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4. CONTRATO DE MÚTUO: DIÁLOGO DAS FONTES SOB A ÓTICA DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO

4.1 O DIÁLOGO DAS FONTES

4.1.1 Diálogo das fontes de ordem pública no âmbito do contrato de mútuo civil e a necessidade

4.1.1.1 A proteção dos hipervulneráveis: diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código

Outro fator que a doutrina utiliza para que o diálogo das fontes se materialize é o que prevê a proteção dos vulneráveis e, mais que isso, dos hipervulneráveis. Claudia Lima Marques e Bruno Miragem, a esse respeito, afirmam que

“A proteção dos vulneráveis pelo direito tem sua origem na identificação de diversos novos sujeitos merecedores de proteção

por se encontrarem em situação de desigualdade, construindo-se a partir daí, num sistema de normas e subprincípios orgânicos para reconhecimento e efetivação de seus direitos.”384

A proteção dos mais fracos, qualquer que seja a relação jurídica, respeitadas as prerrogativas constitucionais, abrange e atinge uma parcela bastante expressiva da sociedade. Incluem-se dentro dessa parcela de cidadãos as crianças, os adolescentes, os índios, os idosos, os estrangeiros e os portadores de deficiência. Inúmeras leis regulamentam, hoje, as situações em que a vulnerabilidade se encontra agravada e para tutelá-la tem-se: o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73), o Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80), a Lei dos Portadores de Deficiência (Lei nº 7.853/89) e o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03).

Os hipervulneráveis, a todo momento, estão praticando os atos da vida civil, e as relações contratuais ocupam grande parcela do tempo de cada um deles, por isso o diálogo das fontes se justifica.

No que diz respeito ao contrato de mútuo, o Código Civil, em seu artigo 588, traz um preceito protetivo, de ordem pública, que “objetiva amparar o menor inexperiente dos abusos de sua boa-fé, por parte de quem possa explorá-lo em negócios extorsivos”385. Explica Caio Mário da Silva Pereira:

“Trata-se de um preceito protetor contra a exploração gananciosa da sua inexperiência. E foi o imaginado como técnica para impedir manobras especuladoras, mediante a punição do emprestador, que perderá a coisa mutuada se fizer o empréstimo proibido.”386

Assim sendo, o Diploma Civil reconhece a vulnerabilidade do mutuário, desde que configurada sua inexperiência, e a vulnerabilidade é um princípio de ordem pública com fincas explícitas no Código de Defesa do Consumidor (art. 4º), tendendo a potencializar-se, pois, como se sabe, o Código Consumerista protege também a

384 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 125.

385 ALVES, op. cit., p. 535.

vulnerabilidade potencializada, consoante o que se depreende da leitura de seus artigos 37, § 2º e 39, IV387.

De acordo com o ministro Carlos Fernando Mathias, Juiz Federal convocado,

“Ao se proteger o hipervulnerável, a rigor quem verdadeiramente acaba beneficiada é a própria sociedade, porquanto espera o respeito ao pacto coletivo de inclusão social imperativa, que lhe é caro, não por sua faceta patrimonial, mas precisamente por abraçar a dimensão intangível e humanista dos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade.”388

No entender de Claudia Lima Marques, tratar-se-ia de um verdadeiro diálogo estabelecido “entre valores constitucionais, de proteção de sujeitos vulneráveis nas suas relações privadas, a levar a uma verdadeira eficácia horizontal de direitos fundamentais, humanizando ou constitucionalizando o direito privado”389.

Assim, pois, a questão dos hipervulneráveis, ou se se preferir aqui, vulneráveis, é a porta de entrada para que os diálogos se estabeleçam, no âmbito do contrato de mútuo, mesmo porque, muito embora a regra do artigo 588 do Código Civil de 2002 só faça alusão ao menor390, existem outros relativa ou absolutamente incapazes

387 “Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. [...] § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade

discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança. [...]”; “Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: [...] IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços; [...].” BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. CASA CIVIL. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm. Acesso em: 14 de out. de 2013.

388 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 931513/RS. Relator ministro Carlos Fernando

Mathias (Juiz Federal convocado do TRF 1ª Região). Data da Publicação DJe 27/09/2010. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200700451627&dt_publicacao=27/09/2010. Acesso em: 14 de out. de 2013.

389 MARQUES, Claudia Lima. O “diálogo das fontes” como método da nova teoria geral do direito: um tributo a Erik Jayme. In: Diálogo das Fontes: do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. Coordenação de

Claudia Lima Marques. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 41.

