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6. O CAMPO DA TRANSFERÊNCIA E SEUS IMPASSES

8.9. O erotismo como excesso e como violência

Outra faceta do erotismo dirá respeito ao seu aspecto destrutivo, visto que aqui se afigura o caráter de desconsideração do erótico para com qualquer ideia prévia de Bem, como tematizado por Lacan em seu Seminário 7, e para com qualquer proveito utilitário, como tematizado por Bataille e Castello Branco, e até mesmo de amor, como pretendido por Freud e contrastado por Paz. De que natureza se trata, então?

Para Bataille, há no erotismo uma manifestação indissociável da morte: O erotismo é “a vida levada a uma intensidade tal, sempre através do gasto inútil de energia, que não se distingue mais da morte” (2013, p. 16). Tal afirmação denuncia a diferença radical com a leitura freudiana.

Em outro trecho, Bataille dirá do caráter transbordante: “Há um excesso horrível do movimento que nos anima. O excesso ilumina o sentido do movimento” (p. 42). Segundo Bataille, o excesso é, por si só, uma característica da própria vida, do corpo: “A carne é em nós esse excesso que se opõe à lei da decência” (p. 116). Sua frase mais poderosa, no entanto, vem a seguir:

Há na natureza e subsiste no homem um movimento que sempre excede os limites, e que jamais pode ser reduzido senão parcialmente. Desse movimento, geralmente não conseguimos dar conta. Por definição, ele

é mesmo aquilo de que jamais nada dará conta, mas perceptivelmente vivemos em seu poder (pp. 63-64).

Diz o autor francês que o erotismo aterroriza o homem, pois impõe sobre ele pressões intensas. Dirá em um momento que “o espírito humano está exposto às mais surpreendentes injunções. Incessantemente ele tem medo de si mesmo. Seus movimentos eróticos o aterrorizam” (p. 29). Em outra passagem, será mais taxativo ao falar da “violência elementar, que anima, quaisquer que sejam, os movimentos do erotismo. Essencialmente, o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação” (p. 40). Segundo Bataille, a violência reside na mudança de um estado de continuidade – de um ser fechado em si mesmo – para um estado de descontinuidade, em que o ser se abre para integrar-se com um todo maior que ele: “o arrancamento do ser à descontinuidade é sempre o mais violento” (p. 40).

Em diálogo com Bataille (e com Nietzsche), Fédida oferece uma conclusão intrigante para pensarmos não apenas na ideia do excesso no erotismo, como na ideia do

pathos que atravessa a experiência humana:

A Erótica traz em si mesma um fracasso, um estranho fracasso. Este fracasso é uma espécie de defeito, resultante da ameaça sempre iminente do seu excesso. A Erótica é o excesso, o excesso que não poderia ser compreendido diretamente na inadequação de todo objeto. O defeito inerente à Erótica e ao erotismo seria próprio à condição humana, condição humana que, segundo Nietzsche, faz pensar que ser homem é ser doente (1991, p. 93)

É uma afirmação forte. Fédida sustenta a ideia de que a sexualidade desempenha uma função que passa ao largo de qualquer pretensão à harmonia: “A sexualidade, em sua descoberta freudiana, decerto não corresponde a um ideal de felicidade, mas a uma

função tóxica. Isto se enquadra inteiramente na perspectiva que evoquei (. . .), a de uma autotoxicidade humana” (p. 99). Dialoga estreitamente com nossos estudos sobre a sedução, na seção anterior, quando afirmamos que o contágio da sexualidade, através de uma cena de sedução, traz este desdobramento infeccioso no humano. O erotismo parece circular neste mesmo campo.

Sobre seu caráter tanático, Castello Branco esclarece esta mistura entre erótico e mortífero: “O prazer dos indivíduos não se vincularia necessariamente à vida, podendo algumas vezes estar intimamente aliado a Tânatos, à morte” (2004, p. 31). Dirá que “o erotismo é sempre este salto no escuro, o salto terrível e fascinante para além de si mesmo e, simultaneamente, o contato íntimo com essa presença materna, originária que nos habita. É origem e fim, é vida e morte” (p. 41). Faz uma associação densa, ao assinalar diversas implicações: (i) o salto terrível para além de si mesmo; (ii) o contato com a presença materna que nos habita; (iii) é vida e morte. Reencontramos aqui uma premissa que vimos explorando ao longo de todo nosso trabalho de pesquisa: o lugar da presença materna, que funda e que fica em nós ao longo de toda nossa vida. Para Castello Branco, o erotismo é este campo que contempla a experiência entre verso e reverso, entre o ser e o não-ser, entre o ser e o além do ser. Os autores aqui citados fazem um desenvolvimento distinto daquele pretendido por Freud. Enquanto para este o erotismo seria correspondente ao impulso sexual, para os autores citados há pouco, o erotismo descola-se do impulso sexual puro para rearranjar os elementos, para desconstruir estruturas. Segundo Castello Branco, Paz e Bataille, o erotismo se apresenta sob esta premissa mutante e fluída.

Sobre a condição bífida do erotismo, Paz enuncia uma diferença fundamental em relação à experiência do amor. Dirá de Eros:

Esse demônio ou espírito no qual encarna um impulso que não é puramente animal nem espiritual. Eros pode confundir-nos, levar-nos a cair no

pântano da concupiscência e no poço do libertino; também pode nos elevar e levar-nos à mais alta contemplação. Isto é o que chamo de erotismo (. . .) que tento distinguir do amor propriamente dito (1994, p. 45)

Ainda, diante de todas estas manifestações do erotismo, precisamos conceder a ele seu caráter de violência sobre o narcisismo e sobre alguns dos princípios que governam o funcionamento mental do psiquismo, entre eles, o da inércia. Em oposição à tendência à homesostase, o erotismo se afigura como ruptura, subvertendo lugares e desconsiderando os princípios de defesas estabilizadoras.

Salomé também denuncia este caráter de abalo: “É que nossa vida sexual (..) age, a partir de seu domínio físico particular, sob a forma de uma agitação interior do ser humano no seu conjunto e que causa uma perturbação de extrema violência” (1991, p. 85), enquanto Bensusan e Antunes notam que “há apenas uma quantidade de erótico que podemos suportar” (2012, p. 90), para logo depois concluírem: “O erótico faz perder a cabeça” (p. 90). Para concluir, Castello Branco nos fala da transgressão:

Mesmo sendo controlada por inúmeras leis e interdições (. . .), a violência costuma irromper subitamente no ser humano, seja por intermédio do erotismo (ir além de si mesmo, de encontro ao outro), do misticismo (. . .), ou ainda da própria morte, que ultrapassa o homem, desorganiza sua vida, lança-o no caos. Morte e erotismo são, portanto, resultados desse movimento em direção à transposição dos limites; são produtos da violência que nos domina (2004, p. 37).

Sobre a esfera da transgressão, Bataille, dirá que é o interdito que engendra o erotismo, através do gesto da transgressão. Para este autor, sem interdição, não haveria erotismo. O erotismo é um paradoxo, uma ambiguidade ineludível entre a vida e a morte.

É um espaço de tensão com vigor próprio. Ao homem, cabem recursos para acolher essas formas de erotismo, ou mecanismos para se defender de seus efeitos e excessos.

Julgamos ter reunido material suficiente para a abertura de olhar e escuta a que nos propusemos. Nas conclusões a seguir pretendemos oferecer um depoimento que dê um testemunho justo dos rearranjos que esta pesquisa pode trazer ao clínico e à sua compreensão do caso.