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3. MÚTUO CIVIL: SOBRE A INFLUÊNCIA DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL NA

3.1 ORDEM PÚBLICA

3.1.1 Desambiguação dos termos

Quando se relegam a um segundo, mas não ignorado, plano, os princípios que anteriormente se impunham peremptória e imperativamente – v. g., autonomia da vontade e força obrigatória dos contratos, para enfatizar os princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva, aliados às matérias de ordem pública e dos bons costumes, todos com forte carga de ambiguidade e tidos como limitadores da liberdade de contratar –, está-se, em verdade, estabelecendo uma diretriz ordenadora de comportamentos, visando coibir transgressões à celebração de um contrato equânime.

Para contextualizar o que acima se afirma, traz-se ao texto, a título exemplificativo, as afirmações de Irineu Strenger, para quem

“A ordem pública, não só no Brasil com em geral, sendo dificilmente enquadrável em conceituação abrangente, resulta, muitas vezes, em impasses difíceis de serem contornados.

O grande mal que afeta a ordem pública como instituição jurídica é sua forte conotação social e política. Muitas vezes a ordem pública, ao ser aplicada, resulta de expressões tanto vagas quanto imprecisas inseridas na lei, e que comportam diversidade de interpretações muitas vezes de índole subjetiva.”247

Nesse ponto, faz-se de bom alvitre a reprodução do alerta feito por Alysson Leandro Mascaro, ao tratar das lacunas do direito, para o fato de que:

“O Estado, por demandas estruturais das contradições sociais, obriga-se a responder os mais variados tipos de problemas e relações jurídicas. Como na prática o ordenamento não prevê tudo, o jurista passa a desenvolver ferramentas que auxiliam a alcançar, na prática, o que a realidade normativa estatal não fornece.”248

Dessa forma, em tom reflexivo, pode-se afirmar que a ambiguidade dos termos, não só da ordem pública, como apregoada por Strenger, amplia, em grande medida, a possibilidade de atuação do Judiciário. No caso concreto, especialmente no

247 STRENGER, Irineu. Aplicação de normas de ordem pública nos laudos arbitrais. In: Doutrinas Essenciais:

Obrigações e contratos: serviços e circulação. Organizadores Gustavo Tepedino e Luiz Edson Fachin. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. V. 6. p. 953.

enfrentamento e face à rapidez com que o fim econômico das relações tenta impor- se sobre as cláusulas contratuais, essa atuação é fundamental, do mesmo modo que ocorre a invocação desses termos quando erigidos a princípios gerais de direito. Percebe-se que o termo “ordem pública”, mesmo quando não se apresente, prima facie, como princípio específico, como princípio geral do direito ou como cláusula geral249 – por não fornecer significação estanque –, auxilia e concede aos aplicadores do direito, seus operadores e jurisdicionados, uma possibilidade de enfrentamento aos desatinos contratuais, sem a necessidade de aguardar a morosa atuação do legislador na criação de medidas legais que visem sanar discrepâncias contratuais criadas pelo imprevisível sistema financeiro-político-social. Ou seja, a ambiguidade250 dos termos, embora nociva aos estudos e às pesquisas científicas, serve, aqui, como fiel amparo nos momentos de infortúnio, isto é, concede ao contratante que se sentir “lesado” a guarida necessária ao restabelecimento da relação contratual justa e equânime.

A reflexão aqui proposta não é nova, já foi enfrentada, mesmo que sob outro enfoque, pela doutrina. Segundo Genaro R. Carrió, a linguagem natural, utilizada na elaboração de normas jurídicas, opõe-se à linguagem formalizada, que apresenta termos absolutamente precisos e inequívocos251.