390 O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, ao abordar o tema envolvendo menor absolutamente incapaz,

entendeu que “Em interpretação sistemática, deve-se atentar para o disposto no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. Primeiro, sendo a autora absolutamente incapaz não corre prazo prescricional contra ela, segundo artigos 3º e 198, inciso I, ambos do Código Civil. Segundo, a prestação de serviços de administração de imóveis submete-se às diretrizes do Código de Defesa do Consumidor - CDC, o qual disciplina no artigo 27 que o prazo prescricional é de 5 (cinco) anos. Seja por um caminho ou por outro, o direito da autora deve ser preservado.” BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal – TJ-DF – Apelação Cível: APC 20100710376975 DF 0037258-08.2010.8.07.0007. Relator Desembargador Alfeu Machado. Publicação no DJE 09/07/2013. p. 72.

elencados no Código Civil que se enquadram, se não como hipervulneráveis, pelo menos como vulneráveis, no âmbito das relações paritárias da Lei Civilista.

Claudia Lima Marques pondera, nesse sentido, que

“Parte da doutrina critica o Código Civil de 2002, por ter norma pouco conectada com a realidade brasileira, mais complexa e diferenciada, em especial pelo caráter “regulamentar” de suas regras até mesmo quando procura proteger os mais fracos, como nas referentes às crianças (art. 3º, I), aos incapazes (arts. 3 º e 4º), aos pródigos (art. 4º, IV), aos agentes distribuidores (art. 720), aos prestadores de serviço analfabetos (art. 595) e à entidade familiar (art. 1.711 e ss.), para citar algumas. De qualquer maneira, é inegavelmente um código mais social e com cláusulas gerais que permitem uma concretização do direito privado bem mais solidária, funcional e protetiva do que o anterior.”391

A vulnerabilidade reclamada pela doutrina, nesse sentido, é reconhecida pelo ordenamento jurídico. Exemplo disso é dado pela medida provisória nº 2.172-32, de 23 de agosto de 2001, que estabelece a possibilidade de inversão do ônus da prova em contratos usurários, reconhecendo, demais, em seu artigo 1º, inciso II, a nulidade dos negócios jurídicos em que se estipularem juros usurários à parte em situação de vulnerabilidade. Tal vulnerabilidade poderia ser reconhecida inclusive aos contratos de mútuo civil, se feita uma análise mais atenta dos incisos I, II e parágrafo único do mesmo artigo 1º392.

Em julgado de 2005, Recurso Especial nº 722600/SC, que teve como fundamento a MP 2.172-32/01 e cuja relatoria coube à ministra Nancy Andrighi, reconheceu-se Disponível em: http://tj-df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/23665367/apelacao-civel-apc-20100710376975-df- 0037258-0820108070007-tjdf. Acesso em: 19 de out. de 2013.

391 MARQUES; MIRAGEM, op. cit., 2012. p. 87.

392 “Art. 1º. São nulas de pleno direito as estipulações usurárias, assim consideradas as que estabeleçam: I - nos

contratos civis de mútuo, taxas de juros superiores às legalmente permitidas, caso em que deverá o juiz, se requerido, ajustá-las à medida legal ou, na hipótese de já terem sido cumpridas, ordenar a restituição, em dobro, da quantia paga em excesso, com juros legais a contar da data do pagamento indevido; II - nos negócios jurídicos não disciplinados pelas legislações comercial e de defesa do consumidor, lucros ou vantagens patrimoniais excessivos, estipulados em situação de vulnerabilidade da parte, caso em que deverá o juiz, se requerido, restabelecer o equilíbrio da relação contratual, ajustando-os ao valor corrente, ou, na hipótese de cumprimento da obrigação, ordenar a restituição, em dobro, da quantia recebida em excesso, com juros legais a contar da data do pagamento indevido. Parágrafo único. Para a configuração do lucro ou vantagem excessivos, considerar-se-ão a vontade das partes, as circunstâncias da celebração do contrato, o seu conteúdo e natureza, a origem das correspondentes obrigações, as práticas de mercado e as taxas de juros legalmente permitidas.” BRASIL.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. CASA CIVIL. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Medida Provisória nº 2.172-

32, de 23 de agosto de 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/2172-32.htm. Acesso em: 26 de out. de 2013.

que: “Um elevado número de cidadãos encontra-se à margem do acesso ao crédito oferecido pelas instituições financeiras, o que os torna vulneráveis e sujeitos ao talante daqueles que comumente são chamados de agiotas”393.

Nesse contexto, e a título de reflexão, é plausível afirmar que a vulnerabilidade do contratante, prevista no âmbito do Código de Defesa do Consumidor, já é reconhecida, legalmente, em nosso ordenamento, para beneficiar outros que não apenas as partes que estabelecem relação de consumo sob a ótica do CDC.

Convenha-se, ademais, que, aguardar por eventuais e morosas alterações de cunho legislativo pode causar danos irreversíveis à esfera patrimonial dos contratantes, de tal sorte que a aplicação do CDC a algumas relações previstas no Código Civil, em diálogo de fontes, seria bem-vinda e poderia servir como resposta às transformações profundas porque passam e passaram a sociedade e o direito privado como um todo, mesmo porque, “Hoje ainda o diálogo das fontes a favor dos mais fracos permite a sua complementação e coordenação com outras leis especiais mais avançadas, como com o Código de Defesa do Consumidor”394.

