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5. MODALIDADES DA FALA

5.5. Particularidades da fala histérica

Podemos ainda extrair mais insights para este diálogo com o caso clínico, ao pensar nas qualidades da fala em questão. Se até aqui falamos principalmente das propriedades referidas à forma, agora podemos pensar no que ela poderia querer dizer no que traz de conteúdo.

A maior parte do discurso de Beatriz era direcionada para as voltas que percorria para dizer do impasse vivido com os rapazes que namorou. Para além de uma camada extremamente repetitiva, podemos supor que Beatriz tentasse circunscrever melhor sua questão. Com o subtítulo, introduzimos nossa primeira questão: que podemos dizer de seu discurso? Diríamos que se trata de um discurso do feminino, rodeado por traços histéricos, mas em que nos amparamos para afirmar isso e, mais importante, que uso podemos fazer disto?

Apresentamos alguns apontamentos: sobre sua relação com os namorados, Beatriz mostrava-se sempre muito interessada e preocupada com seu valor (retenhamos esta palavra, falaremos mais dela adiante). Não queria se comportar de forma a ter seu valor diminuído perante eles. Certa vez disse: não quero perder a virgindade porque do

contrário, ele ganha! Noutra vez: Será que ele aguenta sustentar o casamento? Será que

basto como mulher para ele? Em outro momento: será que ele me ama pelo que eu sou

ou porque quer transar comigo?

Em um primeiro ponto, escutamos um rodeio pela questão do ser. Beatriz se pergunta pelo que ela é a partir do olhar de seu namorado. Ao mesmo tempo, desconfia que o que atrai o amor de um homem seja a oferta da penetração sexual. São perguntas permeadas por uma teoria de lugares e de poder, podemos dizer de uma teoria impregnada de significação fálica: para que um ganhe, o outro haverá de perder. Vencerá aquele que

souber reter seu valor. Beatriz dialoga com o adágio hegeliano: a luta de reconhecimento entre o senhor e o escravo. O reconhecimento de um custa a submissão do outro.

Podemos incrementar o raciocínio sobre o caso clínico com novos elementos que são resgatados: quando Beatriz comparava-se com sua prima, observando como esta tinha um corpo mais vistoso, como assumia sua sensualidade, como tratava seu próprio namorado, e mais, quando Beatriz se comparava com outras mulheres e tecia suas elucubrações: será que ele não preferiria outras mulheres a mim? Não conseguimos, com isto, escapar de pensar em Dora, a célebre paciente de Freud, preocupada com o valor da Sra. K. para os homens: seu pai e o Sr. K. Ao pensar nas possíveis causas para a interrupção do tratamento por Dora, Freud avalia a condução que deu ao processo e chega a conclusões sobre a transferência e sobre a sexualidade que são de importância para nosso caso. Avaliaremos alguns destes pontos mais adiante, quando falarmos detidamente da noção de transferência.

Pois recapitulemos: Beatriz pergunta-se pelo seu ser. Tem mais pistas nas mãos, como se se perguntasse: o que me faz ter meu valor? O que causa o desejo de um homem,

meu namorado? O que sou eu em comparação às outras mulheres?

Esta narrativa pode ainda ser complementada: sua mãe lhe diz que precisa ser esperta, precisa tomar a decisão certa. E qual seria esta? Aquela que lhe garantirá seu ser, caberia supor. Se fizer a escolha certa, será feliz, terá seu valor reconhecido, será amada. Se não fizer esta escolha, poderá colocar tudo a perder. Ao mesmo tempo, procura apresentar algum desafio à mãe, o que entendemos como uma espécie de sondagem, de consulta, um pedido para que a mãe fantasie o que entende por uma vagabunda: Mostre-

me mãe, como é uma vagabunda para você, para que eu saiba. Se você despreza uma vagabunda, talvez haja algo a descobrir a este respeito para entender o que um homem

quer. É parte de seu movimento conservador: como se quisesse ver o que todos pensam sobre o feminino, para que ela veja, como espectadora resguardada, sem que seja necessário se mostrar, por enquanto. Beatriz entende que o feminino é um lugar específico, e se trata de identificar o que os outros entendem por uma mulher. Como se quisesse saber o que é uma mulher para depois vir a ser uma, ótima, de preferência.

Se considerarmos esta suposição cabível, constatamos que Beatriz levava sua missão bastante a sério. E é por esta dedicação apaixonada que chegamos ao desejo histérico. “Desejar um desejo é querer deter o valor desejado pelo desejo do outro” (Quinet, 2011, p. 92). Este autor dirá das implicações adiante:

Se, em Hegel, o desejo é desejo do outro, meu semelhante, a única mediação que poderia haver é a própria violência presente na luta de prestígio, violência do ímpeto de destruir o outro que é próprio da dimensão do imaginário onde o outro é igual e rival (p. 93).

Parece ser isto o que Beatriz fazia com a mãe (com quem rivalizava através do silêncio), com os namorados (com quem disputava o poder), com as mulheres (a quem admirava, invejava e diante das quais se sentia diminuída) e com o próprio analista (diante do qual disfarçava qualquer afeto). Quinet oferece outro comentário para pensarmos nos desdobramentos desta hipótese:

A histérica, em sua estratégia, acentua a demanda de amor para escamotear o desejo, fazendo então aparecer a demanda do ser (. . .) Provocando a falta no Outro – recusando-se a falar, fazendo-se de desentendida –, ela provoca elaboração do saber para mostrar a impotência do analista; armando peças para o analista cair. No caso do analista homem, ela quer saber se ele é macho e, no da analista mulher, o quanto ela o é (p. 109).

Franco, ao se debruçar sobre a análise da transferência na histeria, pensa justamente nas especificidades desta estrutura dentro de um setting analítico: “A histérica expõe sua questão na análise: como posso ser uma mulher? (. . .) o que há em mim que pode agradar aos homens? A histérica demanda e oferece amor ao analista perguntando por sua feminilidade” (Franco, S. G, Berlinck, M.T. & Wondracek, K.H.K., 2013, p. 105). Afinal de contas, dirá o autor, “a histérica está em busca do amor” (p. 105).