249 Fabio Ulhoa Coelho considera a boa-fé objetiva e a função social como cláusula geral do direito contratual.

“As cláusulas gerais são normas jurídicas vazadas em um ou mais conceitos vagos destinados a deixar em aberto a questão dos exatos contornos do seu âmbito de incidência. O elaborador da norma, diante da alta complexidade do fato a regular, intencionalmente emprega expressão dotada de vagueza, de modo que o juiz possa nortear-se mais confortavelmente por ela na solução dos conflitos de interesse.” COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito

Civil: contratos. Ed. 3. Rev. São Paulo: Saraiva, 2009. V. 3. p. 30 e 31.

250 “Ambiguidade, uma forma fonológica (ou ortográfica) que tem vários significados (sentidos, caracteres,

representações semânticas), fixada pelo sistema de linguagem. A ambiguidade lexical ocorre quando são atribuídos pela linguagem múltiplos significados a um item léxico (palavra)”. AUDI, Robert. Dicionário de

filosofia de Cambridge. Tradução João Paixão Netto; Edwino Aloysios Royer et al. São Paulo: Paulus, 2006. p.

21. “... a ambiguidade é um erro formal, que ocorre, de preferência, no processo dialético, caracterizando-se pela diversidade de sentido ou de significado atribuído às palavras [...] A ambiguidade é a associação de um número finito de significados alternativos com a mesma forma fonética [...] Termo ambíguo é o que apresenta certo número de significados alternativos, com a mesma estrutura fonemática. Na linguagem jurídica, o termo ambíguo é uma dificuldade à interpretação”. FRANÇA, Limongi (Coordenador). Enciclopédia Saraiva do

Direito. São Paulo: Saraiva, 1978. p. 324 a 326.

251 CARRIÓ, Genaro R. Algunas palabras sobre las palabras de La Ley. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1971.

Carrió admite, ainda, que “los lenguajes naturales contienem expressiones ambiguas”252, e corrobora, em parte, a presente reflexão, ao afirmar que “esto quiere

decir que uma misma palabra, em tanto fonema o grafismo, puede tener distintos significados según los diferentes contextos en que vaya insertada…”253. Nesse

mesmo sentido a afirmação de Alf Ross de que “... expressiones diferentes pueden tener el mismo significado, así como la misma expresión puede, según las circunstancias, tener una diversidad de significados”254.

Carrió vai além ao acrescentar que a linguagem natural contém palavras vagas255 e exibe textura aberta, a qual, com a vagueza apresentada pelas palavras, pode apresentar pontos de perplexidades ou desconcertos legítimos256.

Não deixa de ser verdade, mas, ao mesmo tempo em que podem causar perplexidades, as palavras podem também servir para interpretações,decisões, que veiculem alvissareira justiça. Aliás, crítica a termos ambíguos como, por exemplo, “dignidade da pessoa humana”, “ativismo judicial”257, “função social do contrato”, “bons costumes” e “ordem pública”, bem assim a consequente e necessária desambiguação solicitada pela ciência, deve ser sopesada e, em alguns casos, revista, pois que da ampla possibilidade de interpretação que os termos projetam, tornam-se, por si sós, de fundamental importância para suas existências, inclusive para o próprio ordenamento jurídico, daí a utilização da linguagem natural.

A apresentação de respostas céleres e adequadas aos problemas oriundos de uma sociedade em permanente transformação requer, muitas vezes, um maior teor de

252 Idem, ibidem, p. 15. 253 Idem, ibidem, p. 15.

254 ROSS, Alf. Sobre el Derecho y La Justicia. Tradução de Genaro Carrió. Buenos Aires: Editorial Universitaria

de Buenos Aires, 1994. Disponível em:

<http://teoriageneraldelderecho122028.files.wordpress.com/2010/10/sobre-el-derecho-y-la-justicia-alf-ross.pdf.> Acesso em: 16 de jun. de 2013. p. 6.

255 CARRIÓ, op. cit., p. 18. 256 Idem, ibidem, p. 15.

257 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Em busca de um conceito fugidio: o ativismo judicial. In: As novas faces

ambiguidade, de vagueza e de abertura nos termos, mesmo porque, como bem asseverou Carrió, “Si hay zonas de penumbra es porque hay foco de luz”258.