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6. O CAMPO DA TRANSFERÊNCIA E SEUS IMPASSES

8.8. O erotismo como dissolução de formas

Como já foi dito no desenvolvimento freudiano do tema, reafirmamos que o erotismo é uma experiência antiegoica, ou seja, em conflito com as funções do Ego. Onde este busca a síntese, a integração, a unidade, aquele oferece a dissolução, a fragmentação, a transgressão, a livre associação. Como diz Salomé, segue o princípio da infidelidade; como dizem Bensusan e Antunes, segue o princípio da desordem: “Eros junta e separa (. . .) O erótico provoca outra destruição (. . .) É a voz que faz com que nossos corpos se joguem. O erótico dissolve” (Bensusan et al., 2012, p. 89). Paz caminha para a mesma direção: “O princípio vital, a raiz geradora do erotismo, é a dissolução universal” (1999, p. 91).

Não se apega a um objeto específico, pois seu objetivo é o deslocamento, mas procura fazer deste movimento um jogo cujo fim é ele mesmo. Assim, convidar o paciente para que associe livremente, que abdique de suas censuras egoicas, corresponderia a

convidá-lo a deixar que o erótico surja. Sobre este aspecto de jogo, Castello Branco diz que o erotismo “corresponde a uma modalidade não utilitária de prazer exatamente porque propõe o gozo como fim em si” (2004, p. 24).

Em complemento a estas ideias, Salomé diz que o hábito opõe-se ao erotismo: “O hábito, que encarna o contrário do prazer e é a força que ergue obstáculos perante ele, exprime por seu lado (. . .) os efeitos de necessidades físicas mais vegetativas e opostas à mudança que em nós existe” (1991, p. 22).

Os já citados Bensusan e Antunes destacam esta faceta ao iluminar mais princípios desse fato: “Há uma maneira de pensar sobre o erótico entre as forças de dispersão, como o avesso da retenção” (2012, p. 83). Em outra passagem, procuram apresentar e discriminar Eros e Eris23, o que nos auxilia a pensar o erótico: “Eros é eris, eris é

quebradeira. Eris não é só combate, é disponibilidade – a compulsão a tornar partes de si disponíveis (. . .) O mundo não é feito de ingredientes – é jogo de armar que nunca está armado e nunca está em pedaços” (p. 85). Para o erotismo, o corpo, que tomamos como unidade humana fechada, não chega a ser considerado como definição final de fronteira, pois o erotismo tende a alternar as noções de parte e de todo: “O erótico não reconhece partes prontas, ele reconhece composições. É a força das burilações, dos novos ensaios, dos processos que não se solidificam” (p. 89)

Em outro ponto, temos a seguinte afirmação: “Eris é a força de desindividualização: colocar-se à disposição (. . .) Os corpos sempre estão à disposição, mas as disposições não têm dono” (p. 85). Os corpos estão à disposição de outra coisa. Seria o erótico colocar-se à disposição de pathos, de alguma forma? E seria a

23 Com os autores, apresentamos Eris segundo seu contexto na Mitologia grega: “Eris é a deusa da discórdia; segundo Hesíodo, ela é filha primogênita de Nix, a Noite, e mãe da Dor (Algea), da Fome (Limos), da Desordem (Dysmonia). Homero diz que ela é irmã de Ares (o deus da matança)” (p. 89).

Psicopatologia Fundamental uma terapéia da erótica, ao propor um discurso sobre pathos que leve em conta a subjetividade? Explicamos melhor: um discurso que reconheça o estado de assujeitamento a que o corpo e o psiquismo se encontram, abertos a um jogo de movimentos que lhes transcende. Uma abertura a deixar pathos produzir um encanto – também potencialmente perturbador, violento, traumático – e uma incitação a fazer deste evento uma experiência, uma obra compartilhada, produto civilizatório e cultural. Em grande medida, a afirmação a seguir se afigura como um corolário desta posição:

A força erótica não está sob nosso controle, é força de conexão, não de domínio como aquela que rege o movimento das nossas falanges (. . .) é uma apresentação da vulnerabilidade – esta é a força do erótico, da destruição das coisas prontas. A força de quem pode ser afetado. Não uma força que se cristaliza em poder, mas uma força como a do vento, que passa. Uma força de espalhamento, uma ânsia de destituição, a que estamos sujeitos. Sujeitos a tudo. Eros nos toma, é incorporação, é possessão (. . .) Não há destino, mas há destinos (pp. 88-89, grifos nossos).

Certamente o que faltou a Freud pode ser pensado a partir das contribuições destes autores, pois procuram desfazer a oposição que haveria entre Eros e Eris: Eros como ligação e Eris como destruição, supostamente antagônicos. Na verdade, dizem, ambas as forças rompem com a continuidade, ambas estão do lado da mudança das formas:

Eros e Eris estão do mesmo lado porque ambas são forças centrífugas, as duas mobilizam as partes para o espalhamento e a dispersão, não que com isso o amor perca sua capacidade de construir e reunir, mas a própria noção do que seja construir e reunir se modificam completamente (. . .) É que o amor não se contrapõe ao conflito, e não haveria sentido contrapô-lo a não ser desde a influência das forças

centrípetas que buscam convergir em um centro sólido e protegido, um centro civilizado e comportado que não traz nenhum risco, que conserva sem nenhuma doação, que busca reter e acumular (p. 87)

Entendemos a posição da Psicopatologia Fundamental como, em certa medida, aberta a esta circulação com outros campos do saber, outras posições na pólis, ao mesmo tempo em que se disponibiliza para ser afetada por esta circulação. Dizemos certa medida porque, ao mesmo tempo, ela preserva sua posição específica com relação a este saber.

Neste movimento de apagamento das fronteiras entre vida e morte, prazer e dor, entre eu e outro, o erotismo vem opor-se ao esforço científico de objetivação e separação: “Quando sob a influência das forças centrífugas o que domina é o abandono de si, é o se deixar levar por algo maior e mais poderoso do que nossas certezas e incertezas, é estar disponível como um avatar que se abre para aquilo que o toma em possessão” (p. 87)

Quanto a Bataille, seu livro O Erotismo (2012) apresenta algumas modalidades para pensar o erotismo, ao apostar em sua dinâmica entre continuidade e descontinuidade. Para ele, o erotismo se constitui a partir de uma relação entre interdito e transgressão. O interdito produz o acúmulo de energia necessária ao jogo erótico. E é aqui onde seu texto fala com mais vigor: “Toda a operação do erotismo tem por fim atingir o ser no mais íntimo, no ponto em que o coração desfalece. A passagem do estado normal ao de desejo erótico supõe em nós a dissolução relativa do ser constituído na ordem descontínua” (p. 41). Pouco adiante, dirá que “toda a operação erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que é, no estado normal, um parceiro do jogo” (p. 41). O que está em jogo no erotismo é uma dissolução das formas constituídas.

Assim como para outros autores, em Bataille o erótico está presente na irregularidade, na sua desconsideração para com as consequências. O que respalda este

movimento, vemos adiante: “A ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, ou seja, ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação, que revela a busca de uma continuidade possível do ser para além do fechamento em si mesmo” (p. 41). O erótico consiste em tomar o corpo e o humano como um pedaço – descontínuo – de um todo contínuo. Abrir-se para esta relação é acolher o abismo de tal entrega.