p. 67). Ou seja, aqui ele tentava compreender como a agressividade – dirigida para dentro do sujeito ou para fora – podia estar presente dentro da sexualidade. É que, para Freud, o erótico é, a princípio, desvinculado da agressividade, da destrutividade e, portanto, da morte. Não significa que não possam coexistir, mas se trataria, para Freud, de elementos diferentes. Assim, sabemos que o erotismo consistia na disposição pulsional para a ligação com objetos externos. Ocupamo-nos destas notações pois encontraremos autores para os quais erotismo e agressividade não podem ser dissociados.

Trazemos, a seguir, o suporte de uma afirmação sua do texto Psicologia de Grupo

e Análise do Ego (1921):

A libido se liga à satisfação das grandes necessidades vitais e escolhe como seus primeiros objetos as pessoas que têm uma parte nesse processo. E, no desenvolvimento da humanidade como um todo, do mesmo modo que nos indivíduos, só o amor atua como fator civilizador, no sentido de ocasionar a modificação do egoísmo em altruísmo (pp. 113-114, grifo nosso).

Existe, portanto, claro antagonismo entre erotismo e egoísmo. O erotismo estaria, de certa forma, em luta contra o ego, ou contra a libido narcísica, que pretende permanecer

adstrita ao ego. O impulso erótico tenderia a levar esta libido a ser aplicada em objetos que possam funcionar como substitutos para o objeto original perdido. Nas palavras de Freud, “o nome ‘libido’ pode mais uma vez ser utilizado para denotar as manifestações do poder de Eros, a fim de distingui-las da energia do instinto de morte” (1930 [1929], p. 125).

Apesar destes elementos servirem para nos conduzir pela complexidade do tema, não nos levam a uma conclusão clara. Podemos apreender o desenvolvimento da teoria da sexualidade e da teoria da libido de Freud, mas entendemos que sua conclusão não apresenta distinção notável entre sexualidade e erotismo. Esta investigação, portanto, nos caberá nas páginas seguintes.

O que se opõe ao erótico, para Freud, ele propôs chamar de instinto de morte. E tratará de explicar o que entende por este movimento através de um raciocínio instigante que dirá de uma tendência essencial em direção à morte: “Parece, então que um instinto

é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças perturbadoras externas” (1920, p. 47, grifo do autor). Constrói, assim, a ideia de que a substância viva tende naturalmente para o retorno à morte. No entanto, cada modificação que é obrigada a efetuar em si própria, a afasta da morte:

assim, por longo tempo talvez, a substância viva esteve sendo constantemente criada de novo e morrendo facilmente, até que influências externas decisivas se alteraram de maneira a obrigar a substância ainda sobrevivente a divergir mais amplamente de seu original curso de vida e a efetuar détours mais complicados antes de atingir seu objetivo de morte (p. 49).

Temos um insight interessante: estes détours de que fala Freud (os mesmos desvios tratados no capítulo sobre a sedução), afastam o sujeito da morte, é esta a ideia

insinuada. Os objetos – as influências externas – desviam o sujeito do retorno ao inorgânico, cabe pensar. Tal sedução arranca o sujeito da morte, da cama, do autoerotismo, nada mais, nada menos. Ainda que tal insight seja fruto de um exercício especulativo e descompromissado de Freud, esta ideia parece cabível para pensarmos no encontro clínico e nas ambições em torno da noção de tratamento.

Em outra afirmação marcante para nossos interesses, Freud pensa o erotismo como civilizatório. Tal conclusão é necessária para o diálogo com os próximos autores:

A inclinação para a agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-subsistente, e retorno à minha opinião de que ela é o maior impedimento à civilização (. . .) A civilização constitui um processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos, e nações numa única grande unidade, a unidade da humanidade (1930 [1929], pp. 125-126). Trata-se de um instinto que se descobre “lado a lado de Eros” (p. 126). Com estas ideias, Freud assinala o caráter de um combate permanente entre as duas forças presentes no humano. A civilização, bem como o indivíduo, está representada na “luta entre Eros e a Morte, entre o instinto da vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana” (p. 126).

Entendemos o erotismo como uma expressão desta luta, um derivativo, tal como Freud diz em Mal-Estar na Civilização. Uma tentativa de unir estas partes antagônicas e dar expressão à luta contínua. Bom, se a civilização é uma forma de conciliação possível, veremos que o erotismo é outra. Mas para termos maior clareza quanto a esta indagação, será necessário percorrer os próximos trechos.