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O erotismo como criação mito-poiética epopeica

6. O CAMPO DA TRANSFERÊNCIA E SEUS IMPASSES

8.7. O erotismo como criação mito-poiética epopeica

Existe também uma associação diretamente possível entre o erotismo e as forças criativas. Ao promover o encontro com a surpresa e com o indizível, abre-se no ser o contato com possibilidades inéditas de perceber e, portanto, de tentar nomear experiências até então insabidas. Salomé assim introduz sua associação:

Entendemos de um modo muito mais nítido o que são os estímulos fundamentais, os verdadeiros estímulos do erotismo, quando os comparamos com outros processos através dos quais a imaginação se exprime com energia, em particular com os da criação artística. Estamos neste caso em presença de um parentesco profundo (. . .) pois, no ato do artista, entram em ação e emergem, sob as forças

individualmente adquiridas, forças arcaicas de uma apaixonada emoção (1991, p. 33, grifo nosso).

A proximidade possível com a cena de Freud do início de nosso capítulo é inevitável. Nas palavras de Quignard: a primeira aurora através da qual descobrimos a

luz e que nos deslumbra. A força criadora – e erótica – é aquela que dialoga com esta cena, em que constam sujeito e objeto, mas onde o objeto não está definido de antemão, ele simplesmente está presente na cena, sem clareza ao sujeito.

Assim, uma das formas para expor o erotismo estaria na poesia. Bataille dirá algo interessante: “a poesia conduz ao mesmo ponto que cada forma do erotismo, à indistinção, à confusão dos objetos distintos” (2013, p. 48), enquanto Paz assinala que “a relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal” (1994, p. 12), e logo adiante, que “a poesia erotiza a linguagem e o mundo porque ela própria, em seu modo de operação, já é erotismo” (p. 12). Tanto erotismo quanto poesia, portanto, mexem nos lugares dos objetos, subvertem as posições. Lembremo-nos da fala de Baudrillard sobre a reversibilidade como fundamento da sedução. Mas, se voltarmos à fala de Paz, notamos que há ainda outra um grifo convidativo: a capacidade de se erotizar a linguagem. Existe um erotismo verbal, dirá Paz. E quanto a esta natureza, oferece a seguinte construção:

A poesia nos faz tocar o impalpável e escutar a maré do silêncio cobrindo uma paisagem devastada pela insônia. O testemunho poético nos revela outro mundo dentro deste, o mundo outro que é este mundo. Os sentidos, sem perder seus poderes, convertem-se em servidores da imaginação e nos fazem ouvir o inaudito e ver o imperceptível. Não é isso, afinal, o que acontece no sonho e no encontro erótico? (1994, p. 11).

Aqui o autor tem a oportunidade de nos legar esta associação com o sonho, elemento tão caro à psicanálise. Quando a imaginação é capaz de ouvir o inaudito, quando os sentidos permitem que se acesse um outro mundo para além da percepção imediata, estamos no domínio do erotismo.

Com efeito, Paz tem comentários bem pertinentes para esta seção. Dirá que “o erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. A imaginação é o agente que move o ato erótico e o poético. É a potência que transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora” (p. 12). Diz com isso que o erotismo é uma elaboração, uma sofisticação de um material bruto. Em outra passagem, assinalará “as afinidades entre erotismo e poesia: o primeiro é uma metáfora da sexualidade, a segunda uma erotização da linguagem” (p. 49). O erotismo como metáfora! Que ideia interessante! Tem a estrutura de uma metáfora que, por sua vez, procura responder à interpretação possível de ser feita sobre o objeto. Suas associações são abundantes:

O erotismo é exclusivamente humano: é sexualidade socializada e transfigurada pela imaginação e vontade dos homens. A primeira coisa que diferencia o erotismo da sexualidade é a infinita variedade de formas em que se manifesta, em todas as épocas e em todas as terras. O erotismo é invenção, variação incessante; o sexo é sempre o mesmo (p. 16) Sobre a diferença entre erotismo e sexualidade, Paz entende que “o erotismo não se deixa reduzir à pura sexualidade animal (. . .) Erotismo e sexualidade são reinos independentes” (1999, p. 21). Tais definições sofisticam incrivelmente as primeiras articulações de Freud sobre o tema. Pois aqui, Paz dirá que o erotismo depende de uma ação humana que lhe transforma: “O erotismo, que é sexualidade transfigurada pela imaginação humana (. . .) muda, transforma-se continuamente e, não obstante, nunca

deixa de ser o que é originalmente: impulso sexual” (1994, p. 24). A seguir, procura clarear a discriminação entre tais conceitos:

Não é estranha a confusão: sexo, erotismo e amor são aspectos do mesmo fenômeno, manifestações do que chamamos vida (. . .) O erotismo e o amor são formas derivadas do instinto sexual: cristalizações, sublimações, perversões e condensações que transformam a sexualidade e a tornam, muitas vezes, incognoscível (p. 15)

Paz permite entrever aqui uma possibilidade de solução de um problema que deu muito trabalho a Freud: a mescla de elementos destrutivos (sádicos e masoquistas) e outras condensações que pareceriam roubar ao erotismo sua herança da sexualidade. Este caráter do erótico como elemento transformado da sexualidade nos interessa. Paz não está sozinho nesta leitura. Melman (2003) também intervém com notas complementares:

Em suma, assistimos à passagem do que outrora era o erotismo – que é uma atividade altamente intelectual e que passa pela linguagem – à exibição imediata e direta do objeto, causa excitante do desejo, que funciona como um convite ao gozo. É assim que passamos do erotismo ao que devemos realmente chamar de pornografia (p. 148, grifo nosso). Melman está fazendo uma crítica à pornografia, mas precisaremos ater-nos ao que interessa ao diálogo que estamos construindo: o fato do erotismo poder ser considerado uma atividade altamente intelectual que faz uso da linguagem e que, junto a isso, se opõe à exibição imediata e direta do objeto, o equivalente àquilo de que temos falado, a Coisa. Para Melman, o erotismo como capacidade humana vem sendo substituído pela abordagem pornográfica, que seria uma outra estratégia de aproximação deste objeto. O erotismo é parte da capacidade de espera, do adiamento da descarga pulsional. O erotismo também é princípio de realidade. Tal leitura está sustentada pela premissa que considera

ser o erotismo “um fenômeno que se manifesta dentro de uma sociedade e que consiste, essencialmente, em desviar ou mudar o impulso sexual reprodutor e transformá-lo numa representação” (Paz, 1994, p. 97)

Aqui, desejamos apenas colocar em relevo um impasse que, pelo momento, permanecerá não solucionado: chamar-se-á erotismo o esforço que reconhece tal distância em relação ao objeto, que podemos chamar de vertente civilizada e sublimatória; ou chamar-se-á erotismo quaisquer posturas de relação com o objeto, civilizadas ou incivilizadas? Por exemplo: a toxicomania – tentativa apaixonada de encontro imediato com a Coisa – pode ser considerada uma forma de erótica? Dependerá da premissa que queiramos defender, e já advertimos o leitor de que não pretendemos fechar esta escolha pelo momento. Prossigamos, portanto, em nosso esforço de abertura.