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O erotismo como experiência do irrepetível, do irreproduzível

6. O CAMPO DA TRANSFERÊNCIA E SEUS IMPASSES

8.6. O erotismo como experiência do irrepetível, do irreproduzível

Antes de mais nada, um esforço para clarear estas duas últimas seções: o irreproduzível é diferente do indizível. Uma coisa é o erotismo ser um fenômeno que surge ou desaparece de forma aleatória ou imprevista. Outra coisa é ele ser um fenômeno não passível de ser inteiramente capturado em palavras. Entendemos que a combinação destas duas características funcionaria como um correlato do que a Psicopatologia Fundamental chama de surpreendente enigmático, motor de nosso interesse de pesquisa. Diremos que a iniciativa à pesquisa é uma aceitação em favor da abertura erótica.

Desta forma, uma das facetas mais intrigantes e convidativas do erotismo está em seu caráter inapreensível, como o atestam diversos autores. Fazemos constar a seguir a compilação que fomos capazes de arregimentar com relação exclusiva a esta faceta do erotismo. É de Salomé nosso primeiro comentário:

A exigência da escolha, do objeto erótico e do momento do amor (. . .) é paga pelo esgotamento que em breve provoca tudo aquilo que mais violentamente se desejou, e por isso pelo desejo do que nunca se repete, a força ainda intacta da excitação: a mudança. Pode se dizer que a vida erótica (. . .) se funda no princípio da infidelidade (1991, p.22, grifo nosso). Logo a seguir, faz outra afirmação intrigante: “O fato do erotismo ser, por natureza, difícil de conciliar com a fidelidade não é sinônimo de fragilidade ou de depreciação; um tal fato representa nele, ao contrário, um sinal de ascensão para conexões vitais ainda mais vastas” (p. 22). Reconhecemos que o grifo que Salomé pretende oferecer está na questão do caráter de infidelidade do erótico, de amor à mudança. No entanto, valorizamos a expressão do que nunca se repete, como representando uma das facetas deste conceito. O erotismo escapa à permanência e à estabilidade, eis a ideia que tanto

Salomé quanto outros autores irão salientar, coadunando-se com as descrições freudianas sobre a libido e as pulsões de vida, e em oposição ao movimento conservador egoico.

Vejamos a ideia seguinte: “O excesso espiritual em que se satisfaz esta vibração se harmoniza de certo modo com uma tecla tocada pela primeira vez, tomando o partido de todas as aspirações a um estado obscuro e inexprimível” (p. 36, grifos nossos). São dois grifos pulsantes: uma tecla tocada pela primeira vez, expressão que nos remete à afirmação de Freud, segundo a qual o seio é o primeiro objeto erótico da criança. Em seguida, o estado obscuro e inexprimível...

Novamente pensamos no enigma da pesquisa. Aquilo que fisga, que seduz, que captura o clínico. Que o enfeitiça em busca da gênese, que o incita às origens dos encantos. Quer o clínico deixar-se encantar? Quer o clínico conhecer as modalidades possíveis de encanto? Sustentamos que sim, embora tal resposta deva ser considerada parcial, na medida em que o clínico deve tanto querer deixar-se encantar como deve querer despertar do encanto, para elaborar e transmitir esta experiência. Por isso, esta pesquisa demanda-nos um cuidado: sustentar uma discriminação entre o trabalho associativo produzido à posteriori e o trabalho clínico realizado dentro de um período finito de tempo. O encanto da pesquisa e do enigma é algo diferente do encontro dado entre analista e paciente.

Ainda, trazemos à baila uma das frases mais contundentes de Salomé sobre o tema: “É por isso que o erotismo (. . .) deve ser indubitavelmente, em sua essência, concebido como um ato intermitente, que surge e se interrompe, e de que nem a intensidade nem a felicidade de que nos inunda esclarecem, em cada caso particular, sua duração provável” (pp. 93-94, grifo nosso). Podemos experimentar juntar duas ideias abordadas até aqui para iluminar uma questão: se o erotismo pode ser pensado como um conjunto

de estratégias de abordagens do objeto (cf. Holck) e, ao mesmo tempo, como ato intermitente, fica desde então subentendido que o fenômeno do erotismo escapa ao controle do sujeito sob seus efeitos. Eis o paradoxo decorrente: é uma estratégia, ao mesmo tempo em que é incontrolável. É um ato determinado por uma lógica que escapa à razão do sujeito. Aqui, o inconsciente se afigura como determinando parte das inclinações eróticas.

Paz (1999), por sua vez, realizou dois grandes estudos sobre o erotismo, e buscamos dialogar com seu material, um dos mais especializados: “O erotismo não se deixa reduzir a um princípio. Seu reino é o da singularidade irrepetível; escapa continuamente à razão e constitui um domínio oscilante, regido pela exceção e pelo capricho” (pp. 55-56). E continua logo a seguir: “Todos os atos eróticos são desvarios, desarranjos; nenhuma lei, material ou moral, os determina. São acidentes, produtos fortuitos de combinações naturais” (pp. 56-57).

Em um livro de diálogos com os escritos de Heráclito, os anarqueólogos Bensusan e Antunes fazem incursão ao terreno do erótico para fornecer algumas afirmações merecedoras de atenção: “O erótico, que age com muitas velocidades, não é subordinável, apenas é às vezes tão lento que não age no tempo que esperamos viver” (Bensusan, H. Antunes, L. & Ferreira, L. 2012, p. 90, grifo nosso). Encontra-se com o que dizem Salomé e Paz. Aliás, este aspecto de espera é também incluído por Bataille, que salienta tal especificidade: “a experiência erótica ligada ao real é uma espera do aleatório” (2013, p. 46, grifo nosso).

O que temos aqui e qual seu diálogo com a clínica? Em primeiro lugar, cabe pensar que o analista está diante de um fenômeno da ordem do imponderável. Em segundo, que, em algum nível, está subordinado às suas manifestações, podendo apenas avaliar suas consequências à posteriori. Trata-se de reconhecer esta característica fugidia

do fenômeno erótico, certamente correlata da abertura do inconsciente. Não se trata de um ingresso em um campo aberto a qualquer um ou a qualquer instante, mas de uma abertura rara, imprevisível, intermitente, infiel. Implica, ainda, na inclusão do tempo de espera do acidente erótico. Isso não deveria surpreender-nos, pois faz coro tanto com o conceito de inconsciente e suas formações, quanto com o campo da Psicopatologia Fundamental, e sua dívida para com o conceito de pathos e do surpreendente enigmático.

É tentador que façamos questões à medida que caminhamos. No entanto, há outros elementos importantes a serem considerados, motivo pelo qual evitaremos nos precipitar em conclusões apressadas. Também, convidamos o leitor a deixar-se invadir por estas ideias e experimentar sua própria abertura associativa para participar deste diálogo, contribuindo para que algo do erótico o acompanhe nesta trilha.