A par disso, é de se destacar que as alterações nas relações contratuais, tendo em vista o poder impositivo das sociedades de consumo, criaram, por exemplo, novas fontes de vício de consentimento. Os fortes estímulos exercidos sobre pessoas vulneráveis para contratar as induz, muitas vezes, a estabelecerem contratos sem a necessária consciência fática dos compromissos assumidos.

A inferioridade do contratante consumidor, reconhecida pelo Código Consumerista, é fonte de comprometimento e desequilíbrio das relações contratuais, o que causa desvantagem à parte vulnerável da relação.

Atento a essa constatação, o Código Civil de 2002 inovou ao criar a figura da lesão contratual, prevista em seu artigo 157, que estabelece, em suma, que ela ocorrerá

393 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 722600 - sc. Relatora ministra Nancy Andrighi.

Data da Publicação 29/08/2005. Disponível em:

https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200500204018&dt_publicacao=29/08/2005. Acesso em: 26 de out. de 2013.

“quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta”395.

Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery afirmam que

“O instituto não está previsto no CDC, mas se encontra implícito, dentro do microssistema das relações de consumo. O CDC 6º V garante ao consumidor o direito de modificação das cláusulas contratuais que estabelecerem prestações desproporcionais, sendo a desproporção aferível objetivamente. Da mesma forma, a cláusula contratual que ofender a boa-fé é nula, de acordo com o CDC 51 IV. É prática comercial abusiva exigir-se do consumidor vantagem manifestamente excessiva (CDC 39 V). O instituto da lesão, portanto, decorre do sistema do CDC, denominando-se, portanto, de lesão consumerista.”396

O Código Civil, em linhas gerais, fulmina com a nulidade o ato jurídico pelo qual um dos contratantes, explorando a necessidade, a inexperiência, as fraquezas e a incorreta capacidade de julgamento de outrem, impõe-lhe, em contrapartida, uma prestação em flagrante desproporcionalidade.

A vulnerabilidade do contratante, como visto no capítulo segundo deste texto dissertativo, está prevista no art. 4.º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, e pode ser compreendida, hodiernamente, mais do que como

“um estado da pessoa, um estado inerente de risco ou um sinal de confrontação excessiva de interesses identificados no mercado, é uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação.”397

Eliseu Jusefovicz, ao abordar a aplicação dos princípios constitucionais aos contratos, afirma que, diante do caso concreto e “no controle do próprio conteúdo do contrato, o juiz há de verificar a situação de desequilíbrio, sujeição, vulnerabilidade,

395 BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. CASA CIVIL. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº. 10.406,

de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 19 de out. de 2013.

396 NERY JUNIOR; ANDRADE NERY, op. cit., p. 338. 397 MARQUES; MIRAGEM, op. cit., 2012. p. 117.

que importe a aplicação de princípios protetores dos desfavorecidos, em vista da igualdade substancial e do acesso à justiça em paridade de forças”398.

Outro exemplo, em consonância com o Enunciado nº 167, aprovado na III Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal (citado no tópico anterior), vem de Jones Figueiredo Alves, já que, ao se referir ao princípio da interpretação contratual mais favorável ao aderente, afirma que a regra do artigo 423399 do Código Civil contraria o avanço trazido pelo artigo 47400 do CDC, de tal sorte que o aderente, nesses casos, “como sujeito da relação contratual, deve receber idêntico tratamento dado ao consumidor, diante do significado da igualdade de fato que estimula o princípio”401.

Verificando-se, pois, que existem “vulneráveis” no seio de uma relação contratual de mútuo civil, mostra-se plausível suscitar o diálogo das fontes, aplicando-se não apenas os princípios que lhe sejam mais favoráveis, mas também, e quando possível, a norma mais benéfica ao contratante débil na relação contratual. Mesmo porque, atualmente, e também no Brasil, o direito privado, tendo em vista a constitucionalização do direito e sua função social que ultrapassa os limites dos interesses individuais, guia-se também pela proteção dos vulneráveis. Esse direito privado com viés social é ditado pela ordem pública constitucional e tem como um de seus valores a dignidade da pessoa humana402.

398 JUSEFOVICZ, Eliseu. Contratos: proteção contra cláusulas abusivas. Ed. 1. 3ª tiragem. Curitiba: Juruá,

2007. p. 436.

399 “Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a

interpretação mais favorável ao aderente.” BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. CASA CIVIL. Subchefia

para Assuntos Jurídicos. Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 30 de out. de 2013.

400 “Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.” BRASIL.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. CASA CIVIL. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm. Acesso em: 14 de out. de 2013.

401 ALVES, op. cit., p. 378 e 379. 402 Idem, ibidem, p. 07 e 